Um guardião da memória da cultura açoriana. Um entusiasta das histórias da Ilha de Santa Catarina. Um artista popular. Um pioneiro na introdução da museologia no estado. A biografia de Peninha – o Gelci Coelho -, que faleceu na madrugada desta quinta-feira, 16 de março, em São José, é daquelas que prendem qualquer leitor.
Na Universidade Federal de Santa Catarina, foi diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia Oswaldo Rodrigues Cabral (Marque), tendo cultivado uma história de amizade e de parceria com o artista Franklin Cascaes – cuja morte, coincidentemente, fez 40 anos nesta quarta-feira, 15 de março. O velório será em São José, na Igreja de Nossa Senhora dos Passos, das 11h até 15h30, quando saíra o cortejo para sepultamento, às 17h, no Cemitério Municipal de São José.
“Para nosso museu, Peninha foi um dos mais importantes e presentes pilares, ao longo de toda sua trajetória. Moldou, através de seu sempre comprometido e incansável trabalho, muito do que somos. Foi, mesmo depois de sua aposentadoria em 2008, figura central, sempre à disposição da instituição para colaborar, dividindo seu talento e seu conhecimento”, informa a nota de pesar elaborada pelos colegas do Marque, onde Peninha foi diretor por mais de uma década.
A historiadora Elizabeth Neves Pires relembra o pioneirismo do artista ao trabalhar pela capacitação dos trabalhadores de museus. “O curso de Museologia da UFSC também faz parte dessa história. Muitos dos trabalhadores de museus eram pessoas leigas e lutamos para a criação do curso”, recorda ela, que esteve com Peninha dias antes de seu falecimento.
“Aprendi muito com ele. A humildade que ele tinha e a vontade de repassar o conhecimento sempre foram exemplo. Na UFSC, a montagem dos presépios na frente do Museu fez parte dessa história”, conta a amiga. Ela também lembra que a trajetória do artista na cultura popular fez com que, em muitos momentos, fosse marginalizado na academia. “Ele dizia que doutor não carregava cadeira e ele sim”, narra.
Peninha era formado em História pela UFSC e especialista em Museu, Educação e Artes pela Universidade de São Paulo. Dedicava-se à extensão universitária com seu trabalho como museólogo. Trabalhava com oficinas nas quais ensinava a construir alegorias do folguedo folclórico do Boi de Mamão, promovia palestras sobre mapeamento cultural de base açoriana, entre outras coisas. Também criou e coordenou o Núcleo de Estudos Museológicos.
Em um trabalho de conclusão de curso de História, Peninha é citado como um dos principais responsáveis pela publicização dos trabalhos de Franklin Cascaes – cuja casa dos pais ele conhecia desde a infância. Além disso, foi graças à insistência dele que a UFSC recebeu todo o acervo produzido pelo artista. A aproximação entre eles, portanto, foi fundamental para a arte catarinense. “Cascaes retomou seu processo de trabalho, circulando de forma constante nos circuitos artísticos do estado e expondo individualmente em algumas cidades catarinenses. No meio cultural Cascaes começou a ter sua obra reconhecida e constantemente exposta para o público em geral”, sinaliza o texto de Alan Cristhian Michelmann.
Peninha (no canto à direita) na abertura de exposição da obra de Franklin Cascaes, em 1974. Foto: Acervo Agecom.
Manezinho raiz
Nascido em São Pedro de Alcântara, em 10 de agosto de 1949, Gelci José Coelho, o Peninha, foi um dos guardiões da história, memória, cultura e arte de Santa Catarina. Cresceu e viveu em São José e na Enseada de Brito, em Palhoça. Com formação em História e Museologia, trabalhou desde os 21 anos até a aposentadoria na UFSC junto ao MArquE. Nesta instituição, atuou em pesquisa, guarda de acervo, exposição, gestão em museologia e se tornou, em 1996, Diretor do Museu, cargo no qual permaneceu até se desvincular da instituição, em 2008. Trabalhou com o artista, folclorista e pesquisador Franklin Joaquim Cascaes por mais de uma década, sendo seu assistente e aprendiz.
Foi artista plástico, perfomer, ator, dramaturgo, produtor de instalações urbanas como o Presépio Natural e Artesanal da Praça XV de Novembro no centro de Florianópolis. Foi apoiador e consultor de atividades culturais ligadas à herança dos açorianos, dos descendentes das nações africanas e indígenas que habitam o litoral catarinense, sendo também um reconhecido contador de histórias.
Dentre as lendas de sua autoria, a mais famosa é a do Baile das Bruxas em Itaguaçu. As icônicas pedras da praia no bairro de Coqueiros, na parte continental de Florianópolis, seriam bruxas que foram petrificadas por não terem convidado o diabo para a grande festa que promoveram ali. A lenda já faz parte do repertório cultural da região e foi devidamente reconhecida pelo poder público municipal, que a registrou em uma placa de ferro fixada no local. As ‘Pedras de Itaguaçu’ foram tombadas como Patrimônio Natural, Paisagístico e Cultural do Município em 2014.
Em 2019, lançou o livro Narrativas absurdas: verdades contadas por um mentiroso, em que mescla sua história de vida com lendas, contos e casos raros do litoral de Santa Catarina, narrando sua trajetória desde as primeiras lembranças. A comunidade universitária, enlutada, solidariza-se com a família e os amigos de Peninha.