UFSC integra Grupo de Trabalho que propõe marco regulatório para pesquisas com cannabis no país

Cultivo de cannabis em área externa no Campus da UFSC em Curitibanos. Fotos: Luís Carlos Ferrari/Agecom/UFSC
A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) integrou o Grupo de Trabalho de Regulamentação Científica da Cannabis, que reuniu especialistas de 31 instituições acadêmicas e de pesquisa do Brasil e elaborou uma Nota Técnica com subsídios e propostas para a criação de um marco regulatório abrangente para as pesquisas relacionadas à cannabis.
Os representantes da UFSC foram o pró-reitor de Pesquisa e Inovação, professor Jacques Mick, e a diretora do Centro de Ciências Agrárias (CCA), professora Marlene Grade. O resultado do trabalho do GT foi encaminhado ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
No documento, os pesquisadores relatam que, a despeito do grande potencial, vários fatores limitam o desenvolvimento das pesquisas com Cannabis sativa L no Brasil. O grupo se dedicou a identificar, mapear e sistematizar esses obstáculos, propondo soluções para os principais gargalos e trazendo subsídios para a elaboração de um marco regulatório.
Consulta a 132 pesquisadores
Para realizar este mapeamento, os integrantes do GT fizeram uma consulta entre as instituições participantes: universidades federais e estaduais, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). No total, 132 pesquisadores responderam à consulta, identificando 481 problemas ou entraves para a realização de pesquisa com cannabis. Esses problemas foram analisados, agrupados e categorizados em sete eixos temáticos.
Entre os entraves críticos apontados na Nota Técnica estão a burocracia, morosidade e subjetividade nos processos de autorização para pesquisas relacionadas à cannabis, muitas vezes envolvendo a sobreposição de demandas de diferentes órgãos; dependência da importação e dificuldade de acesso a insumos padronizados; restrições ao cultivo para fins científicos e limites arbitrários de teor de tetrahidrocanabinol (THC), que inviabilizam estudos comparativos e protocolos reprodutíveis.
A burocracia no fluxo de materiais (amostras de cannabis e derivados) entre instituições que desenvolvem pesquisas em todo território nacional foi apontado como barreira para a cooperação e para a criação de uma rede nacional colaborativa, o que poderia otimizar a utilização de recursos de infraestrutura distribuídos em todo país.
Por fim, as incertezas no uso de coprodutos e derivados do processamento da cannabis, tais como fibras têxteis e bioinsumos agrícolas, dificultam o estabelecimento de cadeias produtivas sustentáveis. E a ausência de protocolos claros para pesquisas com animais de produção (bovinos, porcos, aves e peixes) desestimula as pesquisas para desenvolvimento de produtos veterinários.
Para cada conjunto de problemas identificados, o GT apresentou propostas com potencial de transformar o Brasil de importador e dependente de tecnologias e insumos a exportador e protagonista no cenário internacional da pesquisa com cannabis.
“Muita riqueza e muita saúde podem vir desses estudos”, diz pró-reitor
O professor Jacques Mick ressalta os benefícios que uma regulamentação das pesquisas com cannabis poderia trazer. “Um marco regulatório para a pesquisa com cannabis no Brasil é absolutamente necessário para garantir a segurança jurídica e ampliar a escala e a consistência dos estudos realizados pela UFSC. Nossa Universidade foi pioneira nos estudos canábicos no Brasil desde a década de 1980. Hoje desenvolvemos ou testamos medicamentos para uso em animais humanos e não humanos, combatendo doenças como câncer, depressão, epilepsia, Mal de Parkinson ou Alzheimer. Também testamos fibras para a indústria têxtil ou de papel e ainda investigamos o impacto regenerativo do cultivo e produzimos melhoramento genético das plantas. Muita riqueza e muita saúde podem advir desses estudos, desde que a norma em elaboração pelo governo atenda aos pontos mencionados na nota técnica pelos mais importantes cientistas do Brasil nessa área”.

Mais de 60 instituições científicas e tecnológicas estão envolvidas em pesquisas com cannabis, com predominância de universidades federais e estaduais
Para a professora Marlene Grade, a participação da UFSC no GT foi bastante importante e a Nota Técnica construída é relevante ao apresentar soluções que viabilizam a possibilidade de realizar pesquisas. Ela espera que a Nota Técnica seja transformada em lei, criando condições para deslanchar vários projetos. “Aqui no CCA nós temos em torno de 10 pesquisadores diretamente envolvidos ou querendo se envolver com a pesquisa, mas em função da insegurança jurídica isso não caminhou”.
Ajuda também na recuperação do solo
Alguns projetos estarão voltados ao desenvolvimento dos aspectos agronômicos da cannabis. “A gente quer adaptar a planta para as condições de clima e de solo do Estado, e para fazer esta pesquisa você precisa ter a possibilidade de plantá-la, de reproduzi-la, quer seja em cultivo indoor ou outdoor”, diz a diretora do centro. “Também gostaríamos de recuperar matrizes desta planta, nós temos só derivados e mudas de plantas que podem não ser as ideais”.
A Universidade tem um grupo de pesquisadores dedicados atualmente à construção de uma rede interna e externa com o propósito de, junto com as associações, fazer avançar a pesquisa com a cannabis. De acordo com a professora Marlene, a planta possui qualidades que podem ajudar na recuperação do solo e, junto com o cânhamo, potencial de gerar produtos como tecidos e insumos para a construção civil. “O cânhamo e a cannabis não têm diferenças físicas, então você provar que aquilo que você está plantando é cânhamo e não cannabis pode envolver também questões jurídicas, porque as plantas visualmente são idênticas”.
Além da pesquisa, a regulamentação da cadeia produtiva da cannabis pode envolver e gerar benefícios também para a agricultura familiar, principalmente na produção do cânhamo e, em menor escala, o cultivo de cannabis para a produção de medicamentos. “Neste caso (cultivo da cannabis) precisa ser uma produção bem qualitativa e bem controlada, para obter óleos de qualidade”, diz Marlene Grade.
Condições para polo de referência
O professor Erik Amazonas, do Centro de Ciências Rurais da UFSC, em Curitibanos, avalia que foi uma boa iniciativa a criação de um GT para construção de um marco regulatório para pesquisas com a cannabis. “Acho bom porque isso amplifica nosso poder de pesquisa, de produção de ciência nacional. De fato, vai ao encontro de nossa soberania científica e acadêmica, e da autonomia universitária também. Para Curitibanos, impacta mais no sentido de parcerias, porque aqui nós já temos plena autorização para pesquisa em todos os aspectos da planta”, analisa.
No final de 2022, o professor Erik Amazonas obteve da Justiça Federal um salvo-conduto autorizando-o a realizar o cultivo, preparo, produção, fabricação, depósito, porte e prescrição da Cannabis sativa. Com isso a UFSC tornou-se a primeira instituição de ensino superior do país a obter uma autorização judicial para produzir todos os insumos necessários à pesquisa de aplicação da cannabis na área da medicina veterinária.
Ele espera que essa iniciativa contribua para que a instituição promova a consolidação do Campus de Curitibanos da UFSC como um centro de excelência na área de pesquisas com cannabis. “Aqui a gente tem um campus inteiro e um centro (de Ciências Rurais) com disponibilidade, autorização legal e todas as condições para virar um polo de referência mesmo, de produção, desenvolvimento, inovação”.
Pesquisas em todas as regiões
Para subsidiar a Nota Técnica, o Grupo de Trabalho de Regulamentação Científica da Cannabis realizou um mapeamento nacional que identificou pesquisas com cannabis em todas as regiões do país, muitas vezes desenvolvidas em parceria com associações de usuários de cannabis medicinal. O Nordeste aparece como líder em quantidade de centros de pesquisa, seguido pelo Sudeste. Juntas, as duas regiões respondem por 60% das instituições e 50% dos profissionais envolvidos.
Nas regiões Sul e Centro-Oeste, a ênfase é em aspectos agronômicos e biotecnológicos, evidenciado a complementaridade das pesquisas e o grande potencial para o estabelecimento de redes nacionais de colaboração.
Foram identificadas mais de 60 instituições científicas e tecnológicas envolvidas em pesquisas com cannabis, com predominância de universidades federais e estaduais. Muitas pesquisas têm como foco o uso medicinal de derivados na cannabis, principalmente aplicações terapêuticas e desenvolvimento de produtos farmacêuticos.

Muitas pesquisas têm como foco aplicações terapêuticas e desenvolvimento de produtos farmacêuticos derivados da cannabis
No documento, os pesquisadores ressaltam que os “entraves regulatórios” desestimulam pesquisadores, limitam a inovação e aprofundam a dependência tecnológica do Brasil na área. “Enquanto o país debate normas, os EUA, China e Canadá dominam o cenário global – com 1.152 patentes de cannabis nos últimos 5 anos. Paradoxalmente, esse atraso ocorre num contexto de vigor acadêmico: expansão de pesquisas, forte participação de pós-graduandos e potencial científico reconhecido”.
Por outro lado, a criação de um marco regulatório e o desenvolvimento de pesquisas científicas no campo da cannabis se apresenta como “oportunidade estratégica”, que permitiria ao País reduzir sua dependência tecnológica no setor. “A construção de um ecossistema de pesquisa forte e integrado – conectando universidades, institutos de pesquisa, associações, agricultores e indústria – criaria as bases para uma cadeia produtiva inovadora e competitiva internacionalmente”, afirmam os pesquisadores.