Por dentro das matas no alto de um morro no Litoral Norte de Santa Catarina, um pequeno caneleiro-bordado está pronto para desbravar um mundo novo. Poderia ser personagem de um desenho animado, mas é uma ave observada pela primeira vez em um Estado onde não costuma ser vista. A região escolhida é cheia de características atrativas: com espécies diversificadas e água em abundância, deve se tornar a primeira unidade de conservação da parte continental de São Francisco do Sul, por recomendação de um extenso trabalho que uniu a ciência e as comunidades do Distrito do Saí.
A parceria começou após a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ser contratada pela Prefeitura de São Francisco do Sul para estudar a região. Os recursos vieram como parte de uma multa recolhida pelo Ministério Público Federal e foram aplicados para que se analisasse as características para a criação de uma unidade de conservação municipal, em um polígono previamente estabelecido. O estudo resultou em um relatório com mais de 700 páginas, que organiza o conhecimento sobre aspectos como a hidrologia, a geologia, a fauna e a flora da região e ainda apresenta um histórico socioantropológico da área, recomendada para ser um Refúgio de Vida Silvestre.
Caneleiro bordado: espécie foi vista pela primeira vez e indica o quanto a mata pode ter riquezas desconhecidas (Foto: Fernando Farias)
O Projeto Nascentes do Saí traça uma imagem panorâmica e também o raio-x de um lugar repleto de particularidades, que tem urgência na preservação da sua biodiversidade e também pode servir como ponto de turismo ecológico por conta de suas características. O território do Distrito do Saí possui 116 km2, água, floresta e animais em abundância e um patrimônio cultural cheio de histórias. Transformá-lo em unidade de conservação vai contribuir com a proteção e exploração sustentável dos seus encantos turísticos.
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“A região de morros do Distrito do Saí nos surpreendeu com a sua riqueza de espécies, tanto de flora, como de fauna. É um remanescente de Mata Atlântica muito importante para o Estado, tendo a sua maior parte em estágio avançado de regeneração, além de ser fundamental para a segurança hídrica do município por causa dos seus mananciais”, explica o professor Rodrigo de Almeida Mohedano, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental e coordenador do projeto. “Além dessa tomada de informações, de dados, o projeto é pautado em um processo de governança com a comunidade, porque entendemos que essas ações muito verticais, de cima para baixo, não têm muita efetividade. É preciso que a comunidade participe desde o começo”, contextualiza o professor.
De início, não foi um processo fácil, pois, no senso comum, unidades de conservação costumam ser temidas por, em alguns casos, enrijecerem determinadas regras de ocupação. Mas mesmo com uma pandemia imprevista pelo caminho, a equipe conseguiu construir, com base no diálogo, uma proposta e uma minuta de lei para criar o que se denomina Refúgio da Vida Silvestre.
O polígono inicialmente delimitado pela prefeitura transformou-se em uma área maior, de aproximadamente 6.702 hectares, segundo explica o professor Orlando Ferretti, responsável pela caracterização geográfica. O traçado passou a abranger, também, áreas de maiores altitudes, na divisa com Itapoá e Garuva, onde não há ocupação, mas há floresta.
Segundo Ferretti, a proposta de criação de uma unidade no local remonta à década de 1980, quando a Unesco criou o conceito de Reserva da Biosfera, com o objetivo de dar sustentação à preservação dos diferentes biomas espalhados pelo mundo. No Brasil, esse processo se estendeu entre final de 1990 e início de 2000, onde se estabeleceram as possíveis reservas para as áreas de Mata Atlântica. “Foi uma designação muito mais de uma política internacional, de observar nos diferentes biomas quais as áreas que deveriam ser mais cuidadas e ter mais trabalhos científicos e áreas protegidas”, contextualiza.
Hoje, a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (RBMA), a primeira criada no Brasil, passou por diversas ampliações. De acordo com informações da Unesco, ela cobre porções territoriais de vegetação de Mata Atlântica ao longo de 89.687.000 hectares. Isso forma um corredor ecológico por 17 estados, incluindo Santa Catarina. A RBMA é a maior e uma das mais importantes unidades da Rede Mundial da Unesco.
Dentro do próprio bioma de Mata Atlântica, explica o professor, foram criadas inúmeras reservas, parte delas na região Sul – e a mais importante hoje denominada Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. “No Norte, há áreas de serra do mar, nas regiões de Joinville, Campo Alegre, Garuva, São Chico. Ali há uma grande indicação da importância e da biodiversidade nessas áreas, balizadas pela Unesco”, comenta. A região de São Francisco do Sul, desde os anos 2000, é reconhecida como altamente importante, mas ainda não tem uma unidade de conservação em sua área continental.
A ideia de criar a primeira unidade de conservação de proteção integral na região tem uma importância adicional: somado às outras áreas protegidas do entorno, esse polígono seria uma espécie de corredor ecológico e garantiria mais trocas genéticas nas populações de animais ou de plantas que vivem em outras reservas. “É importante que haja muita unidade de conservação para que haja conexão entre os diferentes fragmentos, para que as espécies possam circular entre as áreas, tendo essa facilidade para o fluxo genético”, reforça Rodrigo.
Equipe de pesquisa em ação
O professor Ferretti também reforça a possibilidade de uma nova reserva se agregar a um chamado mosaico de áreas protegidas, que garante uma maior cobertura de proteção legal, com uma intensa variedade de ambientes, tais como serra e planície, por exemplo. Isso possibilita que haja ligação possível com corredores, seja pela água, seja pela terra, fazendo com que os animais façam a passagem de um ponto a outro. “É urgente a criação de unidades também para não isolar esses animais”, pontua.
Unindo saberes
Trabalho com a comunidade começou antes da pandemia (Fotos: acervo do projeto)
Segundo o professor Rodrigo, o Núcleo de Educação Ambiental (NEAmb) foi um dos vértices de todo esse processo. Além de já ter, no histórico, a execução de um trabalho semelhante, realizado na cidade de Itapema, o NEAmb potencializou conhecimentos multidisciplinares para o estudo. “O nosso diferencial foi trabalhar com as comunidades, empoderar a comunidade com conhecimento e incluí-la no processo, com metodologias de educação ambiental e de governança”.
A proposta de unir os saberes locais da comunidade e os saberes técnicos que a equipe da UFSC propunha fez com o que o projeto Nascentes do Saí fosse um trabalho coletivo. “Não adianta vir alguém de fora, da universidade ou do poder público e impor a criação de uma Unidade de Conservação, pois sem a apropriação desta pela comunidade, ela ficaria apenas no papel”, destaca Luiz Gabriel Catoira Vasconcelos, responsável pela governança. “O conceito de governança que trazemos do professor Daniel Silva é justamente esse: aumentar a capacidade das comunidades de participar da gestão do seu território e seus bens comuns”.
O pesquisador lembra que foi um desafio romper as opiniões pré-estabelecidas, já que muitos moradores identificavam o projeto como uma espécie de inimigo. A falta de confiança no poder público e até mesmo um preconceito com iniciativas ambientais são apontados como duas das possíveis causas desse afastamento inicial. “A efetividade da gestão de bens comuns como as águas, florestas e o meio ambiente equilibrado depende da existência de diálogo e cooperação entre todos atores envolvidos. Do contrário, a competição individualista leva à intensificação da degradação e eventualmente a um colapso irreversível”, aponta.
Justamente por isso, a equipe buscou cultivar e construir relações de confiança. A comunidade foi chamada a participar desde o primeiro momento, em conversas, depois em grupos virtuais, por conta da pandemia, e também nas três audiências públicas executadas para apresentar o que estava sendo coletado e ouvir o que os moradores tinham a dizer. As oficinas de construção participativa da proposta da Unidade de Conservação colocaram em diálogo pessoas com concepções divergentes trabalhando de modo cooperativo.
“Certamente a participação de cada um enriqueceu o processo e contribuiu para a qualidade e legitimidade das decisões tomadas. Mais do que isso, foi um alento de que ainda pode ser possível regenerar a capacidade de diálogo e cooperação em nossa sociedade”, pontua Vasconcelos, que viu a comunidade exercer a autonomia para a proposição da categoria Refúgio de Vida Silvestre, uma recomendação coletiva, que conciliou os saberes técnicos da equipe da UFSC com os interesses e saberes da comunidade. “É claro que também houve os momentos objetivos e metodológicos das oficinas, mas eles foram resultado de meses de escuta, conversa, afeto e perseverança no diálogo, especialmente quando este era mais difícil”.
Proteção também à cultura e às tradições
A comunidade, ativamente participante das decisões sobre a unidade de conservação do Distrito do Saí, também integrou o projeto em outra frente: compartilhando suas memórias, contando suas histórias e apresentando suas práticas, o que permitiu à equipe da UFSC realizar um inventário socioantropológico da região. Para a pesquisadora Elis do Nascimento Silva, coordenadora do estudo, é importante considerar que a criação de uma UC em um território não envolve apenas a proteção do ambiente natural e sua biodiversidade, mas articula-se também com a vida dos povos e comunidades.
Entrevistas fizeram parte do levantamento realizado pela UFSC
“A abordagem sociológica, histórica e antropológica se faz necessária desde o momento inicial do estudo e dos levantamentos dos dados primários e secundários que nos permitem compreender o histórico de ocupação da região, as atividades e práticas produtivas das comunidades que dependem das áreas destinadas à criação da UC e, sobretudo, os vínculos afetivos e modos tradicionais das pessoas interagirem com esses ambientes há algumas gerações”, resume Elis.
Uma das coisas que mais chamou a atenção da equipe foi a riqueza do histórico de ocupação naquela área, desde o período pré-colonial, sinalizada pelos vestígios dos sambaquis, que comprovam que existe a presença humana na região há pelo menos 6.000 anos antes do presente.
Há outros pontos da história que mereceram o registro atento das pesquisadoras da UFSC como parte do esforço de registrar as memórias e os acontecimentos da comunidade: a chegada dos franceses em 1504 e a experiência do Falanstério do Saí em 1842 para implantação de um sistema coletivista de trabalho baseada na livre associação e cooperativismo, por exemplo, também é um momento que diferencia o Distrito do Saí de outras áreas. Outras heranças socioculturais são atribuídas à presença histórica do povo Guarani, dos portugueses, espanhóis, alemães e dos afrodescendentes escravizados.
O reconhecimento e a valorização da pesca artesanal como um importante patrimônio cultural imaterial do Distrito do Saí é outro destaque que a pesquisadora faz ao estudo. De acordo com ela, mesmo com um certo enfraquecimento da prática desta atividade entre as novas gerações, trata-se de uma tradição do lugar que está presente na memória da maioria das famílias. “Relacionada à pesca artesanal, também estão a cultura dos engenhos de farinha e as festividades – tradicionais e contemporâneas – que são celebradas atualmente no Distrito do Saí, como a Festa da Nossa Senhora da Glória e a Festa do Camarão”, pontua.
Para Elis, a existência de uma unidade de conservação no Distrito pode envolver ainda mais a comunidade ao território, sendo capaz de fortalecer a identidade cultural e gerar um sentimento de pertencimento por conta da valorização da biodiversidade por parte do poder público e dos turistas. “Com a criação da UC, prevemos que ela poderá ser mais um atrativo turístico para a região e que, a partir do interesse e organização da comunidade, seus patrimônios culturais materiais e imateriais podem ser melhor geridos e valorizados como potenciais do Distrito do Saí, não só histórico-culturais mas também movimentando ainda mais a economia local”, acrescenta a pesquisadora.
A abundância hídrica e a riqueza de espécies na floresta do Distrito do Saí reforçam aquilo que os pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina já reconheciam a partir da literatura e de outros trabalhos na localidade: é necessário promover a conservação da biodiversidade e potencializar o turismo sustentável na região. A criação de um Refúgio de Vida Silvestre irá possibilitar que a Mata Atlântica permaneça protegida, o que garante, também, água de qualidade e outros benefícios às comunidades.
“A garantia da preservação da floresta confere um papel importante de conexão das pessoas com a natureza, de entrarem na mata e se sentirem confortáveis. A mata promove uma sensação muito agradável: sensação térmica, estética, de andar numa floresta e conseguir enxergar flores, aves, insetos. Para esse turismo mais voltado para o desfrute do meio ambiente é importante que a mata esteja muito bem preservada”, explica o professor Pedro Fiaschi, do departamento de Botânica.
Euterpe edulis, popularmente conhecida como ‘juçara'(Foto: acervo do projeto Nascentes do Saí)
A mata do Distrito do Saí, segundo Fiaschi, tem características que chamam a atenção. A área é coberta por Mata Atlântica em estágio avançado de regeneração. “Temos nesta região árvores altas e com diâmetro grande, além de estruturação em vários níveis: desde as árvores muito grandes, até as camadas inferiores. São vários extratos de floresta com indício de que estão em estado avançado de regeneração”, explica. Além disso, há também trechos que podem ser matas primárias – ou seja, que nunca sofreram impacto e preservam suas características originais desde antes mesmo da chegada da espécie humana.
Segundo o relatório de 2020 da SOS Mata Atlântica, esse bioma abrange cerca de 15% do território do Brasil, o que equivale a 17 estados. Além disso, é o lar de 72% da população, abrigando três dos maiores centros urbanos do continente sul-americano. Os dados sobre seu desmatamento também chamam a atenção: de 2018 para 2019, foram 14.502 hectares – ou 14 mil campos de futebol suprimidos, ameaçando sua rica biodiversidade.
No Distrito do Saí, no entanto, o relatório dos pesquisadores da UFSC indica uma área relativamente preservada, o que aumenta a relevância de medidas de conservação. De acordo com o professor, muitas áreas da Mata Atlântica sofreram impacto da ação humana ao longo do processo de ocupação urbana, o que é menos evidente na região do Saí. “Tudo isso sugere que essa região deva ser preservada. Uma floresta muito bem conservada vai ter uma quantidade de espécies muito maior e vai abrigar também muitas espécies de animais. Quanto mais espécies houver na flora, mais rica será a fauna associada”.
Esses indícios, entretanto, não sugerem que não tenha havido impactos da ação humana na floresta nativa. De acordo com o pesquisador, é possível que tenha existido, na localidade, um histórico de corte raso em alguns trechos, com a remoção da floresta, e também a remoção seletiva de algumas espécies, tais como jequetibá e canela-preta. Assim, ainda que a floresta seja considerada em estágio avançado de regeneração e seja rica em espécies, há outras regiões, mesmo em Santa Catarina, que se encontram em melhor estado de conservação, especialmente aquelas localizadas em regiões mais íngremes, cujo acesso à ação humana é dificultado.
Riqueza florística
O jequetibá é uma árvore de tronco largo, grande e vistosa, dessas que são impossíveis de não se reparar. Por isso, é difícil que passem despercebidas mesmo por olhos leigos. No trabalho de campo da UFSC, um aluno do professor Pedro Fiaschi identificou um indivíduo jovem. “Ele coletou um ramo e nos mostrou. É possível que haja mais pela floresta, mas esse que identificamos é um indivíduo jovem”, explica. A espécie é considerada ameaçada de extinção, mas pode ser encontrada no Distrito do Saí.
Segundo o professor, essa espécie não é encontrada em outras regiões do estado. Em Florianópolis, por exemplo, não há registro de jequetibás. Isso ocorre porque as florestas mais ao norte, no caso da Mata Atlântica, costumam ter registros de espécies que não ocorrem em áreas mais ao sul do estado. O Distrito do Saí, portanto, tem mais esse diferencial: por estar no Litoral Norte, vai apresentar algumas espécies características de uma região com chuvas mais abundantes e clima um pouco menos sazonal que o de Florianópolis, por exemplo. Este foi um ponto destacado pela equipe que fez o levantamento no relatório do projeto: as florestas do Distrito do Saí caracterizam- se como importantes componentes florísticos do estado por conta dessa característica, “contribuindo para a riqueza biológica de Santa Catarina e proporcionando habitat para uma fauna silvestre igualmente biodiversa”, tal como consta no relatório.
Rudgea jasminoides: registro de uma espécie que ocorre no interior de florestas bem conservadas
Para os pesquisadores, a existência de muitas espécies de bromélias, samambaias e outras epífitas na região do Distrito do Saí não surpreende. Essas espécies são comuns na Mata Atlântica e muitas não são encontradas em outros biomas brasileiros.”Sobre as bromélias, quando você vai a uma floresta e olha para cima das árvores, observa muitas espécies crescendo sobre o tronco das árvores, o que não surpreende em florestas bem estruturadas situadas em morros, com árvores de grande porte e penetração de luz sob vários ângulos”, resume.
De acordo com o professor, a beleza dessas plantas pode ser um atrativo para os turistas, já que elas atraem também muitas espécies de aves e outros polinizadores. “Como muitas outras plantas, as bromélias têm muita interação com polinizadores, que são muito importantes para sua reprodução, enquanto outras plantas dependem de animais para a dispersão das suas sementes, o que é essencial para a manutenção da floresta, já que permite o repovoamento de outras áreas”.
Já as samambaias também aparecem como parte do relatório do projeto. Algumas espécies são mais raras e conhecidas em poucas localidades. “No Distrito do Saí identificamos muitas espécies de samambaias, muito mais do que acharíamos em Florianópolis, por exemplo. Elas são um grupo que está associados a florestas úmidas e geralmente ocorrem onde há muitos corpos de água e chuvas bem distribuídas ao longo do ano”, explica.
A formação florestal, portanto, destaca-se na paisagem do Distrito do Saí. De acordo com o levantamento da equipe do professor Orlando Ferretti, mais de 90% do solo da região estudada tem essa composição – e apenas 1,14% seria floresta exótica, plantada. “A gente já imaginava que o Distrito é uma região importantíssima do ponto de vista da biodiversidade. Claro que dentro dele há áreas que sofreram modificação recente, por conta de ocupações que estão mais a margem. Inclusive, a área de entorno da unidade de conservação registra que a ocupação urbana está encostando no polígono”, explica.
Essa biodiversidade, segundo aponta o professor, é tributária também das formações da Serra do Mar, cadeia montanhosa composta por inúmeras reservas. A vegetação da região, explica ele, foi transformada pelo menos há cerca de 50 anos, com o corte seletivo em alguns lugares. “Mesmo assim, a gente percebe que está no estado de regeneração bem interessante, com topos de morro e encostas bastante recuperadas, o que também dá qualidade para a água da região, em mais de 150 pontos de nascente”.
Qualidade da floresta
A relação da floresta com a água também diz muito sobre a qualidade de uma e de outra. De acordo com o relatório 2020 da ONG SOS Mata Atlântica, o bioma fornece água para mais de 60% da população brasileira. Não é diferente no Litoral Norte de Santa Catarina e particularmente em São Francisco do Sul. O próprio nome do projeto da UFSC, Nascentes do Saí, remete à característica hidrológica da região.
De acordo com o professor Nei Kavaguichi Leite, do Departamento de Ecologia e Zoologia, é possível recorrer ao ciclo da água para entender o papel da floresta com relação a esse aspecto. Uma das imagens ilustrativas do fenômeno é quando parte da água da chuva fica retida na copa das árvores, o que faz com que o solo a absorva de uma forma mais lenta, recarregando aquíferos que alimentam os rios. A falta de cobertura florestal, por outro lado, acelera este processo e faz com que o solo fique rapidamente saturado de água. “Isso gera um alto escoamento superficial que pode acarretar em um rápido aumento do nível dos rios e riachos, com consequente inundação, ou mesmo resultar em assoreamento devido ao aporte de grande quantidade de sedimento nos cursos d`água”.
Conservar a floresta garante qualidade da água
O estudo da equipe de hidrologia do projeto abrangeu nove bacias hidrográficas, com o interesse em compreender a disponibilidade hídrica nessas áreas, verificando também sua distribuição e abundância. Outro ponto importante a ser considerado é que essas águas são responsáveis por parte do abastecimento dos municípios de São Francisco do Sul e Itapoá, garantindo qualidade de vida à população. Cinco dos oito pontos de captação da empresa Águas de São Francisco estão na região.
Conforme o relatório, as bacias hidrográficas analisadas têm área de aproximadamente 26,7 km2, com monitoramento realizado pela equipe de hidrologia cobrindo cerca de 77% da área de estudo, em um total aproximado de 57 nascentes. As nascentes são o ponto por onde começa um curso de água e estão localizadas nas regiões mais altas.
A abundância hídrica do Distrito do Saí também foi corroborada pelo alto índice de chuvas, com uma média anual de 2.363 mm, acima da que é registrada em Santa Catarina, que é de 1.506 mm. Também se destacaram, na análise, a extensa cobertura de mata nativa, o que assegura a urgência de medidas de conservação. “Tem riachos que estão em regiões com certo grau de antropização, mas um aspecto bastante relevante é a manutenção das matas ciliares, que margeiam os rios. São matas que servem de refúgio para a biodiversidade, garantem a estabilidade dos barrancos e controlam a água que chega nos riachos. Em muitos desses riachos que estudamos, as matas ciliares disponibilizam alimentos para muitas espécies e servem também de recreação”, pontua Nei.
O professor lembra, ainda, que a manutenção dessas matas e da floresta, de um modo geral, também são medidas preventivas para deslizamentos ocasionados pelo forte índice pluviométrico. “A falta de cobertura vegetal pode acarretar em erosão e até mesmo assoreamento de riachos. Em locais com pequenas modificações, como a queda de uma árvore, em algum momento, já se detecta esse fenômeno. Mudar completamente as características da região pode gerar um impacto bem grande”, pondera.
O alerta também surge do professor Orlando Ferretti. Segundo ele, apesar da grande biodiversidade e da grande quantidade de florestas, a área apresenta riscos de deslizamento caso a floresta não seja conservada e não se torne alvo de políticas ambientais. “Quando se percebe o tipo de solo que existe lá, suscetível a riscos geológicos, e também a quantidade de chuva, pode-se falar até em um risco mais imediato, já que a área urbana está crescendo”.
Ave bordada com bico robusto, segundo o Wiki Aves, é o significado para a nomenclatura científica do Pachyramphus marginatus, ou apenas “Caneleiro-Bordado”. O pequeno animal, que mede até 14 cm e pesa não mais que 18 gramas, tinha sua distribuição registrada desde Pernambuco até o Paraná, mas em dezembro de 2019 foi visto pela primeira vez ainda mais ao Sul, especificamente na região do Distrito do Saí.
Os ornitólogos que o reconheceram são da equipe da Universidade Federal de Santa Catarina responsável pelo levantamento socioambiental para a criação de uma unidade de conservação em São Francisco do Sul, litoral Norte de Santa Catarina. Primeiro, a equipe identificou o macho. Alguns meses depois, uma fêmea também foi vista pela primeira vez, consolidando a hipótese de que a floresta tem muito a apresentar, inclusive em termos de turismo ecológico.
Caneleiro bordado no Distrito do Saí
De acordo com o professor Guilherme Renzo Rocha Brito, do Departamento de Ecologia e Zoologia da UFSC, esses primeiros registros estendem a espécie por cerca de 40 km ao sul de sua área de distribuição conhecida, e embora não seja possível afirmar com toda certeza se outros exemplares já haviam voado mais ao Sul, trata-se de um dado relevante para a compreensão da avifauna do Saí. A equipe identificou pelo menos 252 espécies diferentes na região, de 59 famílias – dados que a elevam como uma das regiões mais ricas do estado.
“É uma das áreas mais ricas de aves da Mata Atlântica do Estado. Dali para baixo começa a diminuir um pouco, por questões climáticas, por conta do frio. Em termos comparativos, é possível que haja números semelhantes nas matas de araucárias, mas desconfio que não chegue muito perto da riqueza que encontramos ali”, explica.
O professor conta que aves são animais de ambientes muito específicos, ou seja, de acordo com o tipo de ambiente é possível encontrar uma comunidade que se adequa somente aquela região. “Num manguezal, por exemplo, você encontra aves que estão somente nesse ambiente. Já nas florestas vai encontrar uma comunidade um pouco diferente. Mas no caso do Distrito do Saí, naquela região há um mosaico de vários tipos”, comenta. Cercada por baía, manguezais, florestas e morros, a área tem pássaros de cores, tipos e padrões diferentes – um registro de biodiversidade e da urgência de conservação.”Pouco mais acima, na divisa do Paraná e de São Paulo, por exemplo, vai haver uma riqueza um pouco maior por ser um núcleo maior de florestas. O que vemos no Saí é um potencial bastante interessante”.
Como as aves são bastante sensíveis a alterações no seu ambiente e muito dependentes de habitat florestal, a riqueza na área também é um indicativo de que as florestas da região do Distrito do Saí sustentam uma comunidade relativamente saudável, inclusive com alto número de endemismos e espécies raras e ameaçadas. Além do Caneleiro-Bordado, a equipe identificou também espécies como o Jaó-do-Sul, da família dos macucos, um animal relativamente grande, que parece uma galinha e é muito caçado, buscado para servir de alimento. Um Curió de vida livre também foi identificado, uma espécie mais rara muito procurada por gaioleiros no passado só encontrada em áreas de vida selvagem preservada e pouco perturbada.
Curió Sporophila é ameaçado de extinção
“O recado é que é uma comunidade muito complexa, com muitos agentes e muitos exemplos. E quanto mais complexa a comunidade, mais complexas são as interações, pois para sustentar uma comunidade dessas é preciso um ambiente muito saudável, com muitos recursos. Mais de 50% dessas aves são insetívoras, por exemplo, dependentes de insetos”, ilustra.
Um desdobramento efetivo dessa análise sobre a avifauna foi bastante comentado junto à comunidade do Distrito do Saí, já que essa característica pode levar à criação de projetos turísticos relacionados à observação de pássaros. “O Distrito do Saí é uma das únicas áreas no estado de Santa Catarina com a possibilidade de observação e registro de muitas espécies. Essa beleza cênica fomenta o turismo de natureza”, indica o relatório da UFSC. “A recepção da comunidade quanto a essa possibilidade foi muito boa. Proprietários de pousada, por exemplo, ficaram empolgados com essa questão, pois apareceu como um novo potencial”, reforça o professor.
Exemplo de biodiversidade
A região, segundo o levantamento de fauna, tem uma importância ecológica inegável. De acordo com o professor Selvino Neckel de Oliveira, do Departamento de Ecologia e Zoologia da UFSC, que coordenou o estudo, o primeiro passo para a conservação é o conhecimento da área e do que ela tem de biodiversidade, pois assim é possível avaliar cada espécie e suas características determinadas. “A partir desse dado você consegue ter uma dimensão do estado de conservação, por exemplo, se você está diante de uma espécie que tem distribuição restrita naquela área ou se ela nunca foi registrada naquele ambiente”.
Piaya cayana
No caso da Mata Atlântica, que foi reduzida a cerca de 7% do que ela já foi originalmente no passado, sua posterior recuperação ocasionou uma paisagem com habitats fragmentados, ou seja, manchas de áreas florestais separadas por cidades ou sistemas agrícolas que isolaram determinadas espécies que, como consequência, podem ser extintas. “Num contexto de fragmentação, mesmo as espécies que conseguem permanecer se tornam inviáveis, pois as populações vão diminuindo, já que não há troca de material genético entre as populações”, explica.
Haematopus palliatus
Oliveira explica que é necessário estudar o ambiente, saber o que ele dispõe e avaliar o seu estado de conservação. “Nosso levantamento de fauna mostrou que o Distrito do Saí é um dos lugares mais ricos de espécies da nossa Mata Atlântica, com uma quantidade de espécies muito alta, comparado à unidade de área”, pontua.”E por que esse ambiente é rico? Porque a parte Norte de Santa Catarina é uma região de conexão de fauna e flora que vem do Sudeste/Nordeste brasileiro e da parte Sul do Brasil. Então, temos elementos da fauna e flora do Sul se encontrando com elementos das regiões Sudeste e Nordeste do Brasil.
Um exemplo que a equipe incluiu nas suas análises é o do Veado Bororo, espécie registrada na mata do Distrito do Saí há cerca de dois anos e cuja ocorrência era mais comum na porção da Mata Atlântica da região de São Paulo e dali para o Nordeste. Espécies de anfíbios observadas na floresta também são exemplos de uma região com uma fauna heterogênea, com elementos que tiveram suas origens mais ao sul ou mais ao norte do Saí. “O que ocorre é que o limite de distribuição dessa inúmeras espécies ocorre aqui na na região do Saí”.
Eira: exemplar da mastofauna no Distrito do Saí
O professor lembra que aquilo que a equipe levantou na região é uma pequena amostra, fruto de cerca de 20 dias de campo, por conta do contexto pandêmico. Mesmo assim, observou-se uma grande diversidade. “Imagina se tivesse uma estação de estudo nesse local há 20, 30 anos e a importância que teriam estes registros a longo prazo. Ficamos impressionados, pois em pouco tempo conseguimos comprovar essa biodiversidade”, completa.
Os dados – que no relatório são divididos por grupos (peixes, anfíbios, reptéis, mamíferos, avese insetos dipteros) – não permitem que a equipe lance hipóteses sobre a possível perda de biodiversidade ocasionada pela ação humana, por exemplo. Mas o pesquisador observa que a região tem perdido áreas de floresta, além de ser ameaçada constantemente por obras, como as de ampliação portuária. “O veado, por exemplo, a gente registrou um indivíduo apenas. Será que não havia mais há dez ou cem anos atrás? Ou mesmo o macaco Bugio, que antes era visto com certa frequência e agora praticamente não se vê mais nessa região”.
Para ele, o que mais chama a atenção na fauna do Distrito do Saí é o conjunto da obra, identificado por meio da observação dos elementos da floresta atlântica que estão bem representados em diversos pontos do polígono e que são essenciais para a justificativa de uma unidade de conservação. “São muitos componentes da biodiversidade: o meio físico, com as nascentes com água de boa qualidade, o componente biótico, como árvores imensas; poucas, mas existem, e árvores que produzem muitos frutos para fauna. Os componentes da biodiversidade da Mata Atlântica estão todos ali”.
Amanda Miranda/Jornalista da Agecom/UFSC