Professora leva temática antirracista em projetos de extensão para assistentes sociais
A única professora negra do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina, Cris Sabino, ingressou como docente na instituição no ano de 2019. Logo que chegou ao departamento, encontrou estudantes organizados e solicitando que o curso oferecesse disciplinas voltadas ao estudo das relações raciais. Além do ensino, havia lacunas a serem preenchidas na pesquisa e na extensão, e a presença da nova professora contribuiu com a criação de disciplinas e projetos que levaram o debate sobre racismo para além da universidade.
“Havia uma grande demanda reprimida, vindo principalmente dos estudantes, pela discussão de temática étnico-racial, racismo estrutural, articulando com o debate da superexploração da força de trabalho. Percebi que havia essa lacuna no meu departamento e no Centro Socioeconômico”, relata a professora. Além da mobilização dos estudantes, por meio do Coletivo de Estudantes Negras e Negros de Serviço Social – Magali da Silva Almeida, a demanda vinha dos conselhos profissionais, especialmente os conselhos Federal e Regional de Serviço Social (CFESS e o CRESS-SC), que traziam à época eventos com temas acerca do combate ao racismo na atuação profissional.
“Criamos uma disciplina optativa sobre relações raciais no Brasil, além de projetos de pesquisa sobre a relação entre Estado e racismo estrutural, e sobre o trabalho doméstico”, relata Cris. A disciplina foi ministrada de forma presencial nos dois semestres de 2019, com turmas lotadas. No segundo semestre daquele ano, os alunos de outros cursos também pediam para frequentar a disciplina. Durante a pandemia, a disciplina foi oferecida remotamente como “Tópicos Especiais” e ainda seguiu tendo boa receptividade pelos alunos do curso de Serviço Social.
O motivo, acredita Cris, é a demanda que surge quando as universidades adotam a Política de Ações Afirmativas, e as instituições passam a mudar, a atrair alunos, professores e técnicos de diferentes percursos sociais. A disciplina no curso de Serviço Social só foi criada porque a professora Cristiane Sabino chegou ao Departamento. “Foi porque eu assumi o debate, não porque as pessoas desconheciam a questão racial, mas não havia a identificação. Só que, na verdade, o racismo não é uma temática que precisa de uma pessoa negra para ser debatida, é um debate de todo mundo.”
Debater e problematizar o racismo em sala de aula ainda é algo que enfrenta resistências. “O mito da democracia racial é muito forte, há essa percepção que não precisa debater, não precisa problematizar, mas isso não é a realidade. Os dados mostram que existe uma estrutura desigual que precisa ser debatida”, diz a professora.
Para Cris, todos os cursos de graduação têm como se beneficiar do debate sobre o racismo. “Não tem nenhuma área em que o debate sobre o racismo não seja fundamental. Na saúde, por exemplo, é preciso estudar a incidência de determinadas comorbidades, conhecer quem é o usuário do SUS. Sem isso, não há como ter uma formação que atenda às necessidades sociais”.
Extensão Antirracista
Esse debate, que chega às disciplinas de ensino, permeia também muitos projetos de extensão, atividade que leva a Universidade às diferentes esferas da sociedade. No caso de Cris Sabino, os projetos de extensão também foram inspirados por demandas já existentes junto às assistentes sociais e suas entidades representativas.
“Estamos, na UFSC, em um momento de curricularização da extensão, com muitos departamentos buscando alternativas. São tantas demandas que a sociedade tem para a universidade, que eu vejo que qualquer que seja a extensão, podemos ter inserida a perspectiva de debater o racismo. Senão, vamos acabar fazendo uma extensão que é uma imposição, um silenciamento. Minha proposta é articular a extensão às práticas antirracistas, e eu vejo nisso uma potência gigantesca”, reforça a professora, que se autointitula uma entusiasta da extensão universitária.
Em 2019, os conselhos de Serviço Social difundiram campanhas de combate ao racismo, e no mesmo ano, Cris coordenou um projeto criado para elaborar recursos didático-pedagógicos para assistentes sociais e outros profissionais, para informar e formar profissionais atuantes no âmbito das políticas sociais, especialmente na região da Grande Florianópolis.
A intenção foi levar informações sobre o racismo estrutural e formas de combatê-lo, para que as práticas antirracistas fossem assimiladas pelos assistentes sociais participantes, e que essa formação gerasse uma melhoria nos serviços prestados à população negra e indígena no âmbito das políticas sociais.
“Aí em 2020 veio a pandemia, tivemos que mudar um pouco a produção de recursos e focar mais na formação. Promovemos eventos, alguns em parceria com o Coletivo Magali da Silva Almeida, do curso de Serviço Social. Veio uma demanda do Comitê SUAS-SC Covid-19, englobando o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), dentre muitas ações de formação”, enumera Cris.
As ações de extensão continuaram, e em 2020 foi criado o curso de curta duração “Racismo Estrutural e Política de Assistência Social”, coordenado pela professora Cris Sabino, com módulos envolvendo professores de outras áreas da UFSC, como a professora Karine de Souza Silva, do Departamento de Economia e Relações Internacionais e a professora Lia Vainer Schucman, do Departamento de Psicologia. Além do racismo contra a população negra, o curso debateu a questão indígena, os direitos sociais, e a branquitude.
“Abrimos o curso com 60 vagas e no primeiro dia já havia 150 inscrições. Quando chegamos às 300 inscritas, resolvemos encerrar as inscrições. Fechamos em 70 vagas, e não foi possível abrir mais, já que o curso demanda um acompanhamento das alunas e não teríamos como oferecer isso para um grupo tão maior. Então ficamos com essa demanda reprimida, e está nos planos fazer uma segunda edição”, conta.
A política de assistência social, explica a professora, tem a população negra como público majoritário. “O Bolsa Família era formado com cerca de 70% de mulheres negras como beneficiárias. Então suplementar as/os trabalhadoras/es que estão implementando essas políticas por meio da extensão, ajuda a problematizar o racismo estrutural, combater suas manifestações institucionais e a fomentar a crítica para que os profissionais não reproduzam os preconceitos, e atuem de forma antirracista”, salienta.
Outro projeto de extensão desenvolvido pela professora teve o apoio da Secretaria de Cultura e Arte (SeCArte) da UFSC: o projeto “Mapeamento e Difusão de Arte Antirracista – ‘Lélia Gonzales’”, desenvolvido no âmbito do Coletivo Veias Abertas, vinculado ao curso de Serviço Social e ao Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA).
A iniciativa de extensão mais recente com coordenação de Cris Sabino é o projeto Práxis Antirracista, que busca formar os formadores, ou seja, formar assistentes sociais para replicar o conhecimento das práticas de combate ao racismo na profissão. Nesse curso, cerca de 20 alunos são acompanhados em uma formação mais aprofundada.
“O curso tem apenas assistentes sociais negras de Santa Catarina, e a ideia é que elas consigam replicar, atuar na formação dos demais colegas. Isso para mim tem sido muito importante, porque é ruim você ser uma das poucas que lidera projetos assim. Portanto, formar outras pessoas para replicar o debate, fortalecendo e aprofundando a linguagem, ajuda a sair um pouco dessa solidão de sempre ser uma das poucas no âmbito da profissão a realizar formações sobre o debate antirracista”, diz. O Práxis Antirracista termina em 2022, e tem como objetivo também produzir um material que possa ser utilizado para futuras formações.
“A gente percebe nos cursos um desconhecimento sobre o que é raça, o que é discriminação, preconceito e racismo, o que é a branquitude. No primeiro curso, a maioria dos participantes era branca. Trabalhamos com a complexidade do racismo, tentamos mostrar o quanto ele é complexo, sofisticado, manifesta-se em diferentes níveis… no trabalho, nas relações de exploração do trabalho, nas políticas e nas instituições”, explica Cris.
Ela salienta que nos projetos de extensão, em meio à interlocução com os trabalhadores do Serviço Social, aparecem os problemas cotidianos que eles enfrentam, e para os quais buscam respostas, estratégias, construídas com a Universidade por meio do diálogo. “Isso só é possível por meio da extensão. Temos um trabalho de sistematizar os elementos que vem dos cursistas, e vemos as estratégias que podemos criar para pelo menos mitigar isso no cotidiano, e como politicamente e coletivamente pensar estratégias mais combativas. Estamos muito dispostas a entender os temas, escutar as pessoas… a extensão exige isso da gente. Não se trata de levar um programa pronto e acabado, mas escutar e aprender. É uma via de mão dupla, uma troca. E, para as estudantes envolvidas é um espaço de muita formação, contempla as lacunas do ensino por meio da extensão”, reforça.
Para saber mais
Cris Sabino tem dado continuidade à pesquisa que desenvolveu em seu doutorado, que também ocorreu na UFSC. Sua tese deu origem ao livro “Racismo e a Luta de Classes na América Latina”, pela Editora Hucitec. Seu trabalho com o Coletivo Veias Abertas está disponível no site do IELA e no Instagram.