Pesquisa analisa a pandemia a partir das experiências de grupos vulnerabilizados
Analisar a pandemia de Covid-19 pela perspectiva de grupos sociais vulnerabilizados é o objetivo da pesquisa coordenada pela professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Flavia Medeiros. Serão ouvidas e compartilhadas as experiências diversas sobre as condições colocadas no período do distanciamento social a mulheres negras e pobres, trabalhadores informais, ciganos, coveiros, educadores e moradores de favelas e periferias, entre outras populações invisibilizadas socialmente, distribuídas nas regiões metropolitanas de Florianópolis, Rio de Janeiro, João Pessoa e Salvador .
O projeto de pesquisa Regulações sociais e morais na administração do novo coronavírus no Brasil: uma análise etnográfica e interseccional é financiado pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, uma instituição privada, localizada nos Estados Unidos, dedicada ao avanço da antropologia pelo mundo. Também participam do estudo a pesquisadora Edilma Nascimento, egressa do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC e integrante de grupos de pesquisa da UFSC e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e alunas de graduação e pós-graduação das áreas de Antropologia e Psicologia.
“A equipe pretende compreender como os efeitos da pandemia têm se manifestado na reprodução das desigualdades estruturais na sociedade brasileira e como as medidas sanitárias e burocráticas apresentadas nesse contexto agem de modo a produzir novas formas de agência estatais e de controle das relações sociais”, explica Flavia. Todo o trabalho é realizado por meios digitais. A construção de dados é feita a partir de conversas por aplicativos e redes sociais, principalmente Whatsapp e Telegram.
“Muitas dessas pessoas com quem fazemos a interlocução não têm computador, não têm acesso à internet wi-fi em casa. O que elas têm é um celular com plano de dados simples. Então, até a forma como conseguimos promover essa interlocução com as pessoas que estão contribuindo com a pesquisa expressa a limitação desse contexto e de como as pessoas podem ou não ‘se inserir’ nessa nova modalidade de comunicação”, comenta a professora. A impossibilidade do contato presencial é uma imposição da situação de pandemia em que vivemos, contudo, o uso da internet para as trocas de informações possibilitou a expansão territorial do estudo. Os contatos são feitos com pessoas com quem as pesquisadoras já tinham relações em projetos anteriores.
“São pessoas com as quais eu já tinha feito pesquisa, assim como tem sido com parte das minhas alunas. São pessoas com quem que elas já estavam em contato para pesquisa de campo anteriormente, e que, em virtude da pandemia, rearticulamos esses contatos e os interesses da pesquisa. No meu caso em especial, são pessoas que tenho contato há cerca de quatro ou cinco anos, que já conheço há bastante tempo, tanto da minha atuação como pesquisadora no Rio de Janeiro, como também da interlocução da universidade com os movimentos sociais a partir de projetos de extensão. Algumas pessoas com quem tenho feito contato aqui em Florianópolis, não conheço pessoalmente, mas esse contato tem sido mediado pelas estudantes que já as conheciam”, relata Flavia.
Adicionalmente, a equipe tem construído um diário de campo coletivo, com reflexões sobre as conversas com os interlocutores e as próprias percepções em relação à pandemia. Também é realizado um levantamento da cobertura jornalística sobre o tema, principalmente relacionada aos óbitos e aos efeitos da pandemia para a população mais vulnerável, e uma análise de normativas, “pensando em como as medidas sanitárias têm sido implementadas na prática: o que se diz na regra e o que as pessoas estão vivenciando, como estão lidando com essas regras no dia a dia”, afirma a docente. As atividades do projeto foram iniciadas oficialmente em 1º de julho e têm duração prevista de um ano.
Segundo Flavia, a expectativa é que o trabalho possa “contribuir na perspectiva de ampliação de debates sobre a administração de Estado no enfrentamento ao coronavírus numa perspectiva interseccional e contrastiva, promovendo a análise antropológica em interlocução com as pessoas que estão sendo afetadas, a fim de construir uma compreensão sobre a gestão da pandemia e de seus efeitos sociais”. A pesquisadora reforça a importância de compreender os pontos de vista e as formas de ação das pessoas que estão “às margens do Estado”, que, muitas vezes, “só se vinculam ao Estado por meio do viés da violência, nunca como sujeitos de direitos, mas sempre como alvos de repressão e de controle social”.
“Da percepção dessas pessoas que não se veem como cidadãos, que não veem um Estado que vá ampará-las, apoiá-las, elas começam a criar alternativas autônomas para lidar com essa situação, especialmente na pandemia, de escassez. Uma contribuição que eu acho que esse projeto vai trazer é justamente pensar essas formas de auto-organização coletiva de gestão das dificuldades”, comenta Flavia, ressaltando como essas pessoas, apesar de todas dificuldades, pobreza e desigualdade, organizam-se e criam alternativas para poder não só sobreviver, mas também ajudar outras ainda mais pobres e vulnerabilizadas. “Espero que nossa pesquisa, descrevendo e analisando essas soluções populares, possa também reconhecer a importância dessas iniciativas e aprender com elas”, enfatiza.
Camila Raposo/Jornalista da Agecom/UFSC