Professor da UFSC questiona o uso de animais em laboratórios e muda sua trajetória de pesquisa

O professor Aguinaldo Roberto Pinto no Laboratório de Imunologia Aplicada na UFSC. Foto: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC.
O professor Aguinaldo Roberto Pinto, do departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de Santa Catarina (MIP/UFSC), vinha desenvolvendo estudos sobre vacinas desde 1996. Naquele ano, ele ingressou no doutorado em Imunologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e estava entusiasmado com a possibilidade de contribuir para o desenvolvimento de uma vacina experimental utilizando uma abordagem nova a partir do DNA. Em 2000, ele defendeu a tese “Vacinação de camundongos BALB/c com o gene da gp43 de Paracoccidioides brasiliensis: estudo da resposta imune” e seguiu pesquisando sobre vacinas ao longo da década seguinte.
Entretanto, em determinado momento de sua carreira, Aguinaldo decidiu mudar os rumos de suas investigações e hoje o desenvolvimento de imunizantes não está mais em seu horizonte. O principal motivo dessa transição é o fato de o professor deixar de acreditar que animais possam ser usados como cobaias em estudos que visam algum possível benefício aos humanos. Para Aguinaldo, o emprego de animais em testes de laboratórios tem validade científica duvidosa. “Com os novos recursos científicos e tecnológicos atualmente disponíveis, em breve será considerada uma prática antiga e ultrapassada”, observa.
Trajetória
A experimentação com animais fez parte da trajetória do pesquisador. Seu primeiro projeto de iniciação científica, na então Escola Paulista de Medicina (desde 1994, Unifesp), onde graduava-se em Ciências Biológicas – Modalidade Médica, envolvia o uso de hamsters para o tratamento de leishmaniose. Tanto no mestrado quanto no doutorado, usou camundongos. “Nós não questionamos, apenas repetimos as práticas adotadas. Só comecei a questionar quando cheguei na UFSC”, lembra.
Aguinaldo ingressou como professor da UFSC em 2003 e também atuou em diferentes instituições brasileiras e estrangeiras – The Wistar Institute (WISTAR, Estados Unidos), Instituto Adolfo Lutz (IAL, São Paulo), Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL, São Paulo). Seus experimentos requeriam o uso de camundongos e, durante muito tempo, conforme relata, ele não considerou as implicações éticas de seu trabalho, até porque, todos os pesquisadores da área de vacinas recorriam a animais como cobaias – até porque, para uma vacina vir a ser testada em seres humanos, há uma exigência de testes em animais. Entretanto, por meio de um de seus colegas de departamento, o professor começou a ter contato com o debate vigente sobre os problemas éticos decorrentes da exploração de animais nas mais diversas esferas das atividades humanas, entre elas, a ciência.
A princípio, Aguinaldo não cogitou deixar de usar cobaias, pois ainda achava que os possíveis benefícios para a ciência justificariam a exploração e o sacrifício de animais não humanos. A reviravolta aconteceu após a leitura do livro Sacred Cows and Golden Geese: The Human Cost of Experiments on Animals (“Vacas sagradas e gansos dourados: o custo humano da experimentação animal”, em tradução livre), do médico anestesiologista Ray Greek e da veterinária Jean Swingle Greek. Publicado em 2000, a obra ainda não tem tradução para o português.
“Depois que eu li o livro, desisti de fazer experimentação com animais. Os autores fazem a crítica, mas sem entrar muito no mérito da ética. Eles fazem questionamentos científicos, demonstram cientificamente porque o uso de animais é ineficiente, uma vez que há uma grande dificuldade de translação dos resultados do bicho para as pessoas. Os autores demonstram com dados científicos que muitas vezes a pesquisa em modelos animais prejudica os seres humanos devido a atrasos em descobertas que seriam importantes e benéficas à nossa espécie. Essa argumentação me convenceu completamente”, conta Aguinaldo.
Na obra, os autores explicam que são muito mais frequentes do que se supõe as pesquisas com animais que geram resultados equivocados ou inúteis: “O câncer já foi curado em camundongos, mas não em humanos. Por que? Tratamentos e curas bem-sucedidas em laboratórios não são necessariamente eficazes em seres humanos. A prática da experimentação animal, entretanto, envolve muitos interesses econômicos da indústria médica. Por isso, contra muitas evidências científicas, ela permanece. O benefício humano supostamente advindo da experimentação animal é um mito que vem sendo perpetuado por uma rede de interesses multibilionários, que envolve centros de pesquisa, empresas farmacêuticas, universidades, cientistas e até mesmo fabricantes de gaiolas.”
Para estes especialistas, a prática de experimentação animal não apenas gera sofrimento nas espécies submetidas aos experimentos, como também pode causar sofrimento à própria espécie humana. O livro expõe erros frequentes na pesquisa científica realizada com cobaias. “A experimentação animal não apenas falha em beneficiar os humanos, mas também os prejudica ao desviar recursos de métodos de pesquisa mais eficazes e ao levar a tratamentos baseados em dados irrelevantes para a biologia humana”, afirmam os autores.
Os modelos animais, de acordo com a obra, não têm validade científica porque, essencialmente, as diferenças biológicas entre espécies tornam os resultados não aplicáveis aos humanos. Eles mostram como a dependência de testes em animais leva a diagnósticos errôneos, tratamentos ineficazes e atrasos no desenvolvimento de terapias realmente seguras e eficazes.
Os testes pré-clínicos em animais são tradicionalmente exigidos por agências reguladoras (como a Food and Drug Administration (FDA), nos EUA, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no Brasil) para garantir que uma vacina seja segura e eficaz antes de ser testada em humanos. Na produção de um imunizante contra a aids, por exemplo, são usados, geralmente, primatas e roedores. Além de não serem eficazes, de acordo com o livro, todos esses animais precisam ser sacrificados após os experimentos.
Influências e novos rumos
Quando entrou na UFSC, Aguinaldo dividiu a sala e o laboratório com o professor Carlos Roberto Zanetti. Os dois, embora se conhecessem de São Paulo, ficaram mais próximos na universidade. O colega tornou-se referência nacional na difusão de métodos alternativos ao uso de animais na ciência. “Ele me apresentou a este mundo da problemática envolvendo os animais nas pesquisas.” Foi Zanetti quem lhe indicou o livro Sacred Cows and Golden Geese.
Outra inspiração foi Sônia T. Felipe, professora aposentada do departamento de Filosofia na UFSC e referência em ética animal, direitos animais, ética ambiental e veganismo. “A argumentação dela envolve a parte teórica da ética, que eu acho mais difícil. A linguagem filosófica é diferente da minha. Mas claro, ainda assim gostei muito.” Apesar de não se aprofundar no debate filosófico, as argumentações o influenciaram a ponto de ter se tornado vegetariano.
Após a leitura do livro e das trocas com os colegas, o professor refletiu: “Nossa, tenho artigos publicados em boas revistas, mas que na prática não vão servir de nada!” Ele se sentiu frustrado ao se dar conta de que, ao renunciar aos testes em animais, não poderia seguir atuando no desenvolvimento de vacinas. Mas para ele já estava claro que a experimentação animal não tinha a validade científica que ele supunha ter. Aguinaldo seguiu pesquisando sobre o vírus HIV, mas com outras abordagens. Suas pesquisas se voltaram para a análise de células e de grupos infectados. O próprio livro que o inspirou, assim como outros dos mesmos autores, sugerem formas de fazer pesquisa sem recorrer à experimentação animal.
Pesquisas atuais
Uma das linhas de pesquisa que Aguinaldo passou a desenvolver, com alunos de mestrado e doutorado, investigou os tipos de HIV presentes em Santa Catarina. Neste caso, foi preciso fazer parcerias com secretarias de saúde de municípios do Estado, que coletaram o sangue de pacientes infectados e enviaram amostras para a UFSC – as pessoas precisavam assinar um termo concordando em participar das pesquisas, por isso a atuação dos profissionais parceiros foi tão importante.
Seus estudos ajudaram a mostrar que na epidemia de HIV/aids observada no Sul do país prevalece um subtipo do HIV que praticamente não é encontrado em outras regiões do Brasil. No Sul, assim como na maioria dos países africanos e na Índia, há um predomínio do subtipo C, enquanto no restante do Brasil, na América do Norte e na Europa, ocorre o predomínio do subtipo B. Ainda não se sabe as causas dessa diferença.
Outro estudo, que teve a parceria do Hospital Regional de São José, coletou amostras de casais com o objetivo de descobrir por que, em alguns casos, mesmo tendo uma vida sexual sem o uso de preservativos, um estava infectado e o outro não. “Os pacientes tinham muito interesse em participar e isso facilitava. Geralmente os portadores de HIV são muito receptivos. Eles têm curiosidade e querem ajudar no que for possível. Nunca tivemos problemas para conseguir amostras dos pacientes. Mas nesse caso específico o desafio foi conduzir a pesquisa não apenas com o paciente, mas também com seu parceiro”, relata o pesquisador.
O professor também investigou células, tecidos ou moléculas isoladas in vitro. Em um caso, selecionava um linfócito, um tipo de glóbulo branco, para ver como reagiria com uma proteína do HIV. “Usamos a proteína TAT. E descobrimos que essa proteína poderia levar os linfócitos a morrerem, a causar a morte celular.” Atualmente, o professor usa este tipo de modelagem para estudar o SARS-CoV-2, vírus causador da Covid-19.
Aguinaldo coordena o Laboratório de Imunologia Aplicada e orienta alunos de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia e Biociências. Atualmente, o professor está focado no entendimento da neuroinflamação causada pelo SARS-CoV-2.
Daniela Caniçali | daniela.canicali@ufsc.br
Jornalista da Agecom | UFSC