Cooperação é a chave para antecipar futuras pandemias, diz pesquisadora da UFSC

17/06/2024 17:21

Ilustração: Laura Araújo/NADC/UFSC.

Em 2020, a Covid-19 tomou o mundo de surpresa. De repente, todos tiveram que se adaptar a uma nova realidade, com os desafios do isolamento físico e os cuidados sanitários constantes. Caso já houvesse protocolos de ação mais efetivos para conter o coronavírus e lidar com suas consequências antes da pandemia ser oficialmente declarada, será que essa adaptação teria sido mais fácil e rápida, e o custo social e econômico seria menor?  

Com esse questionamento em mente, Marcia Grisotti – doutora em Sociologia e professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – desenvolveu o projeto Sentinelas de pandemias: vigilância em saúde e controle de doenças de origem zoonótica, vinculado ao núcleo de pesquisa Ecologia Humana e Sociologia da Saúde em parceria com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Brasil Plural. 

Sentinelas são ações de grupos, instituições ou indivíduos que antecipam e se preparam para eventos, esperados ou incertos. No caso das ações sentinelas de epidemias, a ideia é identificar os grupos de especialistas e fomentar a cooperação entre eles e os serviços de vigilância em saúde para controlar a disseminação de epidemias, monitorando microorganismos, reservatórios e vetores de doenças que podem se alastrar em meio à população. O objetivo do Sentinelas de pandemias é analisar os dispositivos de vigilância em saúde usados no estado de Santa Catarina para enfrentar doenças transmissíveis de origem zoonótica – ou seja, que passam de animais para humanos e vice-versa. Além disso, o projeto também pretende identificar as experiências de antecipação e preparação de pandemias regionais, nacionais e internacionais, considerando obstáculos, potencialidades e desafios na vigilância de pessoas, animais e reservatórios de doenças.

Antes da Covid-19, Marcia já estudava os aspectos sociais, econômicos e políticos das doenças zoonóticas. A doença, no entanto, reforçou  a necessidade  de avançar no estudo dos aspectos sociais das epidemias. Segundo a professora, foram inúmeras as dimensões de análise decorrentes da pandemia: as respostas das instituições de saúde, a produção de conhecimento sobre a vírus, a doença e os doentes, o processo de registro e produção de gráficos para representar e contar os números de casos e mortes, os impactos econômicos, o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS) diante dos novos atores de saúde global, os nacionalismos na gestão da pandemia, as diferentes reações de lideranças políticas, a tensão entre liberdade individual e medidas de saúde pública, a definição de atividades essenciais, as novas configurações de trabalho em tempos de confinamento, a noção de corpo saudável e imunidade, as diferentes percepções da doença (estar doente, poder ficar doente, sentir-se doente), as regras de higiene, o uso de máscaras de proteção, as narrativas em relação à experiência de isolamento físico, a percepção pública da ciência, as fake news, os movimentos antivacinação, entre outros.

“O Estado brasileiro avançou na implantação da cobertura universal à saúde, viabilizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Porém, o mesmo não pode ser dito em relação a algumas medidas de saúde pública. A incipiente política de controle de vetores, os obstáculos no processo de registro e notificação de doenças infecciosas e parasitárias, e a falta de articulação entre os setores de vigilância em saúde humana e animal são alguns exemplos para mostrar que não sabemos, de fato, o que realmente circula no ambiente. Sem esses dados, como fazer política pública, prospectar cenários e formular propostas de mitigação em casos de novas pandemias?”, indaga a professora.

O intuito dos pesquisadores é entender, por meio de entrevistas, se médicos, veterinários, responsáveis por setores de vigilância em saúde humana e animal, e responsáveis por políticas de meio ambiente estão conectados em ações conjuntas. Microorganismos desconhecem fronteiras geopolíticas e alguns deles adquirem a capacidade de cruzar as barreiras entre as espécies, passando dos animais aos humanos, em um fenômeno chamado spillover. Portanto, é necessário identificar se há ações de cooperação para poder melhorar as estratégias de identificação e combate de doenças infecciosas, e antecipar os cuidados em futuras emergências sanitárias. “Qual é a conexão que existe entre os gestores e profissionais de saúde pública (humana e animal) e os especialistas que produzem pesquisas e conhecimento científico? Dentro das universidades, há articulação entre os médicos veterinários e os médicos de humanos? Existe interesse, existem trabalhos conjuntos para pensar o controle das zoonoses?”, questiona.

Em resposta a essa questão, o projeto identificou dificuldades na comunicação entre setores de políticas públicas e áreas acadêmicas, o que impede ações conjuntas de combate às emergências em saúde. Ainda que os profissionais e as universidades reconheçam a importância da interdisciplinaridade, há dificuldades para colocá-la em prática. A consequência da falta de intersetorialidade entre as políticas públicas e os projetos dentro das universidades é o prejuízo no controle das doenças infecciosas emergentes.

Doenças emergentes

Doenças infecciosas emergentes podem ser categorizadas de quatro maneiras: 1) doenças que existiam antes de serem reconhecidas pela ciência; 2) doenças que já existiam, mas seu grau de letalidade aumentou em função de mudanças qualitativas e quantitativas do ambiente; 3) doenças que foram introduzidas em uma região onde não existiam anteriormente; e 4) doenças que emergem a partir da passagem de um reservatório não-humano para humano (o caso das inúmeras doenças zoonóticas).

“Nesta perspectiva histórica, pode-se falar muito mais em doenças que emergem que de doenças novas, pois há lacunas temporais entre a existência de doenças, ou a circulação de microorganismos, e sua descoberta pela ciência. Às vezes você pode imaginar que descobriu uma doença, como foi a doença de Chagas em 1910, mas ela já existia em estudos pré-colombianos, então a doença era nova para a ciência, mas ela já estava circulando”, conta Marcia. “Na década de 1970, várias mulheres morreram nos Estados Unidos e os médicos e pesquisadores não sabiam o porquê, achavam que era uma doença nova. Eles acabaram descobrindo que, na verdade, era um velho estafilococos que estava causando a doença — e por quê? Porque elas usavam um absorvente interno que estava contaminado”. Estafilococos não levam à morte, mas, conforme esclarece a professora, o aumento da temperatura e do tempo de contato com o corpo da mulher fez a letalidade da bactéria aumentar e ela se tornar mais patogênica.

Melhorar as estratégias de identificação e notificação  de doenças emergentes, consequentemente, também melhora o manejo de futuras epidemias e pandemias, pois as antecipa, dando tempo suficiente para os órgãos de saúde pública se organizarem e alertarem a população sobre os cuidados necessários. É preciso entender, também, os fatores de disseminação de doenças de origem zoonóticas, pois eles são diversos e correlacionados, em uma dinâmica chamada “relação ecológica”.

Relações ecológicas são as interações entre seres vivos de uma mesma espécie ou de espécies diferentes. Elas podem ser positivas e benéficas para todas as espécies envolvidas ou negativas, onde uma ou mais espécies são prejudicadas. Alterações no comportamento de uma espécie e interferências no meio ambiente são ações que alteram as características dessas relações ecológicas. “O desmatamento elimina uma quantidade de árvores e faz com que determinados mosquitos e determinados vetores de doenças migrem para outros locais. Até uma atividade muito incentivada para o bem-estar das pessoas, como fazer trilhas nas florestas ou entrar em cavernas, tudo isso pode ser enquadrado como comportamento de risco e de possibilidade de adquirir algum agente patogênico, porque os humanos entram em um espaço que não é deles, é o espaço onde outros microrganismos têm sua existência”, explica Marcia.

Portanto, a ação humana sobre o ambiente em que habita, como o desmatamento, o consumo e comercialização de animais silvestres, a produção e tráfico de bovinos, e as migrações forçadas de humanos são alguns dos mecanismos que podem propiciar doenças emergentes.

Cooperação interdisciplinar

A pesquisa aponta que um dos fatores que dificultam a execução da interdisciplinaridade é a divisão das agências de pesquisa e de políticas públicas em comitês específicos, criando, assim, obstáculos institucionais que impedem o crescimento de ações que envolvem diversas áreas. A iniciativa Uma só saúde – Trabalhar juntos pela saúde dos seres humanos, dos animais, das plantas e do meio ambiente foi publicada em conjunto entre a Organização das Nações Unidas para Alimentos e Agricultura (FAO), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA). O objetivo das instituições é unir suas áreas de atuação para promover as mudanças e transformações necessárias para diminuir o impacto dos desafios de saúde (globais, regionais e nacionais) causados pela interação entre seres humanos, animais, plantas e meio ambiente. A parceria surgiu em resposta à exigência internacional de prevenir futuras pandemias e promover a saúde sustentável até 2026, e é um exemplo de que quando as instituições se mobilizam, a interdisciplinaridade é possível.

No dia a dia, a cooperação entre áreas se dá quando médicos de saúde humana trabalham em conjunto com agentes de saúde pública que rastreiam animais para o controle de possíveis patogênicos. Ao atender um paciente acometido por doenças de origem zoonótica, como a tuberculose, o médico, em parceria com veterinários e o setor agropecuário, pode descobrir qual microbactéria a causou – se foi de um bovino, de aves ou de outro humano – para alertar os órgãos de vigilância epidemiológica. A experiência do Sistema de Informação em Saúde Silvestre (SISS-Geo) é um exemplo recente bem sucedido no controle da febre amarela em diversas regiões do Brasil.

Outro exemplo de cooperação interdisciplinar ligada à vigilância de doenças é o estudo SARS-CoV-2 in human sewage in Santa Catarina, Brazil, November 2019, de pesquisadores da UFSC, da Universidade de Burgos (Espanha) e da startup BiomeHub. Ao analisar amostras congeladas do esgoto de Florianópolis colhidas em novembro de 2019, os pesquisadores identificaram partículas do coronavírus dois meses antes do primeiro caso clínico ser relatado no Brasil e se consolidando como o relato da primeira presença confirmada do vírus nas Américas. Segundo Gislaine Fongaro, do Laboratório de Virologia Aplicada (LVA/UFSC), a descoberta só foi possível porque as amostras coletadas por outros estudos foram disponibilizadas. Essa comunicação e cooperação entre diferentes departamentos de pesquisa contribuíram não só para entender quando o vírus começou a circular no país, mas também para destacar a importância da utilização do monitoramento do esgoto da população para programas sentinelas.

 

Sentinelas no Brasil


Infográfico: Laura Araújo/NADC/UFSC

Sentinelas nas fronteiras

Se a comunicação entre setores é importante, isso se intensifica nas regiões de fronteira entre estados e, principalmente, países. Os órgãos de vigilância sanitária e epidemiológica são estaduais e há estados com regimes mais rigorosos, enquanto outros são mais flexíveis. O mesmo ocorre entre países. Portanto, em regiões limítrofes, é preciso definir a responsabilidade sobre os animais doentes que vivem ali, considerando que estes podem infectar humanos de ambos os lados, bem como afetar a economia local.

Para tanto, é necessário ter um sistema de governança para gerenciar os processos que ocorrem nas fronteiras. “A questão que está colocada é: como vai ser feita a governança e a vigilância em áreas de fronteiras?”, indaga a professora. “É aí que a gente fala de saúde global, onde não é um país que tem que tomar medidas, mas sim uma atividade conjunta, senão os dois podem ter problemas de contaminação”.

A pandemia de Covid-19 evidenciou a necessidade de investimento na governança em saúde global: a comunicação entre os países foi fundamental para antecipar ações de manejo e contenção da doença, bem como ter acesso aos diversos dados referentes a ela, como alterações na curva de infectados de acordo com a estação do ano, queda de internações após a vacinação em massa, entre outros. Essa comunicação, porém, depende dos sistemas locais de saúde para poder acontecer a nível global. “Quando a OMS recebe os dados de saúde sobre o que está acontecendo no mundo, tudo isso só é possível se os governos locais, ou seja, cada município, consiga registrar de forma sistemática e contínua o que acontece. Se há falhas nesses processos, toda a cadeia tem problemas”, explica Marcia.

Portanto, se a saúde global depende dos dados produzidos localmente, é preciso estimular a consciência sanitária em todos os órgãos de educação, governança e saúde – desde as prefeituras até as universidades e fundações de pesquisa – e promover o entendimento sobre a interdependência das relações entre humanos e animais não-humanos quando se trata de saúde.

Sobre a pesquisadora

Foto: Arquivo pessoal

Marcia Grisotti é professora titular no Departamento de Sociologia e Ciência Política e coordenadora do Núcleo de Pesquisa Ecologia Humana e Sociologia da Saúde. Pesquisa Sociologia da Saúde, com ênfase nos temas de sociologia e história das epidemias e do conhecimento médico; representações sociais em saúde; sociologia das doenças infecciosas emergentes; e políticas de saúde e de meio ambiente.

Contato: marcia.grisotti@ufsc.br 

Reportagem: Leticia Bueno | Jornalista / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica
Edição: Denise Becker | Jornalista / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica
Ilustrações: Laura Araújo | estagiária de Design / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica

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