Se fosse para sintetizar o pensamento de Massimo Cavenacci, o oposto do dito popular “quem gosta de velharia é museu” exprimiria bem o que prega o antropólogo italiano. Não há nada mais atual do que colecionar as relíquias do contemporâneo. Ao falar sobre Os desafios do museu no século XXI, o catedrático da Universitá di Roma La Sapienza e professor convidado do Departamento de Psicologia da UFSC defendeu a polifonia dos museus, a exposição de acervos museais em espaços dinâmicos da cidade e a apropriação das tecnologias digitais para a autorrepresentação das culturas e identidades. Em suma, o museu contemporâneo deve se constituir na mobilidade da vida urbana, incorporar as novas tecnologias e estar atento à pluralidade das culturas. A conferência atraiu uma plateia de cerca de cem pessoas, entre alunos, professores e comunidade em geral para o pequeno auditório do Museu Universitário na tarde da terça (29), abrindo o primeiro evento do ciclo de debates O Pensamento do Século XXI e da série Museu em Curso deste ano.

Fotos: Paulo Noronha/Agecom
Lançador de instigantes neologismos conceituais como “multivíduo performático” e “desnativização” o autor de A cidade polifônica – Ensaios sobre a antropologia da comunicação urbana mostrou que as posturas e performances de corpo são objetos privilegiados das coleções museológicas do presente e propôs que o museólogo suspenda o conceito de nativo, à medida que traduz um olhar colonialista em relação ao outro. “O museu deve favorecer a multiplicação da subjetividade”, afirmou. Dentro desse contexto, é fundamental repensar sua função na sociedade. E para isso, Massimo defende que “a identidade da cultura não pode ser só das raízes”, lembrando a expressão “from roots to routes” (de raízes para rotas): “O museu contemporâneo precisa mudar, de raízes para itinerários. As raízes bloqueiam a cultura, enquanto que os itinerários favorecem as subjetividades”. A artista plástica brasileira Nele Azevedo, de acordo com o antropólogo, exemplifica essa ideia. Criadora de mil homenzinhos de gelo que foram colocados na escadaria da sala de concertos da Gendarmenmarkt, em Berlim, para uma campanha da WWF sobre o aquecimento global realizada em 2009, viu sua obra durar cerca de meia hora. “É interessante pensar na força de um tipo de arte que, descongelando, vira água. Acredito que uma parte do museu deve ser temporária, pois assim ele sempre se renova”.
A renovação dos espaços que abrigam a arte contribuiria para que os espectadores – ou os “performáticos”, que seriam os observadores que interagem mais ativamente com as obras – pudessem experimentar diante do outro, do estranho e do diferente o “estupor”, definido pelo dicionário português Priberam como “efeito, geralmente imobilizante, de grande espanto ou surpresa”. Massimo afirma que o som da palavra o agrada, preferindo relacioná-la ao espanto, mas acredita que essa significação ainda não seja a mais adequada. “A arte precisa modificar a identidade das pessoas. Não posso ser o mesmo depois de interagir com ela”. Mas para que essa transformação possa acontecer, é necessário que o performático se permita se entregar ao estupor. “É o posicionamento corporal em relação ao que é desconhecido e que desejo encontrar. É um momento antes da contemplação, e meu corpo precisa se abrir – boca, olhos, nariz, ouvidos – para absorver a obra de arte”.
A câmera dentro da câmera dentro da câmera
O professor mostrou fotos feitas dos chamados nativos, em que são retratados de maneira inferior aos colonizadores, podendo criar um tipo de deslocamento ou de invasão – “e se pensarmos na definição de ´nativo`, que ´provém de determinado lugar´, um índio seria nativo na Europa?” – defendendo seu direito à autorrepresentação e à desnativização. “Fui convidado pelos Bororos, no início dos anos 1990, a participar do ritual de furação de orelhas, que acontece a cada sete anos. Cheguei com câmeras, e me deparei com três deles gravando a atividade. Meu papel clássico, então, estava em crise; eles precisavam ser os sujeitos que davam sentido ao próprio ritual. Coloquei, nesse momento, minha câmera atrás das deles, enquadrando-as, para registrar o contexto”.
Além dessa multiplicidade cognitiva, que é potencializada também pela internet, Massimo já disse, em entrevista ao blog overmundo, que gosta de ”utilizar o artigo no singular, e o pronome no plural, isto é, o eus”. “O conceito de multivíduo, para mim”, continua, “é um conceito mais flexível, mais adequado à contemporaneidade. Por que significa que multivíduo é uma pessoa, um sujeito, que tem uma multidão de eus na própria subjetividade”. Esse eus também foi representado através de imagem que mostrava uma mulher se despindo da própria pele abrindo zíperes que tinha espalhados pelo corpo, revelando outras camadas epidérmicas. “Como o museu enfrenta o pós-humano, isto é, a arte digital? Que tipo de experiências podemos desenvolver? Quantas peles a gente tem? Há um número limitado? Quais as diferenças entre corpo e tecnologia?”, questiona.
Museu & cinema
Tahuany Coutinho, de 24 anos, é caloura de Museologia e assistiu à palestra. “Gosto da possibilidade de perceber o museu não simplesmente como um espaço onde as obras são expostas, mas sim como oportunidade de transformação através do contato com a arte”. A estudante conta que alguns professores do curso defendem o ponto de vista do antropólogo, e ressalta que o “museu não deve ser para alguém e sim com alguém”. Quase formada em Artes Cênicas, Tahuany veio de São Paulo com a intenção de se graduar em Cinema, mas acabou optando por Museologia por causa do viés antropológico do curso. No entanto, vê semelhanças entre os dois, quando pensa na importância do museu se valer de recursos, como os audiovisuais – como fazem os museus paulistas da Língua Portuguesa e do Futebol -, para envolver os performáticos.
Os projetos ´O Pensamento no Século XXI` e ´Museu em Curso` foram concentrados em torno dessa conferência para evidenciar os desafios das instituições museológicas hoje. Na continuidade do projeto Museu em Curso, a cada mês, será realizada uma palestra voltada para as diversas áreas da teoria e da prática museológica.
Mais informações: 48 3721-8604 ou 9325 ou ufsc.mu.museologia@gmail.com.
Por Cláudia Schaun Reis/Jornalista na Agecom e
Raquel Wandelli/Jornalista na SeCArte