“Não  sei se estará chegando realmente o meu fim; mas hoje pela manhã  tive uma síncope tão longa que supus a morte. No entanto ainda não  perdi nem perco de todo a coragem. Há  15 dias tenho tido uma febre doida, devido, certamente, ao desarranjo  intestinal em que ando. Mas o pior, meu velho,  é que estou numa indigência horrível, sem vintém para remédios,  para leite, para nada, para nada! Um horror! Minha  mulher diz que eu sou um fantasma que anda pela casa  (…)”
 Carta  de Cruz e Sousa ao amigo e poeta Nestor Vítor
Envolta em  uma cadeia infinda de eventos trágicos, a passagem de Cruz e Sousa  pelo mundo faz acreditar que há mesmo algo de sublimação da dor na  vida dos gênios artísticos. Antes de ser consagrado como um dos poetas  brasileiros mais grandiosos, o autor catarinense de maior projeção  conheceu a morte, a miséria e o desprezo. Além de perder todos os  quatro filhos para a fome e a tuberculose e assistir à loucura da esposa  Gravita, Cruz e Sousa padeceu de preconceito racial e estético. Sua  poesia simbolista foi duramente achincalhada pelo grupo dos parnasianos,  na época liderado por inimigos gigantes como Olavo Bilac, Raimundo  Correa, Coelho Neto, José Veríssimo e o mestre Machado de Assis.
Nas vésperas  do aniversário de 149 anos do poeta negro, comemorado no dia 24 de  novembro, Godofredo de Oliveira Neto lança um perfil biográfico do  autor de Missais e Broqueis, que permite entrever um final  amargamente feliz para a história de horrores vivida pelo poeta filho  de escravos nascido no Brasil de 1861. Se a briga com Machado e outros  acadêmicos ajudou a enterrar Cruz e Sousa para a poesia parnasiana,  cristalizada na época, contribuiu também para que alçasse o cetro  como poeta imortal e universal. Ou seja, às avessas, o colega das letras  e também filho de escravos empurrou Cruz e Sousa para longe de sua  pior expressão, a poesia parnasiana, e levou-o ao encontro do novo  e da sua melhor fase simbolista, fortalecida pela aproximação com  a tríade modernista de Baudelaire, Allan Poe e Mallarmé. O próprio  bruxo do Cosme Velho mais tarde desistiria de seus questionáveis experimentos  poéticos para lançar-se no projeto dos romances realistas que consagraram  sua genialidade.
Em Cruz  e Sousa, o poeta alforriado, Godofredo, romancista e professor universitário,  narra a guerra de insultos, muitos de teor racista, travadas entre ele  e o autor de Memórias de Brás Cubas nos jornais do Rio e em  O Moleque, semanário que o poeta fundou na antiga Desterro  ao lado do parceiro Virgílio Várzea. Com obstinação, fazendo do  sofrimento um motor para a arte, Cruz e Sousa curvou seus críticos  um a um diante da qualidade, persistência e originalidade de sua obra.  Como escreve Godofredo em seu perfil, a glória começou mesmo “depois  de o primeiro punhado de terra se chocar contra o féretro soturno”.  Bilac, Coelho Neto, Arthur Azevedo, todos os detratores reverenciaram-no  no túmulo. Mas Machado silenciou.
Cruz e Sousa,  o poeta alforriado, será lançado em Florianópolis pela Secretaria  de Cultura e Arte da UFSC no dia 17, às 19 horas, no auditório da  Biblioteca da UFSC, na presença do autor Godofredo, nascido em Blumenau  e hoje radicado na capital carioca. Publicado pela Editora Garamond,  do Rio de Janeiro, onde foi lançada há um mês, a obra vem marcar  a homenagem da UFSC, também aniversariante, aos 90 anos de fundação  da Academia Catarinense de Letras e em memória ao seu presidente, Lauro  Junkes, que morreu no mês passado, de câncer, no exercício da função,  e também foi, como Godofredo, um pesquisador entusiasmado da obra do  poeta.  Na biografia dedicada a Salim Miguel, a epígrafe do livro  é de Lauro, em O mito e o rito: uma leitura de autores catarinenses:
“Se em vida  lutou contra a pobreza, a miséria, a doença e o preconceito, tudo  sacrificando pela sua criação literária, essa obra construída com  o sacrifício da dedicação total e sob a angústia do aguilhão estético,  nunca satisfeito e sempre a exigir mais, essa obra corporifica o que  de mais admirável, sólido e denso pode criar o espírito humano, quando  se obsessiona por uma causa enraizada em convicção profunda”.
Com essa incursão  à vida e obra de Cruz e Sousa, o professor de Literatura da Universidade  Federal do Rio de Janeiro, da qual é o candidato mais cotado a reitor,  insiste nos temas e personagens “catarinos” que já animam seus  romances O bruxo do contestado, Pedaço de santo, Menino  morto e Marcelino. O personagem principal deste  último, chamado pelo emblema de Cruz e Sousa dos Mares, parece evocar  cenas da vida do poeta. Lembrando que Raimundo Magalhães Júnior já  fizera uma investigação completa do autor do ponto de vista de uma  biografia, o escritor Salim Miguel aplaude a escolha da abordagem como  um perfil biográfico que valoriza a leitura interpretativa da vida  e da obra do poeta negro. A diferença é que Godofredo não se limita  a levantar a trajetória de Cruz e Sousa, mas vai tecendo comentários  críticos em cima dos episódios biográficos aproximando as duas dimensões  da vida e da obra e afastando-as quando necessário, como no caso da  confusão entre as imagens simbolistas da alvura e da brancura, recorrentes  nos seus versos, e a dedução equivocada sobre o sentimento de negação  da raça.
“Em cima  de esterco e de alfafa seca. Um caixão comprido mal amarrado e balançando  num vagão vazio destinado ao transporte de animais. Ali, dentro do  singelo esquife, vai o cadáver de Cruz e Sousa, cuidadosamente acondicionado  por mãos piedosas na madeira crua. Terminava assim – um corpo despachado  para o Rio de Janeiro num trem de carga – a vida de um dos maiores  poetas brasileiros. Era março, dia 19, 1898. Cruz e Sousa tinha 36  anos”. Assim, partindo do final, Godofredo começa a contar a história  do cisne negro, de forma literária, como um romancista, mas com o rigor  e a veracidade perseguidos por um pesquisador, revelando narrativas  inéditas, mas deixando clara a ausência de comprovação.
À diferença  de uma biografia convencional, o autor não segue a linha cronológica  da trajetória do poeta, mas antes constrói um mosaico biográfico  pontuado por seis plataformas temáticas: Desterro, Questão da cor,  O poeta no Rio, Influências e Últimos Anos. A primeira, denominada  Desterro, compreende a infância, a experiência escolar, as agitações  culturais do jovem artista e o início da consagração. Na segunda,  intitulada a Questão da Cor, talvez esteja a maior contribuição do  estudioso, pois nela Godofredo afirma definitivamente o perfil abolicionista  do poeta, trazendo discursos definitivos nesse sentido, como o manifesto  publicado em O Moleque em 19 de julho de 1885: “UM PADRE ESCRAVOCRATA!…  Horror! Um escravocrata, de batina e breviário… horror! Fazer da  Igreja uma senzala, dos dogmas sacros leis de impiedade, da estola um  vergalho, do missal um prostíbulo…”. E localizando na obra de Cruz  os versos que cantam a beleza negra ao lado de outros que valorizam  o simbolismo do branco.
Assim, ao lado  de versos extasiantes, como “Ó Formas alvas, brancas, Formas claras/  De luares, de neves, de neblinas!… /Ó Formas vagas, fluídas, cristalinas…/  Incensos dos turíbulos das aras… /Formas do Amor, constelarmente  puras /De Virgens e de Santas vaporosas… /Brilhos errantes mádidas  frescuras/Edolências de lírios e de rosas (…) de “Antífona”,  pode se ler a exaltação da mulher negra em “Núbia”: “(…)  Beleza prodigiosa de olhos como pérolas negras refulgindo no tenebroso  cetim do rosto fino; lábios mádidos, tintos a sulferino; dentes de  esmalte claro; busto delicado, airoso, talhado em relevo de bronze florentino,  a Núbia lembra, esquisita e rara, esse lindo âmbar negro, azeviche  da Islândia (…)”.


Entrevista: 
“Cruz e Sousa foi, sim,  um grande abolicionista e tinha muito orgulho da sua raça”
Seu livro não parece exatamente uma  biografia, porque não é uma perseguição linear aos dados biográficos  do autor, mas um recorte de alguns aspectos temáticos que articulam  vida e obra. Por outro lado, embora romanceado, porque envolto em uma  narrativa literária, seu trabalho é marcado por uma preocupação  com a comprovação dos fatos biográficos. Nesse sentido você quis  se distanciar da ficção?
Godofredo – Foi mais um problema de conseguir se aproximar da verdade. A ciência  pretende ser a única a dizer a verdade, mas só a poesia consegue chegar  perto da realidade sensível. Os dados biográficos se aproximam mais  da noção de ciência, entendida aqui como “objetividade”. Mas  os dados são úteis e importantes, claro, para entender o que acende  o motor da arte. A articulação equilibrada entre vida e obra é importante  para o leitor. Em Marcelino, meu último romance, o personagem é chamado  de Cruz e Sousa dos Mares. É um pescador ilhéu que tem uma história  de vida muito semelhante à de Cruz e Sousa. A ficção no caso metaforizou  a biografia do nosso simbolista. Cuidei ao máximo para não me afastar  um milímetro do dado biográfico em momentos decisivos. O que entendo  como essencial da vida do poeta está ali. Um dos desafios era não  fazer um livro muito extenso, de difícil leitura. Cortar na carne é  uma das tarefas mais difíceis para o ensaísta e para o romancista.
Você transita  entre a ênfase biográfica e o registro estético da obra de Cruz e  Sousa, valendo-se da glosa entre vários críticos. Como se dá para  você a dosagem entre essas duas dimensões de Cruz e Sousa?
Godofredo – Cruz e Sousa tem uma extensa fortuna crítica. Há grandes pesquisadores  aqui, como a Zahidé, o Lauro  Junkes (que acaba de nos deixar),  o Celestino Sachet, o Cabral, o Iaponan Soares  e dezenas de outros  de igual quilate, inclusive gente jovem. E, claro, ensaístas dos mais  importantes do Brasil inteiro se debruçaram sobre a obra do poeta.  Acho importante realçar a estética do nosso simbolista. Como catarinense  me permiti trazer para o livro alguns dados de que ouvia falar quando  criança. Os versos de Cruz e Sousa são de uma grandeza fora do comum.
E qual  é o diferencial da sua contribuição aos estudos sobre o autor?
Godofredo – Só quis contribuir para que um público mais vasto pelo Brasil afora  possa conhecer o gênio do poeta da minha terra e adotá-lo como um  dos maiores escritores brasileiros. A biografia escrita pelo Raimundo  Magalhães Júnior é definitiva, deve ser obra de consulta obrigatória.  Há uma recente, de Uelinton Farias Alves e vários trabalhos menos  alentados em tamanho, mas de consulta indispensável. O leitor não  vai ter escassez nesse campo. Acho que o meu livro é um perfil comentado  da obra e da vida do poeta, escrito às vezes na primeira pessoa por  um romancista também catarinense como ele. Entraram em ação alma,  coração e razão barriga-verde. O livro tenta ganhar um público de  várias faixas etárias, inclusive a escola, que vai sofrer junto com  o nosso poeta e se maravilhar diante do seu talento.
Em grande  parte do seu livro você se dedica a desmitificar a idéia de que Cruz  e Sousa ignorou as questões do racismo, inclusive trazendo textos e  poemas de motivação abolicionista. Como poderíamos sintetizar esse  argumento para os leitores?
Godofredo –  Cruz e Sousa foi um grande abolicionista e orgulho do nosso Estado em  todos os seus aspectos. Foi às vezes mal entendido, inclusive quanto  a algumas de suas posições políticas, mas por puro preconceito. A  maioria dos críticos de fora do Estado não conhece as peculiaridades  do povoamento de Santa Catarina. Tentei realçar o fascínio do eu poético  pela cor branca (típica do Simbolismo), inclusive no elogio a mulheres  brancas, e a relação do poeta pessoa-física com essas mulheres. Para  um catarinense fica fácil entender.
Você considera  que uma parte da crítica se perde ao confundir o eu poético com o  eu empírico de Cruz e Sousa, por exemplo, nessa questão da suposta  alienação racial do poeta?
Godofredo – Exatamente. Houve equívocos tanto da análise do movimento negro  em determinada época quanto de críticos acadêmicos bem estabelecidos  que reforçaram a tese de que Cruz e Sousa não tinha orgulho de sua  raça. Confundiram as bolas. Cruz e Sousa tinha, sim, muito  orgulho  de sua raça e de seu Estado natal, mesmo quando critica o lado provinciano  da época. Logo viu que no Rio de Janeiro era igual ou pior.
Poderíamos  postular que a atividade jornalística do autor, pontuada pela irreverência,  pela sátira e insolência, como você bem evidencia, teria permitido  que o poeta escoasse por esse meio a verve crítica e política, deixando  a poesia mais livre para a paixão e o exercício  estético?
Godofredo -De fato,  a raiva, às vezes irônica, saía pela pena do jornalista Cruz e Sousa.  A arte saía nos seus poemas, inclusive os em prosa, como o “Emparedado”,  por exemplo, que até hoje, mesmo depois de centenas de leitura, sempre  me emociona com uma força de arrebentar o peito da gente. Além do  papel ontológico dos escritos de Cruz e Sousa, a gente deve, como você  bem lembrou, ressaltar a sua arte, que ficou livre para correr pela  página em branco.
Em seu  livro você cita o desejo do autor de ser chamado de escritor e não  de poeta. Como poderíamos compreender essa manifestação do autor?
Godofredo – Pois é. Penso que era uma crítica velada aos parnasianos. Na época,  dizer que alguém era poeta significava dizer adepto da estética parnasiana.  A palavra escritor era mais ampla.
Há duas  tendências da crítica literária a respeito de Cruz e Sousa, em grande  medida antagônicas: uma que o analisa como poeta parnasiano, outra  como simbolista. O que você pensa afinal a respeito?
Godofredo – Ele é simbolista até a medula. Alguns críticos, inclusive com o  intuito de elogiar Cruz e Sousa, e como o Parnasianismo imperava (com  uma qualidade literária admirável),  ressaltaram alguns versos  e estrofes parnasianas. E ele tem sim versos parnasianos, como Machado  de Assis foi Romântico e Realista. No contexto global de sua obra,  porém, os versos parnasianos correspondem a vapores simbolistas.
Você que  fez a revisão da crítica da obra de Cruz e Sousa, acha que o poeta  teve seus méritos  suficientemente reconhecidos?
Godofredo – Ainda está longe do reconhecimento merecido. Mas a marcha para isso  é cada vez mais inexorável. Cruz e Sousa é um dos maiores poetas  da história da literatura e da cultura do Brasil.
Do ponto  de vista do preconceito enfrentado pelo autor, você acha que a justificativa  da divergência estética para o silêncio de Machado de Assis e mesmo  para a sua hostilidade com o poeta Cruz é definitiva e aceitável? 
Godofredo –  Foi uma briga de corrente literária, como as que sempre existem mundo  afora. Na luta pelo   reconhecimento literário e social, o catarinense  foi mais inábil do que Machado de Assis, isso é verdade. A genialidade  dos dois é, no entanto, muito semelhante.
Deixando  de lado as paixões, você concorda que a briga com Machado e outros  acadêmicos, como Raimundo Corrêa e Olavo Bilac, ajudou a enterrar  Cruz e Sousa em vida para a poesia parnasiana que já tinha espaço  consagrado no Brasil, mas contribuiu para torná-lo imortal e universal  do ponto de vista do Simbolismo? Ou seja, às avessas, o genial Machado  empurrou Cruz e Sousa para longe do seu pior, a poesia parnasiana, e  levou-o à busca do seu melhor, a universalidade, no caso, conquistada  com a aproximação de Baudelaire e Alan Poe?
Godofredo – Acho de fundamental importância essa sua colocação. A frustração  de Cruz e Sousa no Rio de Janeiro fez ele abraçar com ardor o Simbolismo.  Baudelaire e Poe passaram a ter importância vital, a estrofe parnasiana  foi sumindo mesmo. Machado, Bilac e Raimundo Corrêa, à revelia, contribuíram  para o surgimento de um dos maiores escritores simbolistas do mundo.
Por que  seu interesse pelas “catarinidades” e o que norteou a escolha de  Cruz e Sousa para seu objeto de pesquisa?
Godofredo – Santa Catarina é o meu locus espiritual. Seja em O Bruxo  do Contestado, seja em Pedaço de santo, seja em Marcelino,  seja em Menino oculto, a alma de Santa Catarina guiou sempre  a caneta e o teclado do computador. Tanto o florianopolitano Fábio,  como o Gerd e a Tecla do Contestado, quanto o Marcelino , pescador das  praias da Ilha , como o Aimoré , entre outros,são personagens que  não me largam um só instante. Choro e rio com eles. Cada vez que chego  a Floripa o meu coração dispara e dá um friozinho na barriga de emoção.  O cenário físico e humano catarinense é indispensável para a minha  criação.
Quais  os próximos projetos?
Godofredo – Estou terminando  um romance, com um estilo próximo do Menino oculto, que se passa  nos dias de hoje no oeste catarinense.
SERVIÇO – CRUZ E SOUSA  – Aniversário de 140 anos de nascimento
Lançamento:  Cruz e Sousa, o poeta alforriado
Autor: Godofredo  de Oliveira Neto
Editora Garamond,  Rio de Janeiro, coleção Personalidades Negras
Homenagem ao  aniversário de 90 anos da Academia Catarinense de Letras
Local: Auditório  da Biblioteca Universitária
Data/hora: 17 de Novembro, às 19 horas
Promoção:  SeCarte/EdUfsc/
Por Raquel Wandelli/ Jornalista na SeCArte
raquelwandelli@yahoo.com.br
9911-0524 e  3721-9459 e www.secarte.ufsc.br