A edição de 10 de abril de 2015 do Jornal da Ciência, publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), publicou o artigo “Chimpanzés, pessoas e cobras” – uma crítica ao argumento científico usado pelo Ministério Público Federal (MPF) em sua denúncia a professores, estudantes e técnicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) –, assinado pelos professores André Ramos, Francisco Mauro Salzano, Horácio Schneider, Paulo Roberto Petersen Hofmann, Maria Jose Hötzel, Geison Souza Izídio e Yara Costa Netto Muniz. Confira o artigo na íntegra:
Um fato novo, ocorrido há poucas semanas, fez com que a sociedade, mais uma vez, voltasse seu olhar para a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e seus integrantes. Sem receber, desta vez, por parte da imprensa nacional, a mesma atenção que recebeu o evento original, ocorrido há pouco mais de um ano, quando uma operação policial no campus da UFSC terminou em confronto, a notícia veiculada pelos jornais locais no último dia 13 de março é, de certo modo, tão inquietante quanto o próprio episódio que lhe deu origem.
Pretende o presente artigo analisar e aprofundar, à luz dos conhecimentos científicos atuais, um trecho específico da denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal (MPF)¹, na qual este órgão acusa criminalmente trinta e seis alunos, professores e técnicos da UFSC, dentre os quais a Reitora e ambos os Diretores (titular e vice) do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH). Caso condenados, estes últimos poderão enfrentar a prisão e a exoneração dos seus cargos públicos. Não discutiremos aqui os aspectos jurídicos da questão, que certamente serão tratados nas esferas competentes. Pretendemos, tão somente, expandir e trazer luz a um argumento de cunho científico, utilizado na peça de acusação, por entendermos que tal argumento – que atribui supostas origens biológicas a comportamentos ditos violentos – distorce e compromete uma visão contemporânea da ciência.
Não é incomum o uso e a divulgação de informações científicas por setores da sociedade que, por não disporem de aprofundamento teórico sobre determinado tema, por vezes acabam por equivocar-se, trazendo visões distorcidas que podem criar, dentro da própria sociedade, mais confusão do que esclarecimento. Não se trata de introduzir aqui preciosismos teóricos, nem tampouco realizar inúteis considerações técnicas e conceituais, por puro exercício intelectual. Ao contrário, entendemos que o tema ora levantado, mesmo que sem o intuito original de fazê-lo, traz à tona debates científicos e filosóficos mais profundos, que atravessaram boa parte do século passado e que, como se observa, não estão de todo resolvidos. Tais debates podem trazer importantes consequências, não apenas ao domínio qualificado do conhecimento por parte do público leigo, mas também à forma com que indivíduos e coletividades encaram o ser humano, a natureza e a sociedade. Acreditamos ser nosso papel, enquanto cientistas, participar criticamente destas discussões.
Enfatizamos que nosso intuito não é o de fornecer interpretações que poderiam vir a alterar as chances de os réus serem absolvidos ou condenados, mas sim o de fazer um contraponto a uma visão determinista da biologia, que se fortaleceu no meio científico, brasileiro e internacional, na década de 1920, dando origem a diversos movimentos ditos “eugenistas”, que acabaram por respaldar “cientificamente” práticas de segregação racial em diferentes países, culminando com os terríveis acontecimentos na Europa durante os anos subsequentes. Está claro que não trata disto a peça de acusação aqui analisada, pois a mesma não contém qualquer afirmação de cunho étnico, implícita ou explicitamente. No entanto, as mesmas noções deterministas da biologia nela apresentadas, já abandonadas pela ciência há pelo menos cinquenta anos, continuam povoando o imaginário da sociedade leiga, seja através de peças de ficção, seja através de textos supostamente científicos. Ou seja, apesar de um universo de evidências acumuladas desde a década de 1950 – pelas ciências comportamentais, as neurociências e a genética – apontarem em outra direção, o uso de argumentos imputando determinismo genético a comportamentos humanos surge muitas vezes dentro da própria academia, o que pode levar a propostas claramente segregacionistas, como aquelas encontradas no best-seller “The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life”, publicado em 1994 por um professor e um egresso de Harvard que, ao que parece, estavam mais interessados em pautar uma nova agenda política nos Estados Unidos da América do que debater a verdadeira ciência.
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