Um ambiente nefasto para a proliferação de doenças infecto-contagiosas – é dessa forma que a pesquisadora Marília Budó, professora do departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, resume o sistema penitenciário brasileiro do ponto de vista físico diante da pandemia de Covid-19. Mas o problema não para por aí: além da superlotação, das péssimas condições de higiene e saneamento básico e da pobre alimentação dirigida às pessoas presas, a ausência de dados e informações precisas sobre como a doença foi assimilada pelo sistema nos últimos anos agrava ainda mais a questão. Um grupo de pesquisadores desnuda esse cenário caótico em dois documentos lançados pelo projeto Infovírus: prisões e pandemia, que além da UFSC envolve estudiosos de outras cinco instituições e pesquisadores autônomos.
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O projeto, criado ainda em 2020, primeiro ano da pandemia, teve o objetivo de acompanhar, registrar, analisar e divulgar informações sobre a situação dos presídios, incluindo análises de informações públicas disponíveis no Painel de Monitoramento dos Sistemas Prisionais. O acompanhamento desses dados, entretanto, revelou uma série de distorções e problemas elencados nos documentos Política de Morte: Registros e Denúncias sobre Covid-19 no Sistema Penitenciário Brasileiro e De Olho no Painel do Depen: Análise de Informações de Estado sobre a Covid-19 nas Prisões. “O problema da falta de dados sobre mortes e adoecimentos – físicos e mentais – dentro de unidades prisionais já existia antes da crise da Covid-19. Ela se agravou dramaticamente neste contexto, quando as políticas de testagem em massa, isolamento e vacinação eram e são ainda as únicas ferramentas possíveis para conter o vírus”, explica Marília.
Justamente por isso, a proposta dos pesquisadores foi desenvolver um projeto de checagem de informações e de divulgação científica do acúmulo das pesquisas do campo criminológico crítico sobre penas e prisões no Brasil. Ao mesmo tempo, a equipe também recebia denúncias de amigos e familiares a respeito da falta de informações sobre os detentos. O ‘isolamento dentro do isolamento’ impediu que as pessoas privadas de liberdade tivessem contato esporádico com as famílias por meio das visitas semanais. “Há uma desumanização das pessoas em prisão, o que conduz a uma facilitação a políticas e decisões que têm como resultado o adoecimento e a morte”, indica Marília.
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A equipe trabalhou com um conjunto de 74.676 dados públicos. No início do acompanhamento, em abril de 2020, 162 casos eram notificados como suspeitos, com 25.228 sendo anunciados um ano depois, data de corte do projeto. Também em abril de 2020, 51 foram confirmados – número que aumentou mais de mil vezes em um ano. Já a primeira morte confirmada surgiu no painel em 18 de abril de 2020 e chegou ao número de 168 um ano depois.
O projeto divulgou essas informações publicamente, no site e em redes sociais. Nesse processo, também denunciou os momentos em que havia ausência de atualização nas informações públicas, como ocorreu durante mais de seis meses com os números do Estado da Paraíba. “O que notamos claramente é a proposital indiferença em relação à morte e ao sofrimento das pessoas que de alguma maneira têm suas vidas marcadas pelo cárcere, sejam elas pessoas privadas de liberdade, sejam elas parentes, esposas, companheiras, que vivenciaram durante meses a ausência de informações sobre seus entes queridos”, destaca a pesquisadora.
Descontinuidade nos dados
Conforme o relatório, os estados que mantiveram maior regularidade na periodicidade de atualização dos dados públicos foram Santa Catarina, em que o maior período na qual ficou mantida a mesma informação foi de 14 dias, Maranhão, com 16 dias e Rio Grande do Sul, com 18 dias. Nos demais, a equipe reconhece uma descontinuidade no preenchimento das informações sobre o sistema penitenciário. “Diante do que foi aqui observado, os dados dispostos no painel do Depen não condizem com a realidade da infecção pelo vírus no sistema prisional brasileiro. Entretanto, quando o sistema do painel do Depen não é alimentado, não se trata simplesmente de plausível minimização dos fatos por parte dos gestores, mas igualmente de informação negada à população”, denuncia o documento.
O relatório indica que diversos problemas no painel foram registrados ao longo do monitoramento: “desde a negação da informação – dados que possivelmente não foram preenchidos –, até dados que apareciam e, depois, simplesmente sumiam, através de ‘apagões’ no sistema, inconsistências que se caracterizam, principalmente, pela falta de regularidade na atualização dessas informações no sistema”.
As análises dos pesquisadores também desenham um cenário “deflagrado de subnotificação”, expresso nos documentos do projeto. Os números muito baixos comparados ao cenário publicizado da pandemia são altamente questionáveis para a equipe do Infovírus. Em junho de 2021, por exemplo, a equipe registrou a possibilidade de subnotificação em Santa Catarina, já que havia um alto número de contaminações e um baixo volume de testagem. “A própria testagem aconteceu em regra apenas quando o preso já estava há dias com sintoma de Covid, e não por acaso vários surtos decorreram da falta da testagem em massa”, contextualiza Marília.
OMS recomendou que a população privada de liberdade estivesse entre os grupos prioritários na vacinação (Foto: Pixabay)
Além disso, ela aponta o atraso para a chegada da vacina nas prisões como um fator importante do agravamento da pandemia no cárcere, o que reforça a ideia de desumanização dos detentos. A professora lembra que a Organização Mundial de Saúde recomendou que a população privada de liberdade estivesse entre os grupos prioritários por conta do risco elevado de surtos nesses locais, e o Ministério da Saúde atendeu a essa recomendação.”Mas após manifestações terríveis de pessoas oportunistas no campo político que apostam na desumanização da população privada de liberdade como forma de obtenção de seguidores e votos, os presos foram em vários lugares deixados para o final da campanha de vacinação. Mesmo os presos idosos e com doenças crônicas foram em vários lugares vacinados depois da população livre. Ou seja, temos poucos bons exemplos e muitos maus exemplos do que ocorreu”.
A falta de comprometimento com a garantia do direito à informação sobre a realidade da Covid-19 no sistema prisional é considerada, nos documentos, um reflexo imediato de de um “projeto vigente”. “Entendemos que não se trata de mera negligência, mas a continuidade de uma política de gestão de morte através do cárcere, que manteve as mesmas lógicas e ferramentas jurídicas para negar a liberdade e, com isso, a vida a pessoas que eram dos grupos de risco e mesmo as que não eram e morreram em decorrência da indiferença em relação a essas mortes”, pontua Marília.
A professora se refere precisamente à análise de instrumentos jurídicos que poderiam prever a liberação de detentos que estivessem ameaçados pela doença, mas que tiveram esse direito recusado. “O que predomina nessas atitudes – tanto do Executivo quanto do Judiciário – é um discurso de defesa social, ou seja, de entender pessoas privadas de liberdade como um perigo, um risco, em alguns casos equiparado ao próprio risco atribuído ao vírus”, reflete.
Orientação não foi cumprida
De acordo com Marília, o Conselho Nacional de Justiça, ainda em março de 2020, publicou a Recomendação nº62, que deveria ter sido seguida pelo Judiciário. “A recomendação orientava juízes e administração pública a promoverem políticas de testagem em massa, isolamento/distanciamento, através da redução da superpolução dos presídios com a conversão de prisões de pessoas de grupos de risco e prisões domiciliares, ou ainda, com antecipação de progressão de regime para quem tivesse cumprido os demais requisitos’, lembra.
Apesar disso, conforme a pesquisadora, em poucos lugares a recomendação surtiu algum efeito. “O que temos visto no estudo dos processos judiciais é uma postergação insustentável do momento de concessão da liberdade (ou prisão domiciliar, ou progressão antecipada) que chega (quando chega) apenas no momento em que o preso já está na UTI entubado e de lá já não retornará para lugar algum”, lamenta.
Por isso, segundo ela, somadas às características da prisões brasileiras – espaços propícios para todo o tipo de epidemia e bastante violentos – pratica-se, via de regra, “um tipo de gestão de morte”. A professora comenta que estudos acadêmicos têm trazido o tema à tona – há, por exemplo, uma forte linha de pesquisa no campo da antropologia e da sociologia que investiga o desaparecimento de pessoas no interior do sistema carcerário. “Esse tipo de instituição terrível somente é possível por conta da desumanização racista que atravessa esse sistema e naturaliza o adoecimento e a morte dessas pessoas, assim como o sofrimento das suas familiares”, evidencia.
Marília cita medidas pontuais possíveis para a minimização dos problemas: a redução da população carcerária; a atuação preventiva no campo da saúde, com testagem em massa, boa alimentação para garantir uma boa imunidade, melhores condições sanitárias e a vacinação prioritária.
Mais sobre o projeto
O Infovírus: prisões e pandemia reúne pesquisadores e pesquisadoras com diferentes formações, de diferentes áreas do conhecimento, para monitorar os dados, notas técnicas, comunicações e informações prestadas por instâncias oficiais, além de entrevistas e discursos políticos sobre a pandemia de Covid-19 no sistema penitenciário brasileiro. As informações foram sempre confrontadas com relatos dos familiares de pessoas privadas de liberdade, denúncias dos movimentos sociais e das defensorias públicas. Até julho de 2021, o Infovírus publicou 47 postagens informando mortes de pessoas presas e servidores em decorrência da Covid-19.
O projeto é feito por pesquisadores autônomos e equipes ligadas a grupos de pesquisa da Universidade de Brasília, Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Católica de Pernambuco, Universidade Estadual de Feira de Santana, Universidade do Estado da Bahia, Universidade Federal de Santa Catarina e da Universidade Federal de Santa Maria. Também tem apoio da Rede Justiça Criminal, Open Society Foundantions, ISER, Justa e Fundo Brasil.
Amanda Miranda, jornalista da Agecom/UFSC