Eu não denominava, mas aquela questão de ser chamada de macaca eu percebia que eram dirigidas para as pessoas negras…Pra mim foi uma ruptura profunda entender este mundo agressivo e hostil… Ai o que aconteceu: eu comecei a dizer pra minha mãe que eu tinha dor de cabeça, ai eu não ia para a aula. Eu amava estudar só que, ao mesmo tempo, eu não queria passar por aquilo todos os dias. De ser xingada, hostilizada.
O tempo todo eu era chamada de negrinha suja, suco de pneu, suco de asfalto. E isso se estendeu até a sexta série quando mudei de escola.
Hoje eu consigo ver que, se eu cheguei ao ponto de aos nove anos, de bater, foi o último assim, um estresse muito grande… eu tinha chegado no meu limite. Como a criança negra ela se sente sozinha assim porque… talvez hoje se tenha uma atenção porque a gente fala mais disso, mas antes se não era como a minha mãe respondeu… como se fosse algo simples sabe, tipo “ah, esquece, não dá bola que para”, “ah, se o fulaninho briga muito. iiih é porque gosta”. Sabe estas coisas assim de não dar bola pra um problema que é grave só porque é criança. Só que, com certeza, isso nos afeta muito.
Os trechos acima são reprodução de depoimentos coletados pela pesquisadora Sandra Tonhote Sousa ao longo da sua pesquisa de mestrado, defendida em junho de 2020 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Hoje cientista social e pesquisadora, ela também já foi criança. E embora tenha feito parte de um núcleo familiar que sempre positivou a negritude, a aproximação com coletivos e movimentos sociais fez com que decidisse se dedicar ao que precisa ser dito e enfrentado socialmente.
Por meio de entrevistas concedidas a ela por quatro mulheres e de narrativas públicas de quatro personalidades, ela investigou o racismo na infância. Mesmo sabendo que estaria diante de dores compartilhadas, foi um percurso fundamental para trazer à tona um debate importante. “A ideia de explicitar o racismo é justamente para combater. Temos bastante debate sobre relações raciais na academia e na política, mas na sociedade falta um pouco esse olhar para a infância, para esse sujeito que está começando a se entender e já está sendo vítima”, contextualiza.
Na dissertação Trajetórias Negras e Racismos: Memórias da Convivência Inter-racial na Infância, orientada pela professora Ilka Boaventura Leite, ela conclui que a descoberta do racismo pela criança negra pode ser interpretada em analogia com o mito da caverna de Platão. “Antes da primeira experiência amarga, acreditamos conhecer o mundo de uma maneira, mas, após, ele vai mudar significativamente quando somos de repente jogados para fora, lançados a outra realidade. Assim, depois de um episódio terrivelmente desconfortável, passamos a conhecer a realidade com a qual vamos conviver a partir de então”, escreve. As pesquisas bibliográficas também indicaram que as crianças negras podem experienciar ou passarem a ser vítimas da radicalização desde o berçário, na educação infantil ou até mesmo no interior das famílias.
O percurso não foi prazeroso. Sandra teve de se confrontar com as suas memórias e remexer nas dores das suas entrevistadas. Apesar disso, tanto ela, quanto as interlocutoras na pesquisa compartilhavam de um mesmo objetivo: “a gente tem que promover mais esse debate como forma de acabar com isso, de mostrar que existe, de chamar atenção para esse ponto”.
No caminho, deparou-se com pesquisas que retratavam a infância e o racismo sob a ótica da educação e usou a antropologia para se aproximar desse campo de estudos. Também investigou questões relacionadas à memória e à diáspora africana e, com o auxílio da autora portuguesa Grada Kilomba, remonta ao que a escritora chama de “a dor indizível do racismo”.
Nesse aspecto, lembranças de olhares, de apelidos e de gestos de censura a traços físicos identitários – como o cabelo, por exemplo – permeiam as narrativas trazidas na pesquisa. “Lembro de uma vez em que meu pai fez um trabalho, ele foi cobrar um dono de um restaurante e o dono do restaurante não tinha dinheiro, então falou que o meu pai poderia ir jantar com a família dele. E nós fomos comer num restaurante bem classe média no centro da cidade. Eu nunca vou esquecer quando a gente entrou e todo mundo olhou. Foi horrível”, disse uma das entrevistadas.
Para Sandra, nem mesmo a classe social é um mecanismo que afasta o racismo. A entrevista do cantor e compositor Gilberto Gil, que ela analisa na pesquisa, é um retrato disso: mesmo pertencendo a uma elite, à classe média, quando ele sai do contexto familiar e social em que os pais eram reconhecidos, o racismo passa a permear a sua existência. “No ciclo em que ele estava inserido ele podia ser lido como branco, depois que ele sai daquele ciclo acaba se deparando com o racismo. A racialização está na estrutura social, em todas as sociedades”, comenta.
Precisamos falar sobre
Na pesquisa, Sandra também remonta o momento em que opta pela construção de um objeto capaz de acionar dores e memórias tristes. Ela lembra que, quando começou a estudar relações raciais, sua ideia era fugir de assuntos delicados e investigar outros aspectos de fortalecimento identitário. Mas as leituras a fizeram subverter esse pensamento. “Fui entendendo a gravidade do tema e vi que não tinha como fugir. O debate é urgente. Precisamos falar do racismo, da juventude negra assassinada e de assuntos dolorosos”.
Por conta das características da pesquisa, ela teve dificuldades, por exemplo, em formar uma rede maior de entrevistados. As vozes que ecoam no estudo são, em sua maioria, de mulheres. Todas as entrevistas realizadas por ela também são com interlocutoras femininas. “Eu não consegui entrevistar homens. E entendo que isso tenha acontecido porque, para um homem, é mais difícil se colocar nesse lugar de fragilidade. É uma parte da masculinidade que se tenta esconder”.
Em contrapartida, as vivências captadas no estudo de Sandra revelam muitos padrões de comportamento de uma sociedade racista. Para ela, trata-se de uma disputa de narrativas, já que a ideia de raça é uma construção que vem afetando a toda a sociedade, por séculos e gerações. “Isso nubla a nossa percepção de realidade, tanto os sujeitos brancos, quanto os não-brancos, seja um para se sentir superior e outro inferiorizado”, pondera. “A gente tem consciência de que é uma narrativa e tem que tentar construir outra, contribuir minimamente para isso. E o esforço das pesquisas vai nesse sentido”, completa.
Amanda Miranda/Jornalista da Agecom/UFSC