Pesticida usado na agricultura e no controle da dengue é fator de risco para diabetes gestacional
Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) revelou que um dos agrotóxicos mais utilizados no país, o Malathion, pode ser fator de risco para o desenvolvimento de diabetes gestacional. Experimentos com animais indicaram que isso ocorre ainda que a gravidez aconteça somente após a interrupção do contato com o inseticida e mesmo nas doses consideradas seguras pelos órgãos reguladores. Além disso, a propensão ao desenvolvimento de diabetes pode ser transmitida aos filhos das mulheres expostas ao produto. Os resultados foram publicados na revista internacional Environmental Pollution.
O Malathion é um inseticida muito usado na agricultura, na jardinagem e nas pulverizações para erradicar mosquitos, como o Aedes aegypti, transmissor da dengue e de outras doenças. Apesar de ser considerado como provavelmente cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, na sigla em inglês), ele foi o sétimo pesticida mais comercializado no Brasil em 2020 – foram 15,7 mil toneladas, de acordo com dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Com uma rápida busca no Google, aliás, qualquer pessoa consegue comprar um frasco do produto por menos de dez reais.
Foram justamente o alto índice de utilização do Malathion e o fato de a região Sul do país ser reconhecida pelas extensas áreas agrícolas que motivaram os pesquisadores do Laboratório de Investigação de Doenças Crônicas (Lidoc). “A ideia de começar esse estudo veio por volta de 2014. Eu tentei iniciar uma mudança no formato dos trabalhos aqui do meu grupo, para tentar fazer algum tipo de apelo mais regional, e que conseguisse fazer uma conversa entre pré-clínica, que são estudos com animais, e demandas da saúde pública”, afirma Alex Rafacho, professor do Departamento de Ciências Fisiológicas, coordenador do Lidoc e autor responsável pelo estudo.
O objetivo foi analisar como a exposição prévia ao Malathion poderia afetar as mulheres durante a gravidez e no pós-parto e seus filhos. Para isso, os pesquisadores dividiram as ratas de laboratório em quatro grupos: um grupo controle, que recebeu um placebo, e outros três que receberam, cada um, doses distintas do agrotóxico. No primeiro deles, foi aplicada uma dose bastante alta, que se aproximaria de uma intoxicação pelo produto, que poderia ocorrer em decorrência de um acidente ou de mau uso deliberado do inseticida, por exemplo.
No segundo grupo, utilizou-se uma dosagem intermediária, que simula a exposição de um trabalhador que não usa a proteção adequada ou que não segue as recomendações de aplicação definidas pela legislação. Essa dosagem está na faixa conhecida pela sigla em inglês NOAEL, ou Nível Sem Efeitos Adversos Observáveis, e, segundo os órgãos reguladores, não apresenta riscos de efeitos colaterais. Por fim, o terceiro grupo recebeu a dose mais baixa de todas, dentro de uma faixa compatível com a Ingestão Diária Aceitável (ou ADI, na sigla em inglês). Essa é a quantidade que, segundo agências reguladoras, pode ser consumida sem perigo, diariamente, ao longo de toda a vida – são os resíduos de agrotóxicos que podem estar presentes em alimentos ou na água.
O inseticida foi dado às ratas por 21 dias seguidos, e, na sequência, elas foram colocadas junto aos machos para acasalar. A exposição ao produto foi interrompida quando se confirmou a gestação. O professor Alex explica a proposta: “A ideia é mais ou menos assim: imagine uma mulher que trabalha na lavoura com algum manuseio indevido do agrotóxico e descobre que está grávida. Supõe-se que ela passe a ter um cuidado redobrado, eventualmente até pare de se expor ao trabalho ali. Porque a gestante não pode se expor a pesticida qualquer, como não pode se expor a radiação e a outras situações laborais. Então ela vinha com a exposição prévia, daí ela descobre a gravidez, ou planejou a gravidez, e ela interrompe [a exposição]. E aí, o que acontece?”.
O que o grupo observou foi que todas as ratas que tiveram contato com o Malathion desenvolveram o equivalente, em humanas, ao diabetes gestacional – enfermidade que aumenta o risco de uma série de complicações durante a gravidez, no parto e para o bebê. Mesmo após o parto, elas mantiveram um quadro equivalente ao pré-diabetes. Essa condição é caracterizada pelo nível de açúcar elevado no sangue, mas ainda não o suficiente para ser classificada como diabetes, apesar de indicar uma propensão ao desenvolvimento da doença.
O estudo também aponta que o Malathion é um potencial disruptor endócrino, uma substância química que provoca alterações em nosso sistema endócrino, responsável pela liberação de hormônios diversos. Isso porque as ratas – durante e após a gravidez – desenvolveram dois parâmetros de predisposição à obesidade: aumento da quantidade de gordura abdominal e dislipidemia (distúrbio relacionado ao aumento de gordura no sangue, incluindo a elevação do colesterol e de triglicerídeos).
Os filhotes dessas ratas, mesmo sem nunca terem se exposto diretamente ao agrotóxico, também ficaram pré-diabéticos quando adultos. O estudo, portanto, reforça as evidências de que o ambiente em que a mãe vive durante ou antes da gravidez pode afetar a saúde de seus descendentes.
“Poluentes ambientais são fatores de risco para desfechos metabólicos. Isso se dá por uma via que a gente chama de epigenética e ajuda a explicar por que algumas pessoas, mesmo mantendo um estilo de vida saudável, têm maior predisposição a determinadas doenças metabólicas”, comenta Alex.
Todos esses efeitos, tanto nas mães como nos filhotes, aconteceram independentemente da dose de Malathion usada. Ou seja, os problemas ocorreram mesmo nas quantidades em que, teoricamente, não deveria haver efeitos colaterais.
Trabalhos anteriores já demonstravam que vários agrotóxicos são fatores de risco para ganho de massa corpórea e disfunções endócrinas, incluindo o diabetes. Contudo, o novo estudo, que fez parte da tese de doutorado de Maciel Alencar Bruxel, orientada por Alex no Lidoc, foi o primeiro a usar o Malathion nesse desenho experimental. “A novidade aqui foi ter investigado o impacto do referido pesticida e tê-lo apresentado antes da gestação em níveis tidos como aceitáveis pelas agências reguladoras e acompanhado os desfechos tanto nas ratas prenhes quanto em seus filhotes até a vida adulta”, destaca o professor.
Ele espera que o artigo possa ajudar a redefinir os parâmetros das agências regulatórias para o Malathion. Esclarece, também, que esses órgãos usam justamente os experimentos com animais como evidências científicas para embasar suas decisões e definir quais são as doses aceitáveis de cada agrotóxico – como o NOAEL e a ADI.
“Isso é obtido em estudos com roedores: coelhos, ratos e camundongos. Eles literalmente destrincham, vasculham o animal para ver em que dose para de aparecer efeitos colaterais adversos. Então eles falam: ‘daqui para baixo, não tem efeito adverso’. Só que é controverso, porque depende do que eles estão olhando. Depende da duração do tratamento, da espécie; às vezes estão olhando para o coração, não olharam para o pulmão. Então é difícil na verdade, é muita coisa para ver. O nosso estudo já mostra que o que é aceito como dose não adversa, para nós foi adverso”, salienta o pesquisador.
Camila Raposo/Jornalista da Agecom/UFSC
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