“A inclusão é um processo em andamento, que está longe de ser concretizado”. A frase do trabalho de conclusão de curso da estudante Vera Rejane Veleda Machado da Roza talvez seja também um resumo da sua trajetória. Aos 42 anos, teve um diagnóstico de câncer de mama e venceu a doença. Mas seis anos depois, acordou sem enxergar. Hoje, aos 54, é a primeira mulher cega a defender o TCC em Direito na UFSC. “Nós não vamos desistir, porque esse desejo de vencer e de crescer também faz parte de nós, também está na pessoa com deficiência”.
Vera ainda tem cerca de um ano e meio de curso pela frente, mas já sabe qual é o próximo passo: quer se tornar juíza. O trabalho Direito à educação inclusiva e a acessibilidade a partir da experiência do Curso de Graduação em Direito da UFSC foi aprovado em banca e também obteve outras conquistas. A partir da sua vivência, Vera propôs mudanças na acessibilidade da instituição. “Sou uma mulher totalmente fora dos padrões do curso de Direito. Vivi momentos muito difíceis, complicados, que exigiram um desdobramento enorme da minha parte”, recorda.
Ela se refere especialmente à falta de acolhimento da turma, mas também a pequenas e grandes dificuldades de rotina. “A inclusão é feita a partir de políticas públicas, mas também pela prática das pessoas. E nem todas as pessoas são inclusivas”, relata. “Eu terminei o Ensino Médio em 1991 e só voltei a estudar em 2009. Quando perdi a visão fiquei com a sensação de que minha vida tinha acabado ali”, recorda.
Vera e professores da banca no dia da defesa do TCC
Naquele momento, a estudante contou com o apoio da Associação Catarinense para Integração do Cego, a Acic. Ela recorda que foi uma adaptação extremamente difícil, mas que o acolhimento e a estrutura da entidade lhe deram autonomia para executar as tarefas de rotina e aquelas sem as quais não conseguiria ser uma universitária. “Se fosse em outra cidade, talvez eu tivesse parado de estudar. Mas por conta desse suporte eu me viro muito bem e sempre consegui desenvolver minhas atividades”, diz.
No estudo defendido na UFSC, Vera trata da educação inclusiva como um direito fundamental, trazendo discussões sobre exclusão e capacitismo. Ela também aborda o papel do gestor educacional, a importância das ações afirmativas e da acessibilidade. Seu trabalho ainda deixa um legado: uma proposta de adequação na qual apresenta demandas comuns a pessoas com deficiência.
A acadêmica reconhece uma mobilização para que sua inclusão ocorra. Ela conta que desde a direção do centro de ensino até os servidores demonstraram compreender o quanto a UFSC ganha, como instituição, ao se propor incluir. “É importante para o curso, para a instituição e para a sociedade. Uma nova realidade vai sendo construída”, analisa.
No texto do TCC, ela também indica o quanto o diálogo foi criando condições para que transições ocorressem. “Em minha trajetória acadêmica vivenciei várias situações de exclusão, de discriminação. Mas, devo reconhecer que foram muitos os esforços para que minha inclusão se efetivasse. Compreendo o caráter inédito e pedagógico que minha presença no curso de Direito na UFSC possui”, registra, na conclusão.
O professor José Isaac Pilati, diretor do Centro de Ciências Jurídicas, lembra que Vera teve um início muito difícil no curso, justamente por ter sido pioneira. “Não havia, até então, um caso que nos mostrasse o que devia ser feito, mas ela veio com a proposta”, recorda. No TCC, Vera traz um desafio que a direção adotou como meta: levar o curso a celebrar seu centenário, em 2032, com completa acessibilidade a pessoas com deficiência.
Ele conta como a presença de Vera e o legado que ela vai deixar ao curso são simbólicos. “Vera é uma batalhadora, uma heroína. Nós construímos nos últimos anos uma relação de amizade”, comenta. “Ela embarcou no nosso calendário do centenário do curso com uma parcela importantíssima de colaboração quanto a uma questão muito relevante. No dia da formatura, quero abraçar e estar junto dela”.
Sonhos
O curso de Direito sempre foi um sonho para ela, que tem formação em Pedagogia e especialização em gestão escolar. Caçula de uma família de dez filhos, do interior, ela não via estudar como uma opção, até porque a cidade mais próxima com instituições de ensino era distante. Depois de ser mãe e criar os filhos é que ela conseguiu se dedicar ao sonho. Emendou um curso no outro e nunca mais parou.
“Quando eu era mais jovem era absolutamente impossível de acessar o ensino superior. Para isso, eu teria que sair da casa dos meus pais, que moravam no interior. Depois, casei, mudei várias vezes de cidade e só quando vim para uma capital é que as coisas começaram a mudar”, recorda.
Vera chegou a ter matrículas recusadas em cursinhos preparatórios para o vestibular, pois teria que ela própria custear um professor auxiliar que a ajudasse com a adaptação dos materiais e com os estudos. “Passei oito meses estudando cinco horas por dia por vídeo aula”, relembra. No final de 2018 ela foi aprovada tanto no Sisu, quanto no Vestibular. “Era um sonho de criança”, conta.
Das coincidências da vida, ela ainda registra outra, com orgulho – Vera se matriculou na UFSC no mesmo dia em que defendeu o trabalho de conclusão em um curso de especialização do Instituto Federal de Santa Catarina. De um sonho para o outro, trouxe uma certeza: “Hoje em dia eu acho que a imensa maioria dos professores e dos colegas entenderam que eu vim para ficar e só saio daqui formada”.
Adaptações
Vera e voluntários do projeto Releituras que auxiliaram a Vera com a leitura de material didático
Outro desafio para a acessibilidade de Vera foi construir uma relação com os professores que contribuísse com sua rotina de estudos. Como o curso de Direito tem muito conteúdo de leitura, ela precisa de uma preparação prévia especial. Por isso, assim que se matricula em qualquer disciplina, Vera envia uma carta sobre as suas condições e necessidades.
A estudante também tem o apoio do Serviço de Acessibilidade Informacional da Biblioteca Universitária da UFSC, que realiza a adaptação do seu material de estudo. Depois desse processo, é por meio de um software que ela lê os textos indicados na bibliografia das disciplinas. “É um trabalho técnico, bem importante e bem demorado. Minhas disciplinas têm demanda de leitura bem grande e essa é uma etapa essencial”, comenta.
Outro suporte com que ela contou foi o Projeto Releituras, iniciativa da graduanda Maria de Fátima Medeiros e Silva do curso de Letras- Português, que trabalha com a confecção de Áudio Livros para pessoas de baixa visão e cegos. “O releituras fazia a gravação em áudio de materiais que ainda não estavam acessíveis para mim. Foi um projeto bem importante nesse processo”, conta.
“A Vera merece destaque pela sua caminhada na UFSC e pelo fato de ser a primeira mulher cega que conclui o curso de Direito. Ela será a primeira juíza cega do estado de Santa Catarina, e eu acredito que será”, resume Maria de Fátima, do Releituras. O desejo de ser juíza também é um sonho na vida dela, daqueles que ela percorre com a mesma obstinação que consolida sua trajetória. “Vou me formar com a idade que muitos estão se aposentando e com carreira já consolidada. Eu não me imagino como uma pessoa inválida, por isso eu não digo que eu gostaria de ser. Eu digo que eu serei”.
Amanda Miranda/Jornalista da Agecom/UFSC