Estudo da UFSC reconstrói história da evolução genética da vitivinicultura catarinense e indica futuro do setor

23/06/2025 13:30

Doutor em História pela UFSC, Gil Karlos Ferri se dedica à área de pesquisa em História Ambiental. Foto: reprodução/acervo pessoal

De maneira inédita, um estudo desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH/UFSC) reconstruiu a trajetória socioambiental do melhoramento genético de videiras (Vitis vinifera) no Planalto catarinense. A pesquisa demonstra que a evolução genética foi um dos principais fatores que permitiu o crescimento e estabelecimento da produção vitivinícola na região e indica quais serão os próximos passos do setor.

Segundo a tese de doutorado de Gil Karlos Ferri, as chamadas “variedades Piwi” prometem revolucionar a produção vitivinícola catarinense ao reduzir a utilização de agrotóxicos devido à sua resistência a diversos patógenos. Entre eles, uma das principais pragas dos vinhedos da região: os fungos. 

Defendida em 2024, a tese intitulada Variedades Piwi: a vitivinicultura no Planalto de Santa Catarina (Brasil) e as pesquisas de melhoramento genético de videiras sob a perspectiva da História Ambiental Global foi orientada pela professora Eunice Sueli Nodari, do PPGH/UFSC, e coorientada pelo professor Rubens Onofre Nodari, do Programa de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais (PPGRGV/UFSC).  

Em Santa Catarina, um dos maiores obstáculos à vitivinicultura é a alta umidade, que ocasiona a proliferação de fungos nas plantações, aponta Ferri. As variedades de videiras Piwi, resultantes de retrocruzamentos genéticos, são nomeadas pela sua principal característica: o termo Piwi tem origem no alemão Pilzwiderstandsfähige, que pode ser traduzido como “resistente a fungos”. 

Conforme o pesquisador, as variedades podem ser capazes de reduzir a utilização dos químicos nas plantações em 50% a 70%, o que ele descreve como “muito significativo” para a sustentabilidade da produção no estado. Contudo, a quantificação da eficiência na redução do uso dos agrotóxicos ainda permanece em aberto por ser diretamente dependente do nível de umidade a que o vinhedo se encontra exposto. 

A vitivinicultura é uma atividade econômica que engloba tanto o cultivo da videira (viticultura) como a produção de vinho (vinicultura). É a ciência e a prática que abrange a produção da uva, seja para consumo in natura, ou para a produção de suco, vinificação ou produção de uva passa, com o objetivo principal de produzir o vinho. De acordo com dados da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), o estado é responsável por 6,2% da produção nacional do setor. 

Entre 2009 e 2017, com suas diferentes variedades de videira, Santa Catarina apresentou crescimento de 5,5% com novas áreas de cultivo, vinícolas e com investimentos em cantinas, hospedagem e gastronomia com foco no enoturismo — forma de turismo focada na apreciação do vinho e na cultura vinícola de uma região —, conforme a Epagri. 

Videiras Piwi e a sustentabilidade socioambiental

As primeiras videiras Piwi foram introduzidas em Santa Catarina em 2014, exclusivamente para testagem, com plantio inicial em 2015, como parte de um esforço de pesquisa desenvolvido em conjunto pela Epagri e pela UFSC, com a cooperação do Instituto Agrario di San Michele all’Adige (Fondazione Edmund Mach – FEM, Itália) e do Institute for Grapevine Breeding Geilweilerhof (Julius Kühn-Institute – JKI, Alemanha).

Por iniciativa das instituições, em 2024, foram lançadas as primeiras variedades — Calardis Blanc e Felícia — no mercado catarinense. Até o momento, contudo, a maior parte das videiras Piwi ainda encontra-se em fase de testes, retrocruzamentos e vinificações experimentais. 

Ferri explica que a introdução das videiras permite uma melhor adaptação da produção da vitivinicultura às condições climáticas e características de solo do estado. Em Santa Catarina, um dos principais obstáculos à produção é a alta incidência de chuva, que torna os vinhedos mais propícios à proliferação de fungos pelo excesso de umidade.

“Se considerados os padrões europeus, há regiões de Santa Catarina que possuem 200% a mais de umidade do que o norte da Itália. Então, são condições realmente muito adversas para produção de uvas”, relata. O historiador destaca a importância do fator de resistência da videira Piwi, mas ressalta que ele não torna os vinhedos totalmente imunes aos fungos. 

Por consequência de seu caráter resistente, as variedades Piwi trazem um ponto positivo à sustentabilidade socioambiental da vitivinicultura catarinense: a redução do uso de agrotóxicos. “Por que essas variedades seriam interessantes? Por elas terem resistência a esses fungos que surgem na umidade, elas seriam mais adequadas pois necessitam de menos tratamento com agrodefensivos e com tratamentos químicos para poder cultivar. Então, elas seriam uma solução mais sustentável para o cultivo”, explica o pesquisador.

A pesquisa aponta que, durante os testes, a implementação das videiras chegou a reduzir em 70% a aplicação dos químicos nas plantações. A eficiência exata do uso das variedades, porém, varia com o grau de exposição à umidade dos vinhedos, reafirma Ferri.

“Pode haver safras que não vão requerer tratamento nenhum. Pode ser que, com pouca umidade, a variedade resistente consiga manter o bloqueio aos fungos. Mas, em anos que chova muito durante a maturação até a época da colheita, pode ser que se necessitem alguns tratamentos.”

Com base nos dados reunidos pela tese, o pesquisador projeta que “uma possível redução pela metade dos tratamentos com agrodefensivos e agroquímicos no setor vitivinícola, que é um dos setores que mais utilizam agrotóxicos no Brasil e no mundo, já seria algo muito considerável” e “valeria a pena todo investimento em pesquisa, todo debate que tem sido feito nas últimas décadas pelas variedades resistentes”.

De acordo com um levantamento realizado em 2021 pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o Brasil é o país que mais utiliza agrotóxicos no mundo. Naquele ano, segundo a pesquisa, foram aplicadas 719,5 mil toneladas de venenos contra pragas em lavouras nacionais. 

Mundialmente, a política de uso extensivo dos químicos resulta em cerca de um milhão de pessoas intoxicadas de forma involuntária por meio do contato com agrotóxicos. No Brasil, entre 2010 e 2019, o Ministério da Saúde registrou a intoxicação de 56.870 pessoas pelas substâncias. No entanto, estima-se que haja uma subnotificação na ordem de 1 para 50. Ou seja, 2,8 milhões de brasileiros podem ter sido adoecidos.

As regiões Centro-Oeste e Sul, que lideram a produção de soja e milho no país, são as que registram o maior número de casos notificados de intoxicação por pulverização em área dos pesticidas. Entre 2013 e 2021, mais de 160 episódios do tipo foram relatados no Centro-Oeste e quase 100 no Sul.

Proporcionalmente, os indígenas são os que mais sofrem com os químicos agrícolas no Brasil, com destaque negativo para Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul, onde o Ministério da Saúde registrou, respectivamente, 52, 23 e 19 casos de intoxicação entre 2010 e 2019.

A pesquisa prevê que, caso se expandam, as variedades Piwi poderão ter significativo impacto positivo nesse cenário, contribuindo com a qualidade socioambiental da vitivinicultura no estado, além de possuírem potencial para o investimento empresarial.

Ligação com a Itália

Durante o período da pesquisa, o historiador ítalo-brasileiro foi bolsista do Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior (PDSE/Capes), entre setembro de 2023 e fevereiro de 2024, sob supervisão de Marco Stefanini, na Fondazione Edmund Mach (FEM) em San Michele all’Adige, na região de Trentino-Alto Ádige, no norte da Itália. 

Natural de Anita Garibaldi (SC), Ferri descende de agricultores ítalos (bergamascos, beluneses e trevisanos) que, por séculos, cultivaram videiras em seus territórios de origem. A família de Ferri imigrou ao Planalto Catarinense entre 1930 e 1940, vinda da Itália, onde já possuía ligação direta com a vitivinicultura. 

Ferri em frente ao Palazzo della Ricerca e della Conoscenza, da Fondazione Edmund Mach, em Trento, na Itália. Foto: reprodução/Samuele Scudiero

Segundo o pesquisador, sua ascendência materna possui uma relação com a vitivinicultura que remonta à uma propriedade rural dos Templários, no século XII, na província de Treviso, onde ainda hoje parentes mantêm a tradição com a vinícola Maccari Vini e Spumanti.

Ferri, que possui cidadania italiana, destaca que sua descendência influenciou diretamente a escolha do local e da linha de pesquisa da tese. “Por razões de origens etnogeográficas, a vitivinicultura sempre permeou meu convívio familiar”, relata.

Ele também afirma que a experiência na Europa foi fundamental para a compreensão das pesquisas de melhoramento genético no cenário global. De acordo com um levantamento da Organização Internacional do Vinho (OIV), os italianos têm sido os principais produtores da bebida nos anos recentes. Em 2024, a Itália elaborou 4,1 bilhões de litros, o que representa quase 20% da produção mundial.

Em comparação, em 2023, o Brasil ocupou a 43ª posição no ranking mundial, com 360 milhões de litros. Para 2024, a estimativa caiu para 270 milhões — uma retração de 25%, causada principalmente pelo excesso de chuvas durante a primavera no Rio Grande do Sul, principal produtor nacional.

 

Vinícius Graton agecom@contato.ufsc.br
Estagiário da Agecom | UFSC
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