A tradução de “Um apelo à emigração” (A Plea for Emigration, 1852) foi publicada pela Cultura e Barbárie Editora, uma parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET) da Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade de Alberta, no Canadá. O lançamento oficial do livro, traduzido e organizado por Alison Silveira Morais, Fabricio Leal e Hislla Suellen, será realizado na UFSC em 2024.
Capa da tradução do livro ‘Um apelo à emigração’
O texto é inédito em português e pouco conhecido nos países de língua inglesa. A obra, com prefácios de Cida Salgueiro e Richard Almonte, resgata uma reflexão fundamental sobre o problema racial nos Estados Unidos da América e no Canadá no século XIX. Um guia para emigrantes, o folheto foi escrito por uma mulher negra norte-americana, Mary Ann Shadd (1823-1893), que, indignada com a situação da minoria afrodescendente no seu país, decidiu migrar em 1850 quando a Lei do Escravo Fugitivo determinou que todo escravo fugitivo, mesmo já estabelecido em um estado em que a escravidão havia sido abolida, deveria ser devolvido ao seu dono. Professora de escola, Shadd se mudou para o Canadá, onde a escravidão tinha sido abolida em 1834, abriu uma escola racialmente integrada e fundou seu próprio jornal, The Provincial Freeman, em 1853.
De acordo com a coordenadora do PGET, Dirce Waltrick Do Amarante, o livro é fruto do diálogo de professores e alunos do PGET com o Departamento de Línguas Modernas e Estudos Culturais, da University of Alberta – Odile Cisneros, que amparou a tradução da obra, foi professora convidada do PGET em 2020. “A Universidade de Alberta tem recebido doutorandos do PGET e desses diálogos resultam publicações. A tendência é que seja intensificada essa parceria, principalmente, com o projeto de trazer à luz nos dois países vozes desconhecidas”, explica Dirce. Na nota introdutória do livro, Dirce, Odile e a vice-coordernadora do PGET, Andreia Guerini, afirmam que se “trata de um texto crucial para ampliar o diálogo sobre temas que ainda não se esgotaram nos dias de hoje. O próximo projeto dessa parceria será a tradução de uma voz potente brasileira para o inglês, ainda em discussão”.
Alison Silveira Morais, Fabricio Leal e Hislla Suellen são doutorandos do PGET e fizeram ampla pesquisa, iniciada em 2020, antes de iniciar a tradução. Confira entrevista com um dos autores da tradução:
Quando vocês iniciaram a tradução do livro? Quais foram os principais desafios de traduzir um texto do século XIX?
Alison Silveira Morais – A pesquisa se iniciou em 2020 e esse exercício de trazer/traduzir um texto escrito no século XIX na língua inglesa para o português do Brasil do século XXI colocou em destaque uma espécie de arqueologia da tradução no que diz respeito a pesquisas sociológicas e histórico-geográficas sobre os Estados Unidos e o Canadá, e pesquisas etimológicas; semânticas, gramaticais, e hermenêuticas para realização da tradução. Apesar de essa tradução ter lançado mão do conceito de reescrita, ao mesmo tempo também se ateve ao tom arcaizante da obra, fazendo com que o texto se locomova no tempo-espaço, não sem causar estranhamentos, mas chegando ao leitor dessa época de forma acessível.
Deparamo-nos não somente com desafios amplos que permeavam o texto como um todo, como por exemplo, a atenção com o foco narrativo expresso no texto, as complexas imbricações linguísticas e semânticas, e finalmente o equilíbrio no processo de criação de um projeto de tradução crítico que ao mesmo tempo permite a manifestação da voz do tradutor, mas que também almeja a conservação do aspecto arcaizante da obra.
Além disso, tivemos também desafios mais específicos, que unidos se tornaram extensa fonte de pesquisas, debates e encontros. A saber, os longos debates sobre a tradução de termos como coloured people, negros e black(s), a conversão de moedas e medidas diversas, apelando muitas vezes para explicações via nota de rodapé, que de fato foi uma ferramenta paratextual vastamente utilizada ao longo da tradução. O estudo de Leis canadenses e documentos como o Juramento à Rainha, e os Estatutos; a própria caracterização do Canadá como ele era constituído na época (Canadá do Leste e Oeste, ao invés do que conhecemos hoje). Outros exemplos pontuais que confrontamos referem-se à agricultura, botânica, zoologia, plantio, frutas, hortaliças e comércio; além das localizações que não mais existem ou que tiveram seus nomes alterados, termos religiosos, até mesmo expressões arcaicas utilizadas no meio mobiliário que nos tomaram tempo e fizeram com que realizássemos uma verdadeira viagem no tempo para encontrar soluções para a tradução.
Qual a importância de disponibilizar esse texto traduzido para o português no Brasil?
Alison Silveira Morais – Responder a uma pergunta sobre a importância dessa tradução de Mary Ann Shadd de forma sucinta também se torna um desafio, porém, podemos afirmar que fazer uma lista das questões centrais do Plea for Emigration, ou Um apelo à Emigração, é fazer também uma lista de uma série de questões vistas como centrais também para o povo negro das américas, sendo de 1850 ou 2023; a transmissão da experiência pessoal de Shadd em tom de uma propaganda, um verdadeiro convite para a liberdade e o que ela pode carregar consigo, o apontamento efusivo para todos os escravizados e oprimidos, sua posição como portadora dessa alternativa, e também a sua forma peculiar de comunicar essa verdade, faz com que seja de fato uma obra essencial para entender todo aquele momento de tensão histórica e sobretudo desconstruir a ideia de inanição, desesperança ou submissão do povo afro-americano. A Plea for Emigration ultrapassa as linhas pragmáticas de um manual, se estendendo para um estudo e um retrato de sua época, e ter a oportunidade de trazer esse importante documento para o público leitor brasileiro foi ao mesmo tempo desafiador e gratificante.
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