Um componente químico da maconha mostra cada vez mais potencial de se transformar em aliado no tratamento das sequelas emocionais deixadas pelo trauma. Experimentos indicam que o canabidiol, um dos mais de 80 constituintes da Cannabis sativa, pode ajudar no tratamento de indivíduos que sofrem de ansiedade provocada por experiência traumática. Resultados positivos têm sido obtidos em pesquisas desenvolvidas junto ao Laboratório de Psicofarmacologia, ligado ao Departamento de Farmacologia da UFSC. Os estudos com animais em laboratório resultaram em artigos científicos publicados em importantes periódicos internacionais, como o European Neuropsychopharmacologye.
Assalto ou atropelamento
Nestas pesquisas os animais recebem um choque moderado nas patas, simulando uma situação traumática. Quando são novamente expostos ao ambiente de condicionamento, relembram a situação e expressam uma reação de medo, caracterizada por imobilidade e conhecida como congelamento. Registrando o tempo de congelamento, os pesquisadores avaliam a intensidade do medo provocado pela lembrança do trauma.
O coordenador dos estudos, professor Reinaldo Takahashi, explica que é semelhante ao que acontece com uma pessoa que foi assaltada numa determinada rua da cidade e fica com medo sempre que tem que passar por ali. Ou ao medo sentido por uma pessoa que foi atropelada. toda vez que ouve uma freada de carro.
Segundo ele, em uma perspectiva terapêutica, a maneira mais eficaz de se reduzir o medo em animais de laboratório consiste em realizar sucessivas exposições ao ambiente de condicionamento. Assim os animais se adaptam à situação e reaprendam que aquele local deixou de ser ameaçador.
Em humanos, este tratamento é chamado de terapia de exposição e funciona mais ou menos da mesma forma. “Os principais resultados de nossos estudos demonstraram que o canabidiol facilita esse processo de reaprendizado emocional, tornando a exposição terapêutica muito mais eficiente e com efeitos prolongados”, explica o professor Takahashi.
Função ansiolítica
A pesquisa indica que o canabidiol poderia ser associado a tratamentos psicológicos como a terapia comportamental, ajudando a atenuar traumas. Além disso, o canabidiol reduziu a ansiedade dos animais que passaram pelo processo de condicionamento. A avaliação faz a equipe supor que esse constituinte da maconha funciona como um ansiolítico, o medicamento que combate a ansiedade. A vantagem é que o canabidiol possui características mais interessantes do que as substâncias benzodiazepínicas comumente usadas nesta terapia e que podem ter entre seus efeitos colaterais dependência, sonolência excessiva, piora da memória, tonturas e zumbidos.
Outra vantagem sinalizada pelos estudos realizados na UFSC é que o canabidiol também não provoca efeitos típicos da maconha, como falhas na memória recente, taquicardia, boca seca, incoordenação motora, agitação e tosse. Esses sintomas são causados principalmente por outro canabinóide, o conhecido tetrahidrocanbinol (THC). “Então, além de ser terapêutico, estima-se que se o canabidiol for utilizado como medicamento, terá poucos efeitos colaterais”, complementa o professor.
Reaprendizado emocional
Os estudos desenvolvidos na UFSC auxiliam também na compreensão da fisiologia do cérebro, dos processos cerebrais relacionados à retomada da memória traumática e ao consequente reaprendizado emocional. Dando continuidade aos experimentos, o doutorando do Programa de Pós-Graduação em Farmacologia da UFSC Rafael Bitencourt, orientando do professor Reinaldo Takahashi, aprofundou as pesquisas e obteve resultados importantes.
Seus estudos sugerem que há uma interação entre o sistema responsável por parte das respostas ao estresse, o sistema corticosteróide, e o sistema endocanabinóide, que ocorre no decorrer do processo de reaprendizado.
O primeiro está relacionado a hormônios que possuem um papel importante na regulação do metabolismo e o segundo, o sistema endocanabinóide, é formado por mensageiros cerebrais produzidos pelo próprio organismo e que parecem ter evoluído como parte da comunicação entre os neurônios (uma espécie de “fábrica natural” de maconha que os vertebrados possuem).
“Um determinado nível de estresse diante de uma situação traumática é necessário para que ocorra liberação de substâncias no nosso cérebro, levando à indução da produção dos endocanabinóides. Estes endocanabinóides facilitariam o processo de reaprendizado emocional, impedindo ou amenizando as chances de uma pessoa desenvolver um trauma”, explica Rafael.
Para os pesquisadores, o melhor entendimento do processo de reaprendizado emocional em situações potencialmente traumáticas pode facilitar a procura por condutas terapêuticas para aqueles indivíduos que desenvolvem algum transtorno relacionado à persistência de uma memória traumática. O conhecimento sobre os endocanabinóides também pode ajudar na concepção de terapias que aproveitem as propriedades terapêuticas da maconha.
“O futuro dirá se os canabinóides um dia passarão de substâncias proibidas a aliados no tratamento das sequelas emocionais deixadas pelo trauma”, complementa o professor Takahashi, pesquisador que será homenageado em outubro com o Prêmio Destaque Pesquisador UFSC 2011.
Mais informações: takahashi@farmaco.ufsc.br / Telefone: (48) 3721-9764 Ramal: 227
Por Reinaldo N. Takahashi e Rafael M. Bitencourt, com edição de Arley Reis
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