Nem sempre os seres da Ilha  percebem essas epifanias cujo deslinde o autor deixa a cargo da perspicácia e  prazer do leitor, como anota bem o editor da obra, Sérgio Medeiros Vieira. “Em  geral essas mudanças provocam os personagens momentaneamente, levando-os para a  absoluta estranheza, mas não chegam a arrancá-los em definitivo do seu  mundinho”, diz o diretor da Editora, que chama atenção para a delicadeza e a  sofisticação da obra. É como se as possibilidades de sair do vazio estivessem  por toda parte, mas os habitantes não se dispusessem a enxergá-las. 
A exemplo do primeiro  volume, Ecos no Porão II traz na capa a ilustração de um grande artista  plástico catarinense, neste caso uma instalação de Fernando Lindote. Em papel  pólen, a obra reúne três seleções do próprio autor dos livros Canário de  assobio (1985), Relatos escolhidos (1988), Contas de vidro (2002) e ainda cinco contos inéditos, entre eles a narrativa metalinguística  “Ecos no porão”, que dá nome à obra e traduz uma metáfora de Silveira para as  deformações estilísticas da leitura dos escritores clássicos que inundam seu  imaginário desde os dez anos de idade. Vendidas com desconto de 50% durante a  Feira EdUFSC/LEU (R$ 15,00), que se estende até o dia 8 de abril, na Praça da  Cidadania, os dois volumes apresentam-se, assim, no crivo do escritor e do  editor, como o melhor da safra de Silveira. 
Os personagens velhos  passeiam por grande parte dos contos, mas assumem uma expressividade absoluta em  “Vidraças partidas”, onde a decrepitude ganha um lirismo refinado na tentativa  de sublimar o vazio através do amor sexual por um jovem. Todavia, em “O olho de  Deus”, uma carta assinada aos efebos por mais um velho – funcionário público –  aturdido pelo vazio, Silveira alcança um domínio da linguagem que fica à altura  da ironia de Franz Kafka no conto “Convenção à Academia”. 
Volta e meia Paulo, uma  espécie de superego do autor passeia pelas narrativas. Ele mesmo um senhor de  baixa estatura e calvo, e conversa franca e elevada, como o homenzinho de  “olhinhos afiados” e “face rechonchuda” do conto “He, He, He, He!”, da coletânea  Contas de vidro. Como se acometido de uma inspiração sublime, o  baixote interrompe a reunião de engravatados executivos encafifados com o  planejamento publicitário da empresa para contar um episódio bizarrísimo  envolvendo os índios e índias tupinambás e Jean de Léry, missionário francês que  narrou sua visita ao país por volta de 1557 na obra Le voyage au Brésil.  Em seu relato aparentemente nonsense, o homenzinho exalta “um canto  sublime, de extraordinária beleza”, que se produz inicialmente de um murmurante  “he, he, he” entre os varões da tribo e contagia o coro das mulheres até assumir  a proporção de um canto catártico. O personagem é calado pela perplexidade  desdenhosa dos executivos, que retomam sua reunião sem se dar conta do caráter  revelador da intempestiva história. 
E assim, com sua habilidade  inigualável com a língua, uma boa dose de humor e ironia e um olhar lírico para  o grotesco, Silveira parece rir-se baixinho ao final de cada história onde  reside uma possibilidade de revelação que nunca se entrega sem esforço do  leitor… E é como se ouvíssimos os ecos longínquos do seu “he, he, he…” por  trás de cada um dos 28 contos. 
ENTREVISTA
A Ilha e seus habitantes na  ficção de Silveira de Souza
Considerado pelo escritor  Salim Miguel um dos maiores contistas brasileiros da atualidade, Silveira  publicou O cavalo em chamas (Ática 1981) e Janela de varrer (Bernúncia, 2006). Como contista e tradutor de autores universais,  participou ativamente do Grupo Sul, movimento que trouxe o Modernismo para Santa  Catarina nos anos 40 e 50.  Aposentado do serviço público, desenvolveu sua  carreira literária em meio à rotina de diversas funções, de professor de  matemática do Instituto Estadual de Educação e da Escola Técnica Federal de  Santa Catarina, a diretor da Divisão de Informação e Divulgação do Departamento  de Extensão Cultural da UFSC. Também atuou no setor de editoração da Fundação  Catarinense de Cultura como coordenador das Edições FCC. De mãos ágeis e tão  falantes quanto seus contos, mais falantes do que ele próprio, Silveira,  concedeu esta entrevista: 
O que norteou esta  seleção de contos do segundo volume de  Ecos no Porão e o que a diferencia do  anterior?
— O plano  geral que norteou a preparação de Ecos no Porão, volumes I e II, foi  proporcionar uma seleção dos que considero meus melhores textos publicados em  livros, desde 1960 até o presente. A única pequena diferença que existe no  segundo volume, em relação ao primeiro, é que ele contém alguns relatos inéditos  e outros que fizeram parte de coletâneas com outros autores. 
Percebe-se  em todos os contos uma consciente localização do cenário de Florianópolis que  vai muito além do mero retrato ou panorama da cidade pelo escritor. Em que tipo  de intenção estética se inscreve essa presença geográfica de Florianópolis na  sua ficção?
— De fato,  Florianópolis é o cenário de todos os relatos. Por não se tratar de um guia  turístico, mas de um livro de ficção literária, o leitor não vai encontrar  descrições pormenorizadas ou exaltações entusiásticas a respeito de suas  paisagens e recantos pitorescos. O que existe são apenas brevíssimas indicações  dessa geografia, integradas à ação e à mente dos personagens. Foi minha intenção  que esses personagens se comportassem como habitantes de uma ilha, que a ilha  fosse, indireta ou inconscientemente, um componente importante de sua  psicologia. Creio que isso diferencia um tanto os meus relatos dos relatos de  autores de outros estados. 
Alguns  elementos naturais marcantes de Florianópolis também são recorrentes na  narrativa, como o vento, o mar, as aves. Parece que você dá aos elementos  inumanos uma vida e uma participação muito mais específica e marcante do que a  de mero cenário para expressão do universo humano…
— Pode ser  algo ilusório, mas sempre achei que as ilhas, e em especial a nossa Ilha de SC,  propiciam uma aproximação maior do universo humano com outros universos, como o  universo de seres inumanos (o mar, os ventos) e o universo de outros viventes,  como os peixes, as aves, os insetos, os pássaros, as árvores e os bosques. 
Apesar da  aparente banalidade de suas vidas, os personagens sempre ganham a possibilidade  de uma anunciação ou de uma revelação. Nem sempre se dão conta dessas  possibilidades e nem sempre elas têm a força de arrancá-los do seu mundinho… O  que você diz sobre isso? 
— Na verdade  não sei se a minha vida é banal, ou se o mundo de minha literatura é banal. Faz  algum tempo que deixei de qualificar as coisas. Quando às vezes tento fazer uma  retrospectiva da minha vida até o momento, me dou conta que ela foi pontilhada  de fases diversas e até mesmo contraditórias; uma, extremamente tumultuada, com  muita bebida, fumaça, cortinas vermelhas e anarquias boêmias; outra (como na  infância) cheia de descobertas maravilhosas; outra, tediosa e presa às  obrigações sem muito sentido, que eu precisei encarar para poder comprar, como  disse certa vez Tom Jobim, “o uisquinho das crianças”; e ainda outra (como  presentemente), tranquila e voltada para o estudo e a meditação. Mas, banal ou  não, houve algo em todas essas fases que me salvou de um mergulho na  mediocridade absoluta: um interesse pela criação literária, que me acompanha  desde a infância. Quanto a meus relatos literários os personagens em geral vivem  nesse mundinho, sem heroísmos, sendo muitas vezes surpreendidos por (para eles)  estranhas ocorrências que podem despertá-los para uma dimensão de suas vidas  antes desconhecida. 
Ainda que  voltado para as delicadezas da existência e da alma, os contos sempre iniciam  com cenas concretas, personagens que têm vida corpórea própria, para que depois  se deem as abstrações e possibilidades de reflexões filosóficas. Está aí uma  escolha estética consciente? 
— No  meu caso, não houve escolha. O modo como escrevo os meus relatos foi nascendo  naturalmente, seja como resultado de constante exercício, seja como uma visão  muito pessoal do mundo (e da criação literária ou da criação de modo geral), que  foi nascendo com a vivência e com as impressões causadas no contato com obras de  grandes ficcionistas, com pinturas, músicas, revistas diversas, cinema,  paisagens, pessoas, bichos, mil coisas. 
– E qual o  lugar da velhice nos seus contos. Pode comentar que traço há em comum nesses  personagens aparentemente reféns da solidão e da decrepitude?
O velho do  conto Vidraças partidas (que considero o meu  conto melhor realizado) é um caso  especial. Ele existiu, costumava passear pela Felipe Schmidt, de terno e gravata,  nos anos 1960, usando um chapéu de feltro. Pensei nele, na sua figura, quando  pintou o tema do relato, uma experiência de extrair algo lírico de um  comportamento que normalmente se julga degradante.
Você  faz  uma literatura ao mesmo tempo densa e econômica, como poucos contistas. Como  chegou a essa síntese e que autores o influenciaram nessa escolha  estética?
— Harold  Bloom escreveu que toda a escritura é uma espécie de releitura. Se ele estiver  certo, devo dizer que leio desde os dez anos de idade (estou hoje beirando os  78). Em todo esse tempo, passei por períodos de leitura em que determinado  autor, às vezes determinados autores, monopolizavam a minha preferência. Posso  citar alguns deles: Monteiro Lobato e Hans Christian Andersen, lá entre os dez e  12 anos. Depois, com o tempo, foram surgindo: Machado de Assis, Anton Checov,  Dostoievski, Clarice Lispector, Kafka, Dyonélio Machado, Joseph Conrad, James  Joyce, Thomas Mann, William Faulkner, Guimarães Rosa, Cortazar, Jorge Luis  Borges, H.P. Lovecraft e mais alguns outros. Nem vamos falar de poetas, de  compositores, de alguns desenhistas e pintores, e de alguns diretores de cinema.  É provável que todos eles, de algum modo, tenham deixado alguma marca, numa  frase, na estruturação de uma determinada estória, na caracterização de um dado  personagem. Mas essa é uma praia para os críticos literários. 
Alguns  escritores, como Salim Miguel, o consideram o maior escritor catarinense da  atualidade e um dos melhores contistas do Brasil. O que pensa  disso?
— Não tenho como responder  a isso. Mas devo dizer que, desde 1960, quando publiquei O Vigia e a  Cidade, até agora, o propósito real ao escrever os meus relatos foi  conseguir realizar algo que me satisfizesse interiormente, do ponto de vista de  uma criação estético-literária. Nunca me interessou ser, como autor, maior ou  menor, principalmente num momento em que Santa Catarina tem, residindo aqui e  fora daqui, um conjunto de poetas e escritores de primeira linha, como o próprio  Salim. 
Texto e entrevista: Raquel Wandelli –  assessora de comunicação da SeCArte/UFSC 
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