O Conto dos contos: primeira tradução de clássico da literatura é realizada por pós-doutorando da UFSC
Rapunzel, o Gato de Botas, a Pequena Sereia, a Bela Adormecida, João e Maria e outros contos de fadas são conhecidos por praticamente todos os leitores. Mas Petrosinella, Talia, Nennilo e Nennela soam como estranhas personagens mesmo a alguns dos mais aficionados apreciadores de históricas mágicas. O que poucos sabem é que as personagens notórias são adaptações de contos para adultos pela primeira vez publicados na primeira metade do século XVII, como parte de uma mesma história.
A obra que os reuniu, intitulada O conto dos contos, apesar de ter sido traduzida poucos anos após sua publicação para o francês e o alemão, por exemplo, não tinha uma versão em português até o final de novembro de 2018. Esta lacuna foi preenchida com o lançamento da tradução realizada por Francisco Degani, como fruto de seu pós-doutorado junto ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução (PGET), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
O Conto dos contos
As diversas histórias compartilhadas pelo povo napolitano e da região foram adaptadas por Giambattista Basile (1566 a 1632) no decorrer do século XVII, a partir de suas viagens pelo sul da Itália. Para entreter a corte espanhola que ocupava a região de Nápoles naquele período, Basile agrupou essas histórias, tradicionalmente contadas oralmente. Não é sabido como o autor as apresentava para a corte a qual servia, mas é somente após sua morte que O conto dos contos é publicado, por sua irmã Adriana Basile, famosa cantora da época.

Primeira tradução d’O Conto dos contos para o português é fruto de pós-doutorado de Francisco Degani na UFSC. Foto: Aldy Maingué/Agecom/UFSC.
O livro agrupa 50 histórias em uma única moldura: o conto da princesa que não conseguia rir. A partir dessa grande narrativa, são apresentados os contos populares. O Conto dos contos é, portanto, uma história atravessada por outras 49 narrativas curtas, recheadas de mitos e momentos fantásticos, contando, inclusive, com adaptações de enredos até hoje populares, como os famosos Pigmaleão ou Eros e Psiqué, de Ovídio.
A obra de Basile é o mais antigo livro de que se tem conhecimento a apresentar algumas das histórias que séculos depois ficaram imortalizadas tanto pela Disney, no século XX, quanto pelos notórios Perrault e os irmãos Grimm, nos séculos XVII e XIX, respectivamente. A obra se trata, portanto, de mais do que uma grande narrativa permeada de pequenas histórias, representando também o primeiro registro de histórias que perdurarão e servirão de inspiração para contos dos quase quatro séculos posteriores aos seu lançamento.
Um exemplo bastante ilustrativo é o conto sol, lua e Talia, que é a inspiração tanto da A Bela Adormecida, da Disney, quanto do conto A rainha Marmota, de Ítalo Calvino; da história Rosicler, dos irmãos Grimm; e até do filme Fale com ela, do diretor espanhol Pedro Almodóvar.
Primeira tradução para o português é lançada em 2018
Todas essas adaptações somente foram realizadas por serem conhecidas por leitores que não dominavam a língua napolitana em que foram escritos os contos pela primeira vez. Logo, as traduções realizadas é que permitiram a disseminação dessas histórias. Tanto Perrault quanto os irmãos Grimm tiveram acesso a O Conto dos Contos por já haverem traduções para o francês e o alemão algumas décadas após as primeiras publicações.

Francisco Degani cotejou diversas traduções para o italiano para produzir livro em português Foto: Aldy Maingué/Agecom/UFSC.
A despeito da relevância histórica e mesmo fundamental da obra, que inspira há gerações diversas produções artísticas, o texto de Basile não possuía, entretanto, uma versão em português, até 2018. A inédita tradução d’O conto dos contos recém lançada preenche assim uma importante lacuna da história da literatura para a língua portuguesa, permitindo o acesso agora aos leitores em português a algumas das mais elementares histórias do ocidente.
A versão traduzida, e lançada em 28 de novembro, tornou aos leitores de língua portuguesa mais acessíveis narrativas tradicionalmente contadas por séculos e que influenciam até os nossos dias algumas das mais marcantes histórias que mais do que ogros, princesas e animais falantes, retratam parte da história da própria humanidade.
A tradução e o tradutor
Já experiente em traduções do italiano ao português, Francisco Degani se propôs a um desafio novo para seu pós-doutoramento junto ao PGET: realizar a primeira tradução do clássico da literatura barroca italiana, cujo idioma original não é o italiano, mas o napolitano. Publicado na década de 1630 – distante, portanto, quase 250 anos do processo de unificação italiana -, O Conto dos contos foi redigido em uma “língua napolitana quase erudita, de uso na corte de Nápoles, que era vice-reinado espanhol e, portanto, recheada de espanholismos” (p. 19).
O tradutor cotejou o original, em napolitano, com todas as traduções conhecidas em italiano, em especial o recente trabalho da filóloga italiana Carolina Stromboli, que publicou uma edição bilíngue napolitano/italiano da obra, em 2013. Realizado sob supervisão de Andréia Guerini, o árduo trabalho realizado também considerou os prefácios de versões em francês, inglês e alemão, de modo a ser o mais fiel possível com as primeiras edições do texto, publicado por Adriana Basile.
Vencedor do Prêmio Rónai de 2012, por sua tradução de Os noivos, de Alessandro Manzoni, Francisco Degani, nesta primeira tradução ao português do clássico da literatura, proporciona aos leitores uma elucidativa introdução de sua própria autoria e prefácios do escritor, poeta e pesquisador de cultura popular Marco Haurélio e da professora Angela Albanese, da Universidade de Verona. A edição exibe ainda a tradução do notório prefácio de Benedetto Croce, da edição italiana de 1925, e dez ilustrações de Franz Von Baros (1866-1924), feitas para a tradução alemã, de Felix Liebrecht. Um verdadeiro deleite aos amantes da literatura.
Gabriel Martins/Agecom/UFSC