Grupo da UFSC cria IA que facilita acordos de conciliação em ações contra companhias aéreas

20/08/2025 13:50

Com uma base de dados com cerca de 1,8 mil sentenças, a ferramenta de uso gratuito desenvolvida na UFSC é capaz de “prever” os valores indenizatórios das ações de conciliação. Foto: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC

Você já viajou de avião, perdeu seu voo devido a atrasos da companhia aérea e acabou não comparecendo a um evento importante? Ou já teve sua mala extraviada durante a viagem? No Brasil, casos como esses, que podem configurar ações cíveis de danos morais ou materiais na esfera judicial, são muito comuns. 

Segundo a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear), o Brasil concentra 98,5% de todas as ações judiciais contra companhias aéreas no mundo. O levantamento publicado pela Abear em 2024 aponta que, em média, a cada um (1,04) voo são registradas duas ações no setor no país. Em comparação, nos Estados Unidos, por exemplo, os mesmos dois processos são registrados a cada 5,17 mil voos.

Com base nesse cenário, que gera transtornos ao setor aéreo e à Justiça brasileira, o grupo de pesquisa Governo Eletrônico, Inclusão Digital e Sociedade do Conhecimento (Egov) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) desenvolveu a Concil-IA, uma inteligência artificial (IA) que facilita os processos de conciliação entre consumidores e empresas aéreas em casos de danos morais e materiais.

Orientado pela professora do Departamento de Ciências Jurídicas Isabela Cristina Sabo, o programa criado por estudantes de Direito, Ciência da Computação e Sistemas de Informação da UFSC é capaz de “prever” os valores indenizatórios das ações. Por meio de uma base de dados com cerca de 1.850 sentenças extraídas do Fórum Desembargador José Arthur Boiteux, localizado na UFSC, a IA analisa os casos apresentados e aponta valores de indenização equivalentes.

Para realizar essa consulta, qualquer pessoa, seja o consumidor ou o advogado conciliador, pode acessar o programa via navegador, preencher os formulários que explicam a situação ocorrida com o voo e receber uma previsão aproximada daquilo que ela poderia reembolsar caso buscasse um acordo com a empresa.

Conforme a professora Isabela, a Concil-IA tem, sobretudo, o objetivo de acelerar os processos de conciliação entre as partes, instruindo clientes sobre as possíveis indenizações, auxiliando advogados na negociação dos acordos no âmbito do Direito do Consumidor e desafogando o sistema de Justiça. “A ideia vem de possibilitar ao jurisdicionado, ao cidadão que procura a Justiça, o acesso ao que pode vir a acontecer com a demanda dele, e que essa informação seja utilizada para que as partes envolvidas naquele conflito possam tomar uma decisão por elas mesmas, sem depender do juiz, ou seja, sem depender do Estado.”

O grupo ressalta que, apesar de disponível ao público, a Concil-IA está em fase inicial de desenvolvimento, fornecendo resultados informativos que não substituem a análise individual dos casos pelo magistrado do órgão competente. Além disso, a ferramenta pode apresentar comportamentos inesperados, especialmente em situações com combinações raras de fatores, para as quais há poucos dados de comparação no histórico de treinamento do modelo.

A Concil-IA foi treinada com base em decisões judiciais disponíveis até 22 de maio de 2025. Portanto, eventuais mudanças no entendimento do juízo local ou de instâncias superiores após essa data não estão refletidas nas predições geradas, acrescentam.

Desenvolvimento da Concil-IA

A ideia do projeto nasceu em 2019, durante o doutorado da professora, como um piloto, um primeiro modelo a ser aplicado nas audiências de conciliação. A partir de 2023, o grupo passou a trabalhar na aplicação da ferramenta para o público em geral, com foco em simplificar e disponibilizar o modelo aos usuários e ao Fórum da UFSC.

Instalado desde 1993 dentro do campus da Trindade da UFSC por um convênio entre a universidade e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), o Fórum é o principal parceiro do grupo de pesquisa na aplicação da Concil-IA. Pioneiro no atendimento em Juizados Especiais, o Fórum cede as informações dos processos anteriores ao grupo de pesquisa e coloca em prática o uso da inteligência artificial para a conciliação de novas disputas de indenização.

Mas antes de passar os dados à IA e colocá-la em uso, a análise dos processos é feita por humanos. Para chegar até a etapa de conciliação, o modelo passou por um treinamento que utiliza uma grande base de dados construída por “especialistas de domínio”. Nesse caso, os especialistas foram os estudantes de Direito da UFSC que integram o projeto. Por possuírem conhecimento jurídico, eles foram os responsáveis por coletar os processos judiciais, estudá-los e, a partir deles, elaborar uma base estruturada contendo as principais informações extraídas desses processos.

Nessa etapa, o Generative Pre-trained Transformer (GPT) foi a principal ferramenta utilizada pelo grupo para auxiliar na construção automatizada da base de dados. A IA é capaz de responder às variáveis dos processos, analisar os casos e definir se houve atraso no voo, qual foi o tempo de atraso, se havia pessoas idosas, entre outros. “É como se o GPT atuasse como um humano. Ele lê várias sentenças anteriores e responde às perguntas”, exemplifica Lucas de Castro, membro do grupo e mestrando em Direito pela UFSC.

As respostas foram usadas para treinar um modelo de predição, que irá se basear em processos semelhantes para prever a indenização de uma nova disputa. Nesse contexto, o prompt é essencial para o desenvolvimento da ferramenta, afirmam os estudantes. Um prompt, na área de inteligência artificial generativa, é um texto em linguagem natural que pode servir como instrução ou pergunta para que a IA produza um resultado específico. É a forma como interagimos com a IA para direcioná-la a gerar textos, imagens, músicas ou qualquer outro tipo de conteúdo.

“Escrever um bom prompt é importante. A IA não trabalha sozinha. Isso tem que ficar claro para desmistificar essa ideia de que eu abro o GPT e coloco um prompt bem pequeno dizendo: ‘escreva para mim tal coisa’. Não, é assim que funciona, e geralmente não vai dar o resultado esperado”, afirma Lucas. Logo, para que o GPT respondesse às perguntas com a precisão máxima e que fosse possível relacionar os resultados com os valores de indenização calculados, foram testados diversos prompts com diferentes versões da IA. Ao final, a versão escolhida pela equipe foi o GPT-4.

Com o modelo de predição e os prompts estruturados, o trabalho é finalizado com a parte de front-end — criar uma interface para o usuário — e back-end — conectar essa interface ao modelo da IA. O grupo defende que a escolha por utilizar o GPT em conjunto com a estruturação de um modelo de menor custo computacional pelos estudantes foi tomada para possibilitar um acesso público e facilitado à Concil-IA.

Segundo Lucas, hoje a atualização da base de dados que alimenta a Concil-IA é híbrida, feita pelos estudantes e pela inteligência artificial, e deve continuar assim por alguns anos devido a erros recorrentes cometidos pelas ferramentas. “É importante não dar total liberdade ao modelo, ao GPT. Hoje, atuamos juntos com ele. Essa sinergia é importante porque conseguimos conferir se o modelo acertou”, diz.

Os pesquisadores também destacam o compromisso com a gestão de dados sensíveis dos processos para fins de privacidade, mas também de funcionalidade da IA. “Não incluímos qualquer informação sensível dos envolvidos na sentença. Tem todo um processo de anonimização das sentenças em que removemos os nomes, por exemplo. E nem o nome do juiz colocamos, porque o modelo pode começar a ficar viciado em coletar as informações de um mesmo magistrado”, ressalta Arthur Capaverde, estudante de Sistemas de Informação.

Aplicação em outras áreas

De acordo com o graduando em Ciência da Computação Maycon Marcos Júnior, a escolha pelas ações de conciliação no setor aéreo ocorreu por conta desse tipo de processo judicial possuir demandas repetitivas. No caso dos processos contra companhias aéreas, é comum que os consumidores busquem o judiciário para sanar problemas similares na perspectiva judicial, como extravio de bagagem e atraso de voos.

A repetição desses fatores, que, segundo a professora Isabela, são decisivos no resultado final da indenização, permite que o modelo de predição seja automatizado com o uso da IA. Com isso em mente, os acadêmicos pretendem ampliar o desenvolvimento de ferramentas para outras áreas, como o setor bancário e o de telecomunicações, com grande volume de ações similares, nos quais é possível observar padrões. 

“Pretendemos expandir para aqueles que são grandes demandantes. Até porque o objetivo final do projeto é desafogar um pouco o sistema”, completa a professora.

Informatização da Justiça no Brasil

“Hoje, o Judiciário brasileiro é conhecido mundialmente por ser um judiciário altamente litigioso, e isso gera um problema, que é um congestionamento, uma morosidade. Há uma demora muito grande para o cidadão que aciona o Judiciário ter um retorno”, defende Isabela.

Conforme a professora, desde 2010, o Judiciário passa por um processo de informatização que abriu espaço para a inserção de novas iniciativas na área de tecnologia. Atualmente, os processos já tramitam de forma 100% eletrônica. Nesse cenário, a nova tendência da IA surgiu a partir de 2020 com as primeiras iniciativas no setor.

Em resposta à então crescente utilização de ferramentas de inteligência artificial, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou políticas para a gestão e o bom uso dos recursos. Em agosto de 2020, o CNJ instituiu o Sinapses, uma plataforma nacional de armazenamento, treinamento supervisionado, controle de versionamento, distribuição e auditoria dos modelos de IA no Judiciário brasileiro.

A plataforma estabelece os parâmetros de implementação e funcionamento das ferramentas pelo Brasil, esclarece Isabela. “Qualquer juiz, tribunal ou vara que esteja utilizando algum modelo de inteligência artificial no fluxo de tarefas, gestão processual ou para auxiliar a própria tomada de decisão judicial precisa informar ao Sinapses.”

Em março deste ano, o CNJ tomou sua decisão mais recente sobre as ferramentas ao aprovar a resolução que estabelece diretrizes para o desenvolvimento, a utilização e a governança de soluções desenvolvidas com recursos de inteligência artificial no Poder Judiciário. 

Conforme a professora, as decisões do CNJ garantem a auditabilidade e a transparência no setor, abrindo espaço para avanços na gestão de processos e delimitando os parâmetros que regem a aplicação da ferramenta desenvolvida na UFSC. “A Concil-IA surge da ideia de unir essas políticas. Ou seja, fornecer para as partes uma possibilidade do que vai acontecer com o processo delas nesse momento inicial e, com isso, finalizar o processo nesse início ou, a depender, nem iniciar esse processo”, resume.

Como usar a Concil-IA: passo a passo

1 – Para utilizar a Concil-IA, clique em “Quero conciliar” no site do projeto ou entre diretamente pelo app.concilia.ufsc.br;

2 – Preencha o formulário de “Verificação de Responsabilidade da Companhia Aérea”, conforme ocorrido em seu voo;

3 – Se seu caso apontar responsabilidade da companhia, você deverá clicar em “Ir para a próxima página”. Se seu caso não apontar responsabilidade da empresa, você não seguirá com o atendimento da Concil-IA;

4 – Preencha o formulário de fatores determinantes na ação, conforme ocorrido em seu voo;

5 – Para enviar o formulário, clique em “Não sou um robô” para realizar o Captcha, concorde com termos de uso e clique em “Consultar”;

6 – Por fim, a Concil-IA irá exibir uma previsão da faixa do valor de danos morais, juntamente com um gráfico que demonstra como o valor foi calculado com base nos fatores do banco de dados.

 

Vinícius Graton agecom@contato.ufsc.br
Estagiário da Agecom | UFSC
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