Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.
“Estamos em um ano dramático… Mas antes de eu começar minha fala, obviamente, fora Temer!”. Assim a historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Virgínia Fontes, iniciou a aula inaugural da Associação de Pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (APG/UFSC). O evento, que ocorreu na segunda-feira, 24 de abril, no auditório da reitoria, se insere em um contexto de mobilizações na universidade e no Brasil. Na sexta-feira, 28 de abril, está prevista uma greve geral contra propostas que tramitam na Câmara dos Deputados, como as reformas da previdência e trabalhista.
A professora declarou seu apoio e adesão à paralisação: “Pelo volume de catástrofes que vêm sendo propostas, isso é um desgoverno. Estamos sendo atacados em todas as dimensões. Em termos mais amplos, todas as conquistas das classes trabalhadoras do país estão sendo aniquiladas. Também estamos sendo atacados no ambiente da pesquisa e da pós-graduação, com o estrangulamento de recursos. Além das reformas educativas na escolas: ‘Escola sem partido’ é na verdade ‘Escola do meu partido’.”
Para Virgínia, este é um momento de luta. Mas essa luta imediata, mesmo sendo “tão grande, tão intensa e tão forte”, não pode apagar o horizonte mais amplo para onde a luta se dirige. “A luta imediata nos captura para uma prática que tem sido tristemente corriqueira nos últimos tempos. Ficamos focados na urgência e não conseguimos mais enxergar para onde caminhamos”, afirmou. Segundo ela, assistimos ao esgotamento do capitalismo do ponto de vista da humanidade: “O capitalismo está vivo, está ativo, segue em expansão. Mas a massa da população pode impedi-lo de se expandir se recusando a cumprir o papel que o capital exige. O limite para o sistema capitalista é quando os trabalhadores dizem ‘chega’. E é possível dizer isso de infinitas maneiras”.
Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.
A exploração do agronegócio e dos recursos naturais, representando a devastação humana como um todo, também foi abordada pela pesquisadora. “Essa não é uma questão apenas da terra. É uma questão da terra, das árvores, dos animais, dos alimentos. É importante combatermos o desperdício de plástico, o uso de garrafa plásticas, por exemplo. Mas mais importante ainda é enfrentarmos, publicamente, quem engarrafa a água que é pública, que deveria ser pública”, alertou.
Em diversos momentos, Virgínia enfatizou a importância de se ir além das reivindicações urgentes: “Toda luta que não se dá conta de que o que está enfrentando é maior do que a luta imediata, está fadada a perder, a se desmobilizar. Por isso nossa luta deve sempre ir além, deve garantir mais do que direitos universais. Devemos lutar por uma vida capaz de ser chamada vida”. A professora acrescentou que, durante o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), houve conquistas, mas também muitas derrotas. “Uma delas foi o desaprendizado da luta, a deseducação de um enfrentamento que garanta o mínimo. Precisamos exigir o que consideramos necessário para uma vida digna”.
Iniciativa privada
Outro tema abordado durante a palestra foi o crescimento da iniciativa privada e sua inserção em setores públicos do país. “No Brasil, a partir da década de 1990, principalmente, e até hoje, cresceu enormemente o número das Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (FASFIL). Temos hoje uma quantidade enorme dessa entidades, que são empresariais, pilotando educação, saúde, gestão municipal, gestão estadual, gestão da educação. Essas organizações se nutrem de contratos públicos, de vendas de programas educativos etc. Temos hoje mais de 300 mil FASFIL, que empregam mais de 500 mil pessoas”, informou.
Um dos exemplos de FASFIL citados pela professora foi o “Movimento todos pela educação” que, segundo ela, iniciou experiências de “adoção” de escolas, onde impõem medidas e reformulam toda a legislação da instituição. “Hoje, a ocupação de cargos públicos para consultores, conselheiros, peritos, etc exige a intermediação do ‘Movimento todos pela educação’. Essa apropriação do que é público, por empresas privadas, já está em curso no país há pelo menos 20 anos. Mas o desgoverno Temer acelerou isso de maneira impressionante”, afirmou.
Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.
Socialização do conhecimento
Virgínia também criticou a configuração atual da produção científica no país, com distribuição desigual de recursos e o favorecimento de determinadas áreas. “Não temos uma tradição de pesquisa no ensino fundamental, no ensino médio, no ensino superior e nem mesmo na pós-graduação. Por que isso? Por que essa elitização da educação, na qual só é pesquisador quem estiver em determinado núcleo?”.
O principal objetivo da pós-graduação, para a professora, deve ser a socialização da pesquisa e do conhecimento. “A pós-graduação não deve estar baseada em uma competição meritocrática alucinada. Isso tem pouco a ver com socialização. Se só uma parte da humanidade pode ter acesso ao melhor da humanidade, nós estamos em uma situação dramática”, afirmou. Virgínia explicou que a iniciativa privada, na universidade, introduz as formas do mercado dentro da pesquisa. A construção de pólos de excelência incentiva uma educação mercantil: “Isso acaba com a figura nacional do pesquisador. ‘Ganha mais quem é melhor’. A universidade pública jamais deve ser privatizada para garantir compensações salariais.”
Outra consequência do investimento de recursos privados no ensino público é a redução da reflexão crítica. “Esses pesquisadores se tornam totalmente a favor do mercado. A luta pela socialização da pesquisa, por um conhecimento pleno e humano, é uma luta pela humanidade. A pós-graduação forma, em princípio, gente comprometida com a pesquisa e com a docência. Infelizmente, hoje, não é isso o que acontece. Nossa pós conduz à hipercompetição, à fragmentação interna, à pesquisa utilitária e oportunista. A pesquisa utilitária se recusa a pensar o mundo”, afirmou.
No cenário internacional, segundo Virgínia, ocorre uma “privatização discreta” da produção do conhecimento: “Há um crescimento volumoso de entidades empresariais, aparentemente sem fins lucrativos, destinadas ao desenvolvimento científico de áreas específicas. Nos EUA, isso já é uma realidade impactante. Temos que combater a universidade pública financiada por empresas. Não se trata de apagar as opções teóricas, mas de permitir que elas se expressem coerentemente e não simplesmente pela força do dinheiro. O compromisso da ciência não pode ser com o empresariado, com a expansão do lucro. Precisamos defender essa ciência que, apesar de todas dificuldades, ainda é pública, e deve permanecer pública.”
Virgínia Fontes esteve em Florianópolis por dois dias e participou de outras atividades na universidade. No mesmo dia, ela ministrou uma segunda aula magna, do Instituto de Estudos Latino-Americanos (Iela/UFSC), com o tema “A crise brasileira e a luta de classes”. A cobertura desse evento pode ser conferida aqui.
Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC