Estudo evidencia desigualdades e violações de direitos no acesso ao aborto legal
Duas pesquisadoras do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a doutoranda Marina Gasino Jacobs e a professora Alexandra Crispim Boing, são autoras de um estudo que buscou mapear e caracterizar a oferta e a realização de abortos previstos em lei no Brasil. Utilizando dados públicos do ano de 2019, a pesquisa revela o quanto é desigual o acesso aos serviços legais de interrupção de gravidez no país. Os resultados foram publicados na edição de dezembro dos Cadernos de Saúde Pública, periódico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Ainda que o aborto seja criminalizado no país, ele não é punível em gestações decorrentes de estupro ou quando a gravidez representa risco de vida à gestante. Em casos de fetos anencéfalos (quando não há uma completa formação do sistema nervoso), as gestações também podem ser interrompidas de forma legal. O artigo aponta, contudo, que, apesar de as exceções de punibilidade ao aborto terem mais de 80 anos e as primeiras normativas de oferta do serviço no SUS, mais de 20, ainda há pouca informação sobre a disponibilização do aborto previsto em lei no território brasileiro e sobre como se dá a efetivação do acesso.
“A pesquisa começou ainda em 2018 e foi inicialmente motivada pela percepção de que havia pouca informação sobre o aborto previsto em lei no país. Isso se fazia aparente no desconhecimento das pessoas em relação ao tema, mas também na escassez de produção científica nacional sobre a interrupção legal da gestação. Sabemos que mesmo nas situações em que é oferecido pelo SUS, o aborto ainda é estigmatizado, o que contribui para a falta de difusão de informação a esse respeito e dificuldade de acesso ao serviço”, conta Marina.
Foram coletados dados dos Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei, registrados no Sistema do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, e dos estabelecimentos com registros de aborto por razões médicas e legais no Sistema de Informações Ambulatoriais ou no Sistema de Informações Hospitalares. Todos eles são de acesso aberto e estão disponíveis na página do Ministério da Saúde. A análise, entretanto, “demandou conhecimento de diferentes sistemas de informação, tabuladores, procedimentos e nomenclaturas específicas do Ministério da Saúde, o que dificulta a sistematização da informação”, relata a doutoranda. Os dados foram cruzados com informações do Censo Demográfico de 2010, disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Resultados

Localização dos Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei (SRIGCPL) e dos estabelecimentos com registro de interrupções legais de gestação. Os serviços estão disponíveis em apenas em apenas 3,6% dos municípios brasileiros
As pesquisadoras verificaram que 290 estabelecimentos ofertavam o serviço de aborto legal no país em 2019. Esses estabelecimentos distribuem-se em apenas 3,6% dos municípios brasileiros – nenhum deles no estado do Amapá. Ainda assim, a Região Norte é a que apresentou maior percentual de municípios com o serviço: 6,4%. O Sudeste, no entanto, concentrou 40,5% do total de municípios. A oferta também se deu majoritariamente em locais com Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) alto ou muito alto (77,5%) e com mais de 100 mil habitantes (59,5%).
Os dados ainda revelam que 58,3% das mulheres em idade fértil vivem em municípios em que o aborto previsto em lei não é ofertado. Outro número demonstra o impacto dessa desigualdade: as moradoras de municípios com oferta de aborto legal realizaram 4,8 vezes mais interrupções legais de gravidez que as residentes em localidades sem a oferta. “Esse pode ser mais um indicativo de barreiras de acesso decorrentes da indisponibilidade do serviço e da distância para acessá-lo. É, portanto, um alerta acerca da necessidade de expansão da oferta da interrupção legal da gravidez a fim de garantir o acesso às pessoas que precisam realizar o procedimento e não estão em grandes centros urbanos”, enfatiza Marina.
Supondo que a necessidade fosse a mesma em todos os locais, aproximadamente quatro a cada cinco mulheres que precisaram de um aborto previsto em lei e viviam em municípios que não o ofertavam deixaram de acessar o serviço. Ou seja, 1.570 interrupções de gestação podem ter deixado de ser realizadas nessas regiões. Isso equivaleria a 46,2% da necessidade total do país não sendo atendida por escassez de oferta.
Outro dado que chama a atenção é que, dos 101 estabelecimentos registrados como Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei, 38,6% não realizaram qualquer procedimento naquele ano. Isso pode tanto indicar falha de registro como a presença de barreiras de acesso que estejam além da questão geográfica, como o desconhecimento sobre a previsão do aborto nos casos excepcionais e sua oferta no SUS, medo da criminalização, vergonha pelo estigma do procedimento ou barreiras organizacionais, como a exigência de boletim de ocorrência, laudo do Instituto Médico-Legal (IML) ou alvará judicial e a recusa dos profissionais de saúde em realizar o procedimento.
Violação de direitos
“A baixa disponibilidade do serviço amplia as dificuldades de acesso, com maiores implicações logísticas que envolvem a disponibilidade de transporte, recursos, tempo, e tendem a dificultar o acesso de grupos já vulnerabilizados, como pessoas empobrecidas e racializadas. O não acesso ao serviço no sistema de saúde é uma violação de direitos e pode levar a interrupções clandestinas e potencialmente inseguras. Ainda que o aborto possa ser um procedimento seguro, no nosso contexto de criminalização, os abortos clandestinos podem utilizar métodos inadequados, pois há a carência de informações corretas, de medicamentos com qualidade verificada, de atendimento por profissionais qualificados e de serviços pós-abortamento adequados”, explica Marina.
Essa dificuldade de acesso também pode fazer com que sejam levadas adiante gestações em situações que violam o princípio da dignidade humana e a autodeterminação reprodutiva. Ao serem obrigadas a manter gravidezes em que não há expectativa de vida extrauterina, que ameaçam suas vidas ou que são decorrentes de violência, mulheres são expostas a prejuízos físicos, morais e psicológicos. “Tratando especificamente dos estupros, temos o agravante que a maioria dessas violências têm como vítimas crianças e adolescentes, pessoas para quem o não acesso ao aborto legal pode ter ainda maior impacto”, reforça a doutoranda.
“A estigmatização do aborto é um empecilho que impõe diversas barreiras, com reflexo inclusive na pouca disponibilidade do serviço. Outro importante empecilho atravessado pela estigmatização é o desconhecimento acerca da legislação sobre o aborto, já que quem desconhece seu direito, não consegue buscá-lo. Nesse sentido, também temos como barreira o desconhecimento dos profissionais por quem a gestante passa antes de acessar um serviço que realiza a interrupção legal da gravidez. A dificuldade da rede de atendimento em oferecer informação correta pode impedir o acesso. Muitas vezes, ainda, há exigências que extrapolam as normativas, ou desconfiança da palavra da gestante em casos de gestação decorrente de estupro”, destaca Marina.
Nas situações previstas em lei, a interrupção da gestação pode ser feita gratuitamente no Sistema Único de Saúde. Em caso de gestação decorrente de estupro, não é necessária a apresentação de boletim de ocorrência policial, laudo do IML ou alvará judicial. Vale ressaltar também que qualquer relação sexual com pessoa menor de 14 anos é considerada estupro de vulnerável no Brasil, circunstância em que é possível recorrer ao aborto previsto em lei. Em todos os casos, o ideal é que o serviço de saúde seja procurado o mais rapidamente possível. Em Santa Catarina, os hospitais de referência são o Hospital Universitário, em Florianópolis, o Hospital Regional de São José, a Maternidade Darcy Vargas, em Joinville, o Hospital Santo Antônio, em Blumenau, e o Hospital de Gaspar.
O estudo faz parte da pesquisa de doutorado de Marina e tem financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). As pesquisadoras agora se dedicam a estudar os fluxos de deslocamento de pessoas para o acesso ao serviço de aborto previsto em lei e as possibilidades de expansão da oferta no território nacional.
Camila Raposo/Jornalista da Agecom/UFSC