40 anos sem Franklin Cascaes: Jânio Quadros foi inspiração para uma das últimas obras
“Espionagem a Figueiredo: aparelho de escuta de novo no trabalho”. Na manchete do jornal Correio Braziliense de 16 de março de 1983, o retrato de um Brasil distante na sua estrutura política e social, separado, em 40 anos, por presidentes, histórias e por uma perda irreparável para Santa Catarina: a morte do artista, professor e pesquisador Franklin Cascaes.
Exatamente no dia anterior, em 15 de março de 1983, Cascaes partia, aos 74 anos, deixando um legado de valor inestimável. Na página 6 do mesmo jornal, que apresentava o noticiário político de um Brasil às vésperas de sua abertura democrática, um registro pequeno, em duas colunas, com o título “SC perde maior artista”. Na nota, Franklin Cascaes é apresentado como um artista popular, que durante a vida “confeccionou peças em barro retratando o folclore da ilha”.
O obituário também registra que ele “fazia desenhos e escrevia o que pescadores e a gente humilde da Ilha de Santa Catarina lhe contava”, finalizando com a informação da estada do artista em Açores, onde permaneceu por um ano fazendo suas pesquisas. “Abordava sempre a magia e a história vista sob a ótica popular. E por esta razão ele constituiu a história do folclore de Santa Catarina”.
Notícia em jornal de circulação nacional, Cascaes foi um pesquisador e artista interessado em retratar e resgatar seu entorno diante dos desafios da modernidade. Uma rara exceção são os desenhos em que retratava Jânio Quadros, presidente do Brasil em 1961. A peça que pode ser um dos últimos trabalhos artísticos do professor está atualmente em exposição no Museu de Arqueologia e Etnologia da UFSC (MArquE), das 9h às 17h, de terça a sexta-feira. Intitulada Campanha Eleitoral de Jânio Quadros, a obra de grafite sobre papel (65,2 x 96,1 cm) data de 1982, um ano antes do seu falecimento.
O desenho foi analisado como parte da tese da professora do departamento de Ciências da Informação da UFSC, Aline Carmes Krüger. Ela estudou e interpretou obras de Cascaes e do artista Hiedy de Assis Corrêa , o Hassis. “O personagem cavalga um cavalo tripernas juntamente com uma bruxa, e distribuem moedas e estrelas à população que caminha abaixo deles, carregando vassouras e outros objetos. A vassoura, símbolo da campanha eleitoral de Jânio Quadros, também objeto de uso pessoal das bruxas no imaginário popular, está atrelada na composição de sua obra”, resume, no texto da pesquisa.
Ela conta que Cascaes costumava indicar a data completa nas obras em estágio de pesquisa. No caso dessa, não é possível assegurar a data, somente o ano, que ele mesmo anotou na imagem: 1982, possivelmente meses antes de morrer.
Na tese, defendida em 2016, Aline buscou estudar uma temática variada da obra do artista. “A ideia da pesquisa era buscar obras que estivessem relacionadas à memória da cidade”, comenta. Nesse percurso, Jânio Quadros surge como um personagem da memória nacional, mas retratado com vassouras – o instrumento que, segundo o então candidato, iria varrer a corrupção do país. As vassouras, conforme lembra Aline, são um recurso que remete às bruxas, personagens também presentes no repertório do artista. “Ele ficou admirado com o uso da vassoura, que estava atrelada às bruxas, e ao espetáculo das pessoas segurando vassouras”, comenta. Foi, por isso, uma inspiração recorrente.
Conforme a pesquisa da professora, na campanha “bruxólica-eleitoral”, Cascaes produziu oito desenhos relacionados a Jânio Quadros, além de oito relacionados ao jogo do bicho, proibido pelo então presidente. Em uma dessas obras, Cascaes chegou a criar também uma carta, onde Jânio agradecia às bruxas por seu empenho. O estudo também traz um depoimento do próprio artista sobre suas obras, um ano antes de assinar o desenho que pode ter sido um dos seus trabalhos derradeiros.
“Em minha vida artística, Jânio Quadros com a vassoura símbolo da sua campanha política foi o bruxo mais autêntico que conheci. Naqueles comícios políticos achava muito importante toda a gente ostentar vassouras: bruxas velhas, bruxinhas novas, bruxos cultos e incultos. Logo tratei de documentar estas cenas bruxólicas, magníficas. Pois vassoura não é montaria de bruxas em estado fadólico? Eram verdadeiras procissões bruxólicas aqueles comícios. As cenas eram tão lindas e tocantes que eu ficava comovido quando assistia. Pareciam cenas das épocas medievais onde tudo cheirava ao natural. E mais uma poesia folclórica nasceu naqueles dias”, escreveu Cascaes no depoimento.
Curadoria propõe expandir e diversificar olhares sobre a obra de Cascaes
A proposta de expandir e diversificar os olhares sobre a obra de Franklin Cascaes faz da exposição “FRANKLIN CASCAES – Artista”, promovida na UFSC desde novembro, uma das portas de entrada num universo que por muitos anos foi centrado exclusivamente nos aspectos mágicos das produções do artista. “Seus trabalhos partiam de uma engajada coleta de histórias e tradições orais da cidade e seu entorno. No entanto, sua produção não se limita apenas ao registro documental destas pesquisas”, informa o texto de curadoria.
Lucas Lopes, museólogo do Marque e um dos curadores, explica que a proposta do conjunto de peças – entre esculturas e desenhos – é registrar a variedade estilística e temática de Cascaes. “Mesmo com a mesma temática, a forma de fazer era diferente em uma obra e outra e nós queríamos mostrar isso”, aponta, trazendo como exemplo as diferentes imagens de Jesus Cristo crucificado que compõem o acervo.
A forma como a sua pesquisa e seus textos aparecem anotados nas obras também é uma característica marcante de Franklin Cascaes. Um dos seus boitatás expostos no Marque, personagem que aparece em diversas produções, foi desenhado em uma colagem de papéis, sinalizados com uma série de manuscritos: alguns deles exigem um certo conhecimento prévio da caligrafia do pesquisador.
Nas esculturas, outro aspecto marcante da produção em argila: cada peça reproduz uma fisionomia única identificada nas pesquisas, entrevistas e conversas do artista. “Cada indivíduo tem uma expressão, pois ele buscava muito retratar essa individualidade”, observa.
A exposição tem acessibilidade. Há objetos impressos em 3D, possibilitando a dimensão da experiência tátil. Também há audiodescrição disponível em QR-Code. A acessibilidade não está disponível para todas as obras, mas permite o acesso à parte do repertório do artista.
Lopes também reforça um aspecto crucial e raro sobre a vida e a obra de Cascaes: ao manifestar seu interesse em preservar seu acervo – composto por cadernos, esculturas, desenhos, manuscritos e objetos pessoais – ele compartilhou sua forma de ver o mundo e apresentou o seu universo. “Ele era sua própria coleção”, pontua.
Cascaes na UFSC
Antes da morte, há 40 anos, o artista decidiu doar seu acervo para a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde trabalhava desde 1974, junto ao Museu de Antropologia. Os fatos estão reconstruídos no trabalho de reportagem da egressa do curso de Jornalismo da UFSC, Janine Silva, apresentado em 2016.
Em entrevista com o artista Gelci Coelho, o Peninha, servidor aposentado da UFSC que atuou no museu, ela retoma a relação de Cascaes com o amigo e com a universidade. Na verdade, Cascaes queria doar seu acervo à Prefeitura Municipal de Florianópolis, mas foi convencido por Peninha a mantê-lo na UFSC.
À repórter, Peninha também relembrou a convivência com Cascaes, que começou quando ele era ainda menino, quando passava férias de verão na casa da irmã do artista de quem busca preservar a memória e o trabalho. “A partir dos registros que ele faz, muita coisa pode ser revivida. É possível reanimar os aspectos que ele registrou, por isso é importante a obra dele”, narrou, à época.
Hoje, a UFSC mantém e realiza o trabalho de conservação das obras do artista, armazenadas na reserva técnica do Marque. A ideia é que a coleção Elizabeth Pavan Cascaes seja exibida de forma permanente e em uma das salas do prédio preparada para receber a riqueza e o legado de um dos maiores artistas de Santa Catarina. “O objetivo dele era criar um museu com motivos folclóricos e criar um espaço de memória para conservar a obra dele. Ele era um museu vivo. Este espaço cria e conta essa memória”, sintetiza Lucas.
Reportagem: Amanda Miranda, jornalista da Agecom/UFSC
Fotos: Camila Collato, Agecom/UFSC