COP26: pesquisadores da UFSC são coautores de relatório que avalia a situação da Amazônia

12/11/2021 13:47

Imagem aérea de queimada próxima à Floresta Nacional de Jacundá, em Rondônia, em agosto de 2020. Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real/CC BY-NC-SA 2.0

O Painel Científico para a Amazônia (SPA), grupo que reúne mais de 200 cientistas, divulgou nesta sexta-feira, 12 de novembro, o primeiro Relatório de Avaliação da Amazônia. Apresentado em Glasgow, na Escócia, em um evento paralelo à Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a Cop26, o documento alerta que a Amazônia está se aproximando de um potencial e catastrófico ponto de não retorno, devido ao desmatamento, à degradação, aos incêndios florestais e às mudanças climáticas, e faz um apelo aos governos globais, líderes do setor público e privado, formuladores de políticas e ao público em geral para agir agora para evitar mais devastação na região. 

Segundo o SPA, esse é o mais detalhado, abrangente e holístico material do tipo sobre a Bacia Amazônica. Em seus 34 capítulos, fornece uma visão sistemática sobre o estado dos ecossistemas e dos povos da Amazônia e oferece aos formuladores de políticas públicas recomendações para a conservação desse ecossistema e caminhos para o desenvolvimento sustentável da região. Destaca, também, a importância da ciência, da tecnologia, da inovação, dos povos indígenas e do conhecimento local para orientar as tomadas de decisões e a formulação de políticas.

“O que esse relatório faz, o papel dele, é como se fosse um IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas] para a Amazônia. Então, é a primeira vez que uma revisão sobre as coisas que acontecem na Amazônia, sobre o estado da Amazônia hoje, é feita assim, dessa forma, com vários pesquisadores”, comenta a professora do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Marina Hirota, uma das autoras do documento.

A estrutura do estudo é dividida em três partes. A primeira apresenta os fatores que determinaram a evolução da Amazônia para o que conhecemos hoje, incluindo aspectos geológicos, climáticos e humanos. A segunda seção discute como as ações antrópicas estão afetando o bioma. São abordadas questões como desmatamento, fogo e mudanças climáticas, no uso da terra e nos regimes de chuva, bem como seus impactos na biodiversidade, nos processos ecológicos, nos serviços ecossistêmicos e no bem-estar humano. O trabalho finaliza com a indicação de soluções e caminhos sustentáveis para o futuro.

À beira do colapso

A Bacia Amazônica engloba a maior floresta tropical do mundo e imensa riqueza e diversidade natural e cultural. Além de desempenhar um papel decisivo nos ciclos globais de água e regulação da variabilidade climática, a Amazônia também é lar de aproximadamente 47 milhões de pessoas, incluindo cerca de 2,2 milhões de indígenas, distribuídos em mais de 400 grupos que falam mais de 300 línguas.

A região, contudo, enfrenta mudanças sem precedentes. Já existem partes da Amazônia que apresentam comportamento de uma nova configuração, que atuam como uma fonte de carbono, ao invés de um sumidouro, ou que se converteram em um tipo de savana empobrecida. Povos amazônicos, suas culturas e conhecimentos também estão sob ameaça devido às múltiplas pressões e ao enfraquecimento da proteção de seus direitos.

Aproximadamente 17% da área original da Amazônia já foi desmatada e 18% está degradada (o que significa que pode até haver árvores de pé nestes locais, mas distúrbios como fogo e extração ilegal de madeira levaram ao empobrecimento da floresta, com perda de biodiversidade e redução de funções ecológicas, por exemplo). Estamos muito próximos do que alguns estudos apontam como o limite de 20% a 25% de mudança na cobertura vegetal do bioma – a partir daí, modelos teóricos indicam que a floresta não seria mais capaz de se recuperar.

Os pontos de não retorno (também chamados de pontos de inflexão ou tipping points) se referem aos limites a partir dos quais o sistema entraria em colapso e são o foco do capítulo do relatório liderado por Marina. A análise dos cientistas mostra que há pontos relacionados a diferentes variáveis – como a quantidade de chuva, o aumento da duração da estação seca, a temperatura global, além, é claro, do nível de desmatamento.

Também são variadas as hipóteses sobre o que poderá acontecer com a Amazônia – e o planeta – após cruzar algum desses pontos. Apesar de não haver consenso de quais exatamente serão os impactos, sabe-se que eles certamente serão sentidos em muitos lugares. As perturbações em uma floresta tão grande se propagam pelo mundo, num efeito dominó.

“Haverá mudanças nos padrões de chuva, de uma forma geral, no Sudeste e no Sul do Brasil. Se para mais ou para menos, isso ainda precisa ter um consenso, mas haverá. As coisas têm um fluxo, e o fluxo de umidade que vem do Oceano Atlântico e passa pela Amazônia é um fluxo importante no provimento de água que pode cair em qualquer parte do Brasil e da América do Sul, de forma geral. Então, haverá mudanças de temperatura e de chuva, independentemente das mudanças climáticas. Aí, a gente precisa ver em que direção de forma mais consensual”, explica Marina.

A floresta está conectada a outros elementos críticos do sistema terrestre. Mudanças na Bacia Amazônica podem afetar a circulação do Oceano Atlântico e o derretimento de gelo na Antártica e no Ártico. “O fato é que temperatura e chuva podem mudar em outros lugares do mundo. E esses tipping elements [elementos do planeta, interconectados entre si, que estão sujeitos a mudanças abruptas e catastróficas após cruzar determinados limiares] podem, em efeito cascata e em uma escala mais global, acelerar mudanças em outros lugares”, reforça a professora.

Vale ressaltar que não é só questão de evitar um colapso total, mesmo perturbações menores e mais localizadas podem causar danos enormes. “A gente precisa manejar a resiliência da Amazônia, inclusive considerando as pessoas que vivem na Amazônia. Quem vive na Amazônia depende do que a Amazônia fornece. A gente tem que pensar nisso. Não importa se vai ter um colapso sistêmico ou não dentro da Amazônia, mesmo que sejam pequenos colapsos, isso vai ter um impacto muito grande na diversidade cultural que existe lá. Essas pessoas vão perder a casa que elas têm hoje”, reitera Marina.

Alerta vermelho

O SPA recomenda, aos tomadores de decisão, uma moratória imediata do desmatamento em áreas que já se aproximam de pontos de não retorno e que seja zerado o desmatamento e a degradação em toda a região amazônica até 2030. Sobre o assunto, Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e membro do Comitê Diretor Científico do SPA, é enfática: “Com os recentes surtos de desmatamento que estão devastando a mais extensa floresta tropical do planeta, devemos também anunciar um alerta vermelho para a Amazônia. Salvar as florestas do desmatamento e degradação contínuos e restaurar os ecossistemas é uma das tarefas mais urgentes de nosso tempo para preservar a Amazônia e suas populações e enfrentar o risco global e os impactos das mudanças climáticas. O mosaico de ecossistemas amazônicos se estende desde os altos Andes até a planície amazônica e abriga a biodiversidade mais extraordinária da Terra, com mais de 10% das espécies vegetais e animais em todo o mundo”.

“A grande biodiversidade da Amazônia não vai continuar, não só de plantas, mas de animais, e também a diversidade humana, de culturas, de línguas, de povos originários, com a intensa pressão antrópica que a gente está vivendo, especialmente em relação ao desmatamento”, salienta Marina Hirota. “A gente precisa atingir desmatamento zero o mais rápido possível. O que [o relatório] diz é no máximo em dez anos, mas acho que menos que isso. Eu diria desmatamento zero o mais rápido possível, com políticas públicas, mas também com fiscalização in loco, porque existem muitas atividades ilegais na Amazônia, e o relatório fala muito sobre isso também”, complementa.

A docente chama a atenção, ainda, para a necessidade de valorização dos povos tradicionais, como indígenas e comunidades ribeirinhas, que estão na linha de frente do embate político e social que existe hoje no Brasil. “Manter os povos originários onde estão nos ajuda a manter a floresta em pé. Parece um pouco romântico, mas eles são verdadeiros guardiões da floresta.”

Soluções e caminhos a seguir

Apesar das constatações alarmantes, o relatório destaca o potencial significativo de avançar caminhos para o desenvolvimento sustentável baseados em uma combinação de pesquisa científica e conhecimento de povos indígenas e comunidades locais, enfatizando a importância da colaboração e de alavancar parcerias fortes. É preciso esforços combinados e colaborativos de formuladores de políticas da Amazônia nos níveis central e local, dos setores financeiro e privado, da sociedade civil e da comunidade internacional. 

O SPA destaca que o tamanho e os desafios da Bacia Amazônica exigem desenvolvimento financeiro internacional em grande escala e parcerias públicas e privadas para promover e sustentar a restauração, a conservação, o manejo florestal, o desenvolvimento de cadeias de valor sustentáveis e o pagamento por esquemas de serviços ecossistêmicos, assim como investimento em educação, ciência, tecnologia e inovação. O apoio financeiro deve ser mobilizado junto às economias avançadas, garantindo que seu consumo esteja vinculado a áreas com desmatamento zero e preservando o papel das florestas como um importante sumidouro natural de carbono.

Entre as ações mais urgentes, na visão Marina, estão a demarcação de terras indígenas e a fiscalização da mineração, do desmatamento e da invasão de áreas protegidas. Manejar a resiliência da Amazônia envolve políticas públicas em diversos níveis de governança e conversas abertas entre os diversos setores da sociedade. É preciso deixar claro que não há necessidade de derrubar mais floresta para a expansão agropecuária, por exemplo. Isso pode ser feito nas áreas que já estão desmatadas e degradadas e por meio do investimento em novas tecnologias. 

O Painel defende a visão de uma Amazônia viva que promova iniciativas de conservação e restauração, uma transformação para uma bioeconomia inovadora de florestas em pé e rios fluindo saudáveis e que respeite e reconheça os ciclos naturais e os direitos humanos. “Se a gente mantém a floresta em pé, ela pode dar muito mais lucro do que se estiver caída”, realça Marina.

A mudança, afirma ela, também passa pela conscientização da população. “É todo um ecossistema imenso, que tem vários subecossistemas. É difícil entender se você nunca foi para lá, é muito diferente a conectividade que existe na Amazônia. Mesmo que as pessoas não conheçam isso e estejam acostumadas a outras perspectivas de vida no espaço e no tempo, acho que é muito importante a gente ter empatia. Porque o que está acontecendo lá vai acontecer com todo mundo em algum momento. Está acontecendo lá porque lá ainda tem floresta, mas também em outros lugares que têm floresta ou qualquer ecossistema natural, a pressão está muito alta. É só olhar para o lado e ver isso, qual ecossistema próximo de você que está mudando e qual o impacto que isso tem na sua vida. Na Amazônia, isso está acontecendo com os povos locais e vai chegar na gente em algum nível.”

Marina ilustra a questão com alguns exemplos recentes de problemas ambientais de Santa Catarina, como o crescente desmatamento e o vazamento provocado pelo rompimento de uma estrutura de esgoto na Lagoa da Conceição. “Todas essas coisas que a gente pode observar aqui, imagina isso multiplicado por milhares, para a gente ter uma ideia da dimensão que é na Amazônia. Isso não significa que é mais ou menos importante, significa que tem um impacto na nossa vida em um nível ou em outro. E o que acontece aqui em Santa Catarina também reverbera e propaga para outros lugares do Brasil, mesmo que em um nível menor, pelo tamanho que tem o estado em comparação com a Amazônia, que engloba vários estados. Temos que criar esse senso de pertencimento de que estamos num país só. Uma parte da Amazônia está no Brasil. A gente está junto nisso.”

Painel Científico para a Amazônia

Inspirado pelo Pacto de Letícia pela Amazônia, o SPA tem o objetivo de ser uma autoridade científica em diversos temas relacionados à Bacia Amazônica. O Painel é organizado pela Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (Sustainable Development Solutions Network, ou SDSN) e envolve mais de 200 cientistas – dos quais dois terços são de países amazônicos –, incluindo lideranças indígenas.

Além de Marina, outros três pesquisadores da UFSC participaram da elaboração do relatório: os pós-doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Ecologia Bernardo Monteiro Flores e Carolina Levis e a professora do Departamento de Fitotecnia Ana Catarina Conte Jakovac.

Para mais informações, acesse o site do SPA, o relatório e seu sumário executivo. As versões resumidas de todos os capítulos podem ser acessadas em inglês. Eles também estão sendo, aos poucos, traduzidos para o português, e alguns já estão disponíveis no site aamazoniaquequeremos.org/capitulos-em-sintese.

 

Camila Raposo/Jornalista da Agecom/UFSC, com informações do Painel Científico para a Amazônia (SPA)

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