Curso de Gênero e Feminismos expõe diversidade de perspectivas acadêmicas e práticas
Durante cinco dias, cerca de 500 pessoas – em sua grande maioria mulheres –, estiveram reunidas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para discutir questões relacionadas ao protagonismo e às lutas da mulher na sociedade. O 7º Curso de Gênero e Feminismos, promovido pelo Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC) entre 18 e 22 de fevereiro, foi marcado pela diversidade de perspectivas e pelo diálogo constante e intenso entre a academia e os movimentos sociais. Pesquisadoras, estudantes, ativistas, moradoras da cidade e do campo, negras, indígenas, estrangeiras: mulheres com múltiplas trajetórias e experiências de vida participaram das exposições, debates e atividades culturais. O clima foi de reflexão crítica, resistência e também de celebração e alegria.
O curso recebeu este ano um número recorde de inscritas: 939. Foi o evento mais procurado entre os cursos de verão de 2019 da Escola de Extensão da UFSC. A enorme demanda surpreendeu as organizadoras, uma vez que a primeira edição do curso, em 2007, teve somente 20 participantes. “Em apenas algumas horas, as 100 vagas inicialmente disponíveis já estavam esgotadas. Resolvemos aumentar o número, mas em dois dias as 300 novas vagas também já tinham sido preenchidas”, relata Vera Gasparetto, doutoranda do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH/UFSC), integrante do IEG e uma das organizadoras do evento. Além de Florianópolis, as participantes vieram de outras cidades de Santa Catarina – Criciúma, Itajaí, Joinville, Chapecó etc – e também de outros estados, como Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
Vera acredita que o grande interesse pelo tema se deve à atual conjuntura política, que suscita a necessidade de pensamento crítico e engajamento político; como também do esforço do IEG em se aproximar cada vez mais da sociedade civil, sobretudo através da interlocução com os movimentos sociais. “Trouxemos para essa edição três representações que consideramos emblemáticas para o momento que vive o país: Vanda Pinedo, que representa o Movimento Negro Unificado (MNU) e abordou questões relativas às mulheres negras; Justina Cima, coordenadora nacional do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC); e Carla Ayres, coordenadora da Associação Acontece – Arte e Política LGBTI+. Procuramos colocar, em cada mesa, uma visão acadêmica e outra da sociedade, de pessoas engajadas em lutas concretas, no ativismo.”
Além da proximidade com os movimentos sociais, o IEG também integra o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e a Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres, buscando contribuir na formulação de políticas públicas para mulheres. “Mas ainda temos um déficit”, explica Vera, “precisamos fazer mais trabalhos articulados, construir pesquisas em parceria com os movimentos feministas. A teoria feminista e os estudos de gênero ainda podem contribuir muito. Vemos aqui no Brasil e em várias partes do mundo uma tentativa de neutralizar, de aniquilar os avanços já conquistados. Mas as mulheres estão resistindo na academia e nos espaços de luta política. Hoje já são milhares de mulheres que se dizem feministas.”
A professora Miriam Grossi, coordenadora do IEG, também ressaltou o número impressionante de inscrições: “Observamos que esses eventos dedicados a discutir feminismo e gênero tem ampliado de forma exponencial o público. É muito importante essa contrarreação aos movimentos misóginos, conservadores e populistas contrários aos estudos de gênero. O que vemos é um aumento no número de pessoas que querem se informar, aprender e se integrar de forma mais aprofundada nas lutas feministas.” Para Miriam, outro ponto positivo nessa edição do curso foi a abrangência dos temas: “Cada vez chegam novas visões do feminismo e das teorias feministas. É fundamental escutar outras vozes e mostrar que o feminismo é realmente um campo teórico e político de grande amplitude. Nós somos muito plurais e nesse campo cabem muitas formas de pensar.”
Convidada para a conferência de abertura, Claudia Lee Williams Fonseca, professora titular do curso de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), igualmente destacou que “o número expressivo de participantes no curso é uma resposta incrível ao que está acontecendo no país”. Claudia relatou que olhar o mundo pela perspectiva dos estudos feministas tem transformado a maneira como ela pensa. “Esse novo olhar pode ser importante para a transformação política no atual contexto. Qual é o objeto de pesquisa dos estudos feministas? São as pessoas discriminadas e desvalorizadas apenas por serem mulheres; os processos invisibilizados; as situações sexistas. Uma das fundadoras do movimento feminista nos EUA afirmou, nos anos 1980, que a tarefa que surge para as pesquisadoras não é, como antes, documentar o penetrante sexismo enquanto fato social, mas sim enfrentar os desafios, descobrir novas maneiras de lutar contra as desigualdades onde quer que elas existam.”
A pesquisadora abordou a importância das interseccionalidades dos estudos feministas com todas as outras formas de discriminação, como o racismo e a heteronormatividade: “Devemos fazer articulações com os movimentos indígenas, black, queer, LGBT.” E também discorreu sobre a pertinência de se estudar as esferas desvalorizadas da vida: “Os estudos feministas têm essa ideia de valorizar perspectivas que não venham de cima e que não sejam necessariamente as perspectivas consagradas. A violência contra a mulher e a discriminação social são assuntos urgentes; as leis discriminatórias são temas absolutamente prioritários. Mas os estudos feministas também devem se voltar a assuntos desprezados, como o espaço doméstico. O que a mulher faz em casa não recebe atenção, não recebe valor, não é considerado um tema nobre de pesquisa. Devemos procurar ver o que foi invisibilizado. É importante não hierarquizar temas de estudos.”
‘Precisamos refazer as classificações do mundo’
O pensamento colonialista e as ideias preconcebidas do mundo foram criticados por Claudia, que procurou demonstrar a complexidade da vida real: “Devemos evitar julgamentos simplistas. O grande desafio é sair dessas categorias preconcebidas e tentar pensar de outra forma. A historiadora francesa Michelle Perrot afirma que as mulheres não vão se satisfazer com um capítulo maior sobre elas na enciclopédia da humanidade, ‘elas querem refazer as classificações do mundo’. Outra pesquisadora, a holandesa Annemarie Mol, também diz: ‘O feminismo que pratico aqui não procura avançar a causa das mulheres, mas sim interferir nas categorias de nossa compreensão social do mundo.’ É isso que precisamos fazer, produzindo um conhecimento crítico e responsável.”
Essa “reclassificação do mundo” implica em repensar também as categorias do mundo natural. “Muitos pesquisadores, de todas as áreas, estão reconhecendo que isso pode ajudar não só a trazer a ciência a serviço de uma sociedade mais justa, mas também a pensar de forma mais sofisticada o próprio mundo natural. Uma nova geração está se mostrando muito mais aberta.” É preciso levar em conta, conforme expôs a pesquisadora, que o conhecimento acadêmico caracteriza-se por sua fragilidade: “Temos sempre que reconhecer que estamos produzindo conhecimentos frágeis, que podem ser datados. O saber acadêmico, em todas as épocas, é um saber situado e parcial. Todas as ciências, não só as humanas, mas também as exatas e biológicas, são inevitavelmente frágeis e datadas. Nunca estamos no último grau da sabedoria.”
Claudia também reforçou a importância do trabalho político, essencial para os avanços sociais: “Eu não acredito necessariamente numa solução mágica, não acredito na superioridade do meu saber. Estou aberta e atenta a essa realidade complexa. Engajar-se com as práticas concretas da vida real exige trabalho, rigor, afeto e persistência. Isso é o mais importante de uma ética feminista. O conhecimento é resultado de uma experiência colaborativa, envolvendo não só nossos interlocutores de campo, mas também colegas acadêmicos, parceiros políticos. Ter o prestígio e reconhecimento de nossos saberes depende, antes de tudo, de trabalho político investido pela coletividade.”
‘A academia e o ativismo não são incompatíveis’
A conferência de encerramento do curso teve uma palestrante internacional: a pesquisadora Patrícia Godinho Gomes, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas da Guiné-Bissau – país de língua portuguesa da África Ocidental –, e que atualmente atua como professora visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Patrícia discorreu sobre a trajetória de várias pesquisadoras feministas, brasileiras e estrangeiras, defendendo a ideia de que não é incompatível participar dos movimentos sociais, ser uma ativista, e ao mesmo tempo uma acadêmica, uma intelectual. “Devemos sim saber distinguir as coisas e nos posicionarmos com cautela, vendo onde está o limite de um e outro. Mas estar nos dois espaços não só é possível, como também enriquecedor. Na Bahia temos a socióloga Vilma Reis, por exemplo, que é uma grande ativista e uma intelectual poderosa.”
Patrícia argumentou que são muitas as vantagens dessa proximidade entre a pesquisa e o engajamento político: “O objetivo final das mais diversas lutas é sempre a liberdade. Lutamos por coisas diferentes, mas nosso propósito é sempre a liberdade: liberdade de agir, liberdade de pensar. Se não pensamos, não somos livres. E para agir, é preciso pensar, já que a ação vem do pensamento. E aí está a contribuição da academia. Se você não dialoga com aquilo que estuda, o que você produz não vale absolutamente nada. O pensamento teórico, a teoria, as abordagens acadêmicas são importantes para fornecer as ferramentas de luta.”
Quanto às especificidades dos movimentos de mulheres, Patrícia afirmou que a luta feminista contribui não apenas para a causa das mulheres, mas também para o progresso de toda a sociedade: “Tem uma frase da Angela Davis que ficou muito famosa. Ela disse: ‘Quando as mulheres se movem, toda a estrutura política e social se movimenta na sociedade.’ Isso tem um significado profundo e vai além até das nossas capacidades de entendimento.” Para Patrícia, a filósofa estadunidense Angela Davis – que foi integrante do partido Panteras Negras e ficou conhecida por sua militância contra as discriminações raciais, sociais e sexistas – consegue estabelecer um diálogo equilibrado e coerente entre a dimensão teórica e a ação social. “Ela esteve sempre ao lado do ativismo, dos movimentos sociais. Isso nos mostra mais uma vez que é possível sim fazermos pesquisa e sermos ativistas.” Davis, que tem hoje 75 anos, já publicou diversos livros sobre essas questões, vários deles traduzidos para o português.
Participantes de outros estados
O conteúdo apresentado durante os cinco dias de curso correspondeu às expectativas do público, inclusive daquelas que vieram de outros estados. Priscila da Silva Barboza faz pós-doutorado em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e veio de Curitiba especialmente para participar do evento. “Eu me senti extremamente acolhida aqui. Já conhecia a tradição e o potencial da UFSC nos estudos feministas e de gênero. Valeu muito a pena conhecer de perto o trabalho das pesquisadoras dessa universidade. As palestras foram bastante diversas, de muita qualidade e seriedade, e geraram discussões pertinentes. Conseguimos ter um panorama bem interessante do que se discute hoje nesse campo.” Patrícia relata que a identificação com essas temáticas surgiram ao longo de sua trajetória acadêmica, e desde o mestrado ela vem estudando questões relativas à violência doméstica.
Aline Mendonça Fraga, doutoranda em Administração pela UFRGS e membra do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (NEPGS/IFRS), também ressaltou o histórico da universidade nesse campo de estudos, apontando para a importância da Revista de Estudos Feministas – publicação editada pelo IEG desde 1992. Aline, que pesquisa questões de gênero relacionadas à carreira, esteve na UFSC anteriormente, em 2017, para participar da 11ª edição do Fazendo Gênero. Ela aproveitou o curso de extensão como mais uma oportunidade de trocar experiências com pesquisadoras que já têm longa trajetória acadêmica na área. Ao final do curso, expressou grande satisfação com as discussões que presenciou: “Gostei muito de todas as palestras, foram maravilhosas.”
Outra doutoranda em Administração da UFRGS, Magdalena Cortese Coelho, considerou o curso um respiro, por se configurar em um espaço onde o debate sobre questões de gênero flua livremente, sem que seja considerado um tabu, como muitas vezes ocorre em certos ambientes sociais. “É muito bom sentir que não estamos sozinhas”, afirmou. Ela estuda especificamente o feminismo no Brasil e o ativismo intelectual das mulheres, procurando averiguar como o trabalho acadêmico pode contribuir para promover a justiça social: “Aqui foi possível ouvir diferentes visões sobre o tema e também observar como atuam aquelas que estão dentro e fora da universidade. Aproveitei inclusive para fazer várias entrevistas, que serão muito úteis para minha pesquisa.”
Próximos eventos
A 8ª edição do curso de Gênero e Feminismos está prevista para o segundo semestre deste ano. Em 2020, de 27 a 31 de julho, a UFSC sediará novamente o “Fazendo Gênero 12“, que terá como tema “Lugares de fala: direitos, diversidades, afetos”.
No Dia Internacional da Mulher, 8 de março, será realizado o 8M – Greve Internacional de Mulheres, uma ação global que ocorre simultaneamente em várias cidades do Brasil e do mundo. Este ano, o evento homenageará Marielle Franco, ex-vereadora do Rio de Janeiro e militante pelos direitos humanos, assassinada em 14 de março de 2018. Em Florianópolis está programada uma concentração ao longo de todo o dia em frente ao TICEN, com tendas temáticas, rodas de conversa e apresentações culturais. A partir das 19h, os manifestantes sairão em marcha pelas ruas da cidade. A programação completa está disponível aqui.
Mais informações sobre gênero, feminismo e movimentos de mulheres:
Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC)
Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividades (NIGS/UFSC)
Acontece – Arte e Política LGBTI+
Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres
Conselho Estadual dos Direitos da Mulher
Movimento de Mulheres Camponesas
Movimento Negro Unificado de Santa Catarina
Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC