Estudo analisa soberania e segurança alimentar em comunidade quilombola de SC
A luta pelo direito ao território, os conflitos em torno do uso da terra, a diversidade de plantas alimentícias e as relações entre soberania e segurança alimentar são alguns dos temas abordados na pesquisa de doutorado de Maiara Cristina Gonçalves, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Fungos Algas e Plantas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O estudo, realizado junto à Comunidade Remanescente de Quilombo São Roque, localizada em Praia Grande (SC), revela que, apesar da ampla variedade de espécies de plantas cultivadas e do compartilhamento e doações entre os moradores, mais da metade das famílias enfrenta algum grau de insegurança alimentar.
Isso se deve principalmente ao pouco espaço disponível para cultivo – consequência da lentidão do processo de regularização do direito ao território. Os resultados iniciais foram divulgados no artigo Agricultura tradicional e soberania alimentar: conhecimento quilombola no manejo de plantas alimentícias, publicado na revista internacional Journal of Ethnobiology (disponível também em português aqui).
Formada no século XIX por escravizados negros e indígenas como uma das formas de resistir ao sistema escravista, a Comunidade Remanescente de Quilombo São Roque hoje tem aproximadamente 160 habitantes, divididos em 38 unidades familiares e distribuídos em 7.328 hectares. Apesar de estar no local há cerca de 200 anos, ainda não tem garantido o direito a seu território, estabelecido entre os Campos de Cima da Serra e as planícies da bacia do rio Mampituba, próximo à divisa com o Rio Grande do Sul. A comunidade foi reconhecida oficialmente pela Fundação Cultural Palmares e também já passou pelos estudos antropológicos necessários. Desde 2019, o processo está parado em Brasília.
A sobreposição a duas unidades nacionais de conservação, os Parques Nacionais Aparados da Serra e Serra Geral, causou uma série de conflitos nas últimas décadas em função das limitações para atividades econômicas e uso da terra, que restringem o modo de vida quilombola. Em 2018, um termo de compromisso firmado com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) permitiu que a comunidade utilizasse menos de 20 hectares da área contestada para agricultura.
Diversidade e insuficiência de alimentos
Por meio do projeto O conhecimento e o uso das plantas por comunidades Quilombolas de Santa Catarina, Maiara e outras duas pesquisadoras do Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica (Ecohe), a bióloga Daniele Cantelli e a professora Natalia Hanazaki, fizeram algumas visitas à comunidade. O objetivo era descrever a estrutura das redes de plantas alimentícias e compreender a relação entre segurança alimentar e a dinâmica de produção e doação de alimentos. As primeiras visitas foram entre novembro de 2018 e julho de 2019 e incluíram, além da apresentação do projeto e da participação em reuniões da associação comunitária, entrevistas com integrantes de 33 famílias. Dessas, 18 moravam no território tradicional (quilombo) e 15 viviam na cidade de Praia Grande, que fica a cerca de 10 km de uma estrada de terra.
As entrevistas contemplaram questões socioeconômicas, sobre segurança alimentar e sobre as plantas que as pessoas conheciam e que usos faziam delas. Os moradores da comunidade também foram perguntados sobre espécies e variedades cultivadas para alimentação, épocas de cultivo, sazonalidade, autossuficiência alimentar e produção destinada a consumo próprio, à venda e às doações ou trocas.
“Era uma listagem bastante grande, ficávamos, às vezes, uma parte do dia, um período, junto com as famílias, conversando e anotando essas informações, também tirando algumas fotos das roças. Geralmente, a gente fazia a entrevista e depois dava uma volta na propriedade para conhecer as plantas que eles tinham citado e em alguns casos realizar coletas para posteriormente identificar e registrar na universidade”, relata Maiara.
Foram caracterizadas 83 variedades de plantas usadas para alimentação. Apesar dessa ampla diversidade, 53% das famílias apresentavam algum grau de insegurança alimentar – ou seja, não tinham acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes. É importante destacar que os dados foram coletados antes da pandemia de covid-19. Embora as visitas tenham sido suspensas em 2020 e 2021, Maiara e seu grupo mantiveram contato com a comunidade de São Roque, e ela diz que houve situações bastante críticas e urgentes, com pessoas passando fome, inclusive. No período mais crítico da pandemia, além de aumentar a dependência por apoios governamentais, a comunidade teve que recorrer a vaquinhas online para sobreviver.
A pesquisa demonstra, ainda, que a situação de insegurança se agrava em famílias chefiadas por mulheres, com maior número de moradores, incluindo crianças, e nas que dependem exclusivamente da agricultura. Isso se deve, principalmente, à falta de áreas disponíveis para cultivo.
“Quando a gente pensa em acesso a uma alimentação de qualidade, é necessário considerar tanto a quantidade como a variedade de alimentos consumidos. A maioria das roças tem alta variedade de plantas alimentícias, mas nem sempre conseguem cultivar em grandes quantidades. Por exemplo, arroz e feijão, algumas famílias conseguem ter autossuficiência desses alimentos o ano inteiro por terem uma roça maior. Mas a grande maioria não consegue. Então, muitas famílias que vivem no quilombo têm uma insegurança de não saber se vão conseguir cultivar em quantidades suficientes”, comenta a doutoranda.
Os agricultores que mais cultivam são os que mais doam, e ajudam a equilibrar a disponibilidade de recursos entre as pessoas da comunidade. “Quem produz mais acaba separando uma parte para doar para os seus familiares vizinhos ou que estão fora [da comunidade] também. Tem muita gente que, como está fora, acaba vindo aos finais de semana e acaba levando alguns alimentos que foram colhidos em abundância para complementar a alimentação durante a semana”, explica.
Alguns alimentos são vendidos, principalmente as bananas. Há, também, agricultores que produzem para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que destina a produção para as escolas da comunidade e da cidade. Muitas pessoas complementam sua renda com a produção de artesanato e doces e com aposentadoria e auxílios governamentais. Outras buscam empregos fora da comunidade, na agricultura, na construção civil e no setor de calçados ou como empregadas domésticas, no caso das mulheres. Mais recentemente, moradores foram habilitados para o trabalho de guia turístico, o que incentivou jovens a permanecerem na comunidade e aumentou a renda de algumas famílias.
Conflitos no uso da terra
As relações com a administração dos parques nacionais e órgãos ambientais afetam diretamente a segurança e a soberania alimentar do quilombo São Roque. Os quilombolas sofreram com a criminalização da coleta de alguns alimentos tradicionais, como pinhão e frutas nativas que estão dentro das áreas de preservação, bem como de seus modos de cultivo. Tradicionalmente, eles alternavam periodicamente a área usada para agricultura, plantando em um novo espaço enquanto o anterior se recupera e com queimada controlada de determinadas áreas. Todo esse processo foi afetado, não é mais permitido o manejo com fogo, e nem é possível a alternância de locais devido ao pouco espaço disponível.
“Isto e a enchente de 1974 [conhecida como enchente de Tubarão] abalaram o quilombo, modificando o modo de vida e gerando inseguranças nas famílias, tanto que parte das pessoas foram morar na cidade. E quem ficou manteve algumas roças, e com muita dificuldade mantiveram variedades de feijões (10), amendoim (8), batata-doce (7), entre outras”, afirma Maiara.
Quando iniciou o estudo, em 2018, a pesquisadora participou de ações de educação ambiental junto ao ICMBio, por meio de um projeto interinstitucional que inclui a Associação dos Remanescentes do Quilombo São Roque, o Movimento Negro Unificado (MNU), o Ministério Público Federal (MPF), a Prefeitura de Praia Grande e a UFSC. Esse projeto celebra o andamento do Termo de Compromisso firmado entre o ICMBio e a Comunidade Remanescente de Quilombo São Roque, que define a forma de uso comum de uma parte dos Parques Nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral, liberando algumas áreas tradicionais para cultivo. Desde então, foram realizadas também algumas melhorias de infraestrutura, como o acesso à internet e a construção de uma nova ponte sobre o rio que cruza a comunidade – a anterior alagava, e alguns locais ficavam inacessíveis por dias em época de chuvas intensas.
Apesar dos avanços, a falta de titulação do território gera muitas inseguranças. Não está claro, por exemplo, como será a relação com a empresa privada que detém a concessão dos parques desde 2021. “Muitas famílias moram ainda na lona, não conseguiram construir a casa, porque não têm espaço. Acredito que algumas pessoas retornariam da cidade para viver na comunidade se tivessem mais espaço, se tivessem esse acesso ao território. E acho que, num segundo momento, além de ter acesso a essa terra, são necessários incentivos governamentais para o cultivo, é preciso que essas áreas sejam consideradas áreas importantes de cultivo da diversidade local e que seja considerado prioritário o cultivo para autoconsumo. Com certeza, a segurança alimentar aumentaria no quilombo se as pessoas tivessem essa certeza de poder cultivar sua roça e ter acesso a políticas de permanência territorial que considerem as especificidades de cada quilombo”, salienta Maiara.
Aprendizados e reconhecimentos
“Foi muito rico conhecer um pouco desse contexto quilombola de Santa Catarina e poder verificar que, mesmo que a maioria sofra com alguma vulnerabilidade alimentar atualmente, essas pessoas têm conhecimentos inestimáveis sobre essas plantas e sobre o seu território, e conseguem manter os seus modos de vida e formas de se alimentar dentro desses locais, mesmo diante de tantas vulnerabilidades. Ou seja, detêm sua soberania alimentar”, enfatiza a doutoranda.
As dificuldades e as lutas de São Roque são comuns a muitos quilombolas, e a pesquisadora ressalta que a Universidade tem muito a aprender com essas comunidades. Entender como elas se mantêm e se organizam pode indicar caminhos importantes para a soberania alimentar brasileira. Além disso, essas pessoas são agentes ambientais ativos, que protegem nossa biodiversidade. “Esse reconhecimento dessas comunidades pela Universidade é bem importante, em diversas áreas do conhecimento. Neste estudo verificamos e aprendemos que o conhecimento ecológico tradicional do quilombo São Roque se reflete na biodiversidade local, na nutrição, no bem viver das famílias e nas redes sociais de trocas e doações de alimentos locais.”
Além do interesse em conhecer as plantas alimentícias e o contexto de segurança e soberania alimentar de comunidades tradicionais, Maiara se aproximou do assunto também por motivações pessoais. “A presença de pessoas negras, indígenas, periféricas e da classe trabalhadora na pós-graduação fomenta cada vez mais pesquisas interdisciplinares que buscam fazer ciência de outros pontos de vista sobre questões relacionadas ao cotidiano. Esse é o meu caso, como mulher negra e periférica, a insegurança alimentar é um assunto cotidiano em minha família e para muitas pessoas do meu convívio. Nesse sentido, é essencial que a gente comece a olhar, a aprender com essas populações no sentido de buscar juntos o que precisamos para manter a soberania alimentar local, regional e nacionalmente diante das mudanças climáticas, considerando que alguns destes quilombos possuem experiências, insumos, práticas e conhecimentos acumulados há mais de 400 anos.”
“Existem muitos conhecimentos que essas comunidades têm que são invisibilizados. É de máxima importância que a gente comece a falar sobre esses conhecimentos, sobre essa diversidade cultural dessas populações, que não são iguais. Atualmente 19 comunidades quilombolas são reconhecidas no estado de Santa Catarina. Mesmo estando neste mesmo estado, cada quilombo vai ter uma característica diferente. Manter esses territórios também é contribuir com a permanência da cultura das populações afrodescendentes rurais e urbanas do Sul do Brasil. Muitos quilombos vivem sob intenso racismo ambiental, especulação imobiliária e as sobreposições de áreas de preservação em seus territórios. É necessário que os órgãos ambientais estaduais considerem a perspectiva de que a presença de quilombos nestas áreas fortalece as ações de preservação ambiental através da propagação dos seus modos de vida e cultura”, complementa.
Uma das maneiras que seu grupo de pesquisa encontrou de mostrar esse reconhecimento foi incluir membros da comunidade quilombola como autores do artigo científico publicado. “Apesar de nós termos decidido testar a hipótese sobre a riqueza de plantas alimentícias, compilado os dados, avaliado estatisticamente, esse conhecimento é de domínio e autoria deles. Toda a pesquisa foi baseada no conhecimento que eles têm e foi registrada no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (Sisgen).”
Os resultados desse e de outro trabalho desenvolvido pelo Ecohe foram apresentados à comunidade em duas visitas realizadas no início de 2022. O grupo ainda está em processo de devolutivas, e agora prepara um livro de fotografias, com todas as atividades de campo – um pedido da comunidade –, que deve ser finalizado e entregue em meados deste ano.
Camila Raposo/Jornalista da Agecom/UFSC