Congresso internacional de direitos animais apresenta diversidade de perspectivas
Uma mudança de paradigma? Uma questão de justiça? Uma questão política? Pesquisadores do Direito, da Filosofia, da Biologia, entre outras áreas de conhecimento, debateram, ao longo de dois dias, a questão dos direitos animais em evento realizado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O I Congresso Internacional Interdisciplinar de Direitos Animais apresentou uma diversidade de perspectivas a um público de cerca de 200 participantes de várias regiões do país. Entre os 22 palestrantes que compuseram os painéis de debates, o destaque internacional foi a conferência da professora francesa Marie-Pierre Camproux Duffrène, diretora do Centro de Direito Ambiental da Universidade de Strasbourg, França. A professora abordou a mudança no código civil francês, que em fevereiro de 2015 passou a reconhecer os animais como seres sencientes, não mais como coisa, mera propriedade. “O reconhecimento de que os animais são sensíveis demanda um tratamento compatível com suas necessidades biológicas”, explica a professora. Ela ressalta que essa mudança no estatuto jurídico dos animais representa uma evolução, que deve movimentar os regimes jurídicos que legislam sobre as diferentes espécies na França.
Mudança de paradigma
No painel “Direitos Animais: para além dos Direitos da Natureza”, Antônio Carlos Wolkmer, professor aposentado do Departamento de Direito da UFSC abordou o denominado “novo constitucionalismo latino-americano”, assinalando os avanços na constituição do Equador: “É sem dúvida a constituição mais ecológica, mais preocupada com a biodiversidade, com os direitos à natureza, aos bens comuns. A natureza não é mais trabalhada como uma coisa, mas agora como um sujeito de direitos. Há um avanço no sentido de contemplar uma harmonia, um equilíbrio entre os seres vivos na sua totalidade.” Wolkmer reforçou que apenas uma ruptura com os paradigmas tradicionais pode viabilizar “uma ética que avança para uma dimensão ecocêntrica, fundada em conceitos paradigmáticos de direitos da natureza e nas possibilidades de diálogos com outros seres que não unicamente humanos”. Esse novo modelo de sociedade, segundo o professor, depende de “um outro tipo de desenvolvimento, menos interessado no material e mais centrado no bem estar dos seres vivos e na qualidade do meio ambiente.” As pesquisas interdisciplinares, nesse sentido, são fundamentais para esse mudança de paradigma: “A natureza passa agora a ser reconhecida como um sujeito e não mais como objeto de domínio e exploração humanas”.
Em referência ao pesquisador equatoriano Alberto Acosta, que participou da elaboração da nova constituição do Equador, Wolkmer ressaltou que “cada ampliação dos direitos foi condição anteriormente impensável, e isso se aplica não só ao direito à natureza, mas também ao direito dos animais”; e chamou a atenção do público: “A humanidade requer propostas inovadoras, radicais e urgentes, que permitam definir novos rumos, para enfrentar os graves problemas globais que vêm afetando a natureza e a sobrevivência das espécies humanas e não-humanas”.
A professora Vanessa Chiari Gonçalves, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), participou do mesmo painel e expôs as fragilidades específicas da legislação brasileira na questão dos direitos animais: “Ainda que sejam reconhecidos muitos avanços na doutrina e na jurisprudência, falta efetividade na proteção aos animais, especialmente para aqueles submetidos a experimentos na condição de cobaias.” Vanessa observa a preocupação do legislador no sentido de proibir práticas que causem dor nos animais, incluindo as experiências científicas, a vivissecção, quando há alternativas viáveis. “O parágrafo primeiro do artigo 32 estabelece que incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos. Aí entra nosso dilema: como é que se constrói uma pressão política para que esses meios alternativos sejam efetivamente desenvolvidos? Porque enquanto não há um meio alternativo, não há o dispositivo, a tutela penal.”
Vanessa pondera que o Superior Tribunal Federal (STF) vem expressando, há algum tempo, certa preocupação com as práticas cruéis com animais. “Um dos casos mais emblemáticos até agora apreciados foi o festival da farra do boi. Em julgamento do recurso extraordinário, de março de 1998, foi decidido, por maioria, que a prática era inconstitucional, entre outros argumentos, porque admitia o trato do boi com crueldade na medida em que o animal era submetido a provocações e estresse para o mero divertimento.” A professora também fez referência a outros casos, como o de 16 de maio de 2011, quando o STF decidiu pela inconstitucionalidade da lei estadual fluminense que permitia a rinha de galos. “Essa decisão considerou que a conduta constituía ato de crueldade contra os galos de briga, configurando o crime de maus tratos contra animais previsto no artigo 32 da lei dos crimes ambientais.”
Trajetórias
Relatos de experiências estiveram presentes em diferentes painéis do congresso. Entre os que chamaram a atenção do público, estão o de Thales Tréz, professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG) e ex-aluno do curso de Biologia da UFSC. Thales relatou que, quando optou por fazer Biologia, não sabia que teria que usar uma série de animais para aprender os conteúdos das disciplinas. Em princípio, o então graduando evitava as aulas práticas, em que se faziam experimentos com ratos e sapos. Até que um professor de Fisiologia anunciou que, na aula seguinte, os alunos observariam o sistema cárdio-respiratório de um cachorro. A turma protestou, ao que o professor respondeu: “Se vocês quiserem ser bons biólogos, têm que saber separar o lado racional do lado emocional. Quando entrarem em um laboratório, devem pendurar o lado emocional do lado de fora e entrar apenas com o lado racional.” Esse foi, então, um ponto de inflexão na trajetória acadêmica de Thales: “Aquilo me deu um curto-circuito. O professor foi irredutível, não havia muita possibilidade de diálogo. Eram duas perspectivas completamente diferentes que não estavam conseguindo se entender. Havia um conflito moral didático estabelecido em sala de aula”.
No dia da aula prática, Thales e duas amigas chegaram ao laboratório mais cedo, com o intuito de apresentarem alternativas didáticas aos professores e alunos. Ao se depararem com o cachorro, ainda vivo, preso apenas por uma coleira no laboratório, resolveram libertá-lo. O Departamento registrou uma queixa na Polícia Federal, acusando-o do roubo de dois patrimônios: o cachorro e a coleira. “Aí a situação começou a ficar constrangedora. Devolvemos a coleira e questionamos os professores: ‘Que tipo de biólogos vocês querem formar quando você consideram um cachorro e uma coleira da mesma forma?’.”
Thales seguiu sua exposição discorrendo sobre o desencontro entre duas perspectivas: “Há uma perspectiva que se mantém pela tradição: um professor que quer ensinar da forma como aprendeu. Do outro lado, estão os alunos, que chegam com um novo corpo de valores. Aí surge um conflito moral.” Na esfera do ensino, Thales defende que o uso de animais deve ser completamente substituído. “Há uma demanda social para que isso aconteça. Há um desconforto na questão ensino-aprendizagem que precisa ser considerado.” Ele acrescenta que essa substituição deve acontecer de forma democrática. “A chegada de métodos alternativos precisa acontecer com um debate, uma conversa, um acordo, para que não vire uma imposição. Não pode ser uma saída tecnocrática.” Do seu ponto de vista, a tecnologia não pode resolver o problema, sem que os estudantes saibam qual é o problema de fato.
No painel “A instrumentalização dos animais na pesquisa”, o professor Carlos Zanetti também relatou sua experiência como estudante e, posteriormente, como pesquisador e professor — que ele define como “uma trajetória vivisseccionista”. Ao longo de sua graduação em Ciências Biológicas na antiga Escola Paulista de Medicina, a viviseccção era uma constante, sem qualquer discussão ética — “eu não tinha a menor capacidade de julgar se aquilo era de alguma forma errado”. Posteriormente, como pesquisador do Instituto Pasteur — Louis Pasteur foi um grande incentivador da vivissecção —, Zanetti se sentia angustiado cada vez que precisava sacrificar um animal. Mas foi somente quando ingressou na UFSC como professor do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia (MIP) que encontrou espaço para refletir mais seriamente sobre o uso de animais em pesquisa.
Em 2000, Zanetti integrou, pela primeira vez, um Comitê de Ética no Uso de Animais em Pesquisa (CEUA). “Foi bastante enriquecedor estudar uma área que nunca me foi permitida durante toda minha formação. Percebi como era importante ter um comitê de ética em pesquisa para proteger vulneráveis, sejam humanos ou animais.” Ao longo de sua participação no CEUA, o professor mudou sua percepção. “Eu saía de lá atordoado. As coisas que para mim eram totalmente tranquilas foram questionadas profundamente pelas professoras Paula Brügger e Sônia Felipe. Tenho uma gratidão eterna por elas, porque elas mudaram minha maneira de ver o mundo”. De uma “trajetória vivisseccionista”, o professor deixou de fazer pesquisas com animais e começou então a propagar essa nova perspectiva em outros espaços, cursos e palestras para os quais era convidado dentro e fora da universidade. “Ao contrário do que eu imaginava, as pessoas estão muito ávidas para ouvir, estão preparadas para uma mudança, desde que alguém vá lá e lhes diga isso.”
Mais sobre o congresso
O I Congresso Internacional Interdisciplinar de Direitos Animais ocorreu nos dias 7 e 8 de dezembro e foi promovido pelo Observatório de Justiça Ecológica (OJE) — coordenado pelas professoras Letícia Albuquerque e Paula Brügger — por meio do projeto “Mais Ciência: plataforma digital, eventos jurídicos e inovação”, desenvolvido em parceria com o Centro de Ciências Jurídicas (CCJ), Fundação José Boiteux (Funjab) e Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação.
Os vídeos de todas as palestras e apresentações de trabalho estão disponíveis online e podem ser acessadas aqui. As fotos estão disponiveis aqui.
Mais informações na página do evento e no Facebook do OJE.
Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/DGC/UFSC
daniela.canicali@ufsc.br