‘A extrema direita ganhou, mas as feministas também ganharam’, afirma antropóloga na UFSC
Durante os meses de fevereiro e março deste ano, a professora e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), fez uma peregrinação por 26 universidades norte-americanas para ministrar 35 conferências sobre um mesmo tema: a ascensão da extrema direita e consequente eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. Rosana foi convidada para essa viagem aos Estados Unidos pelo Brazil Program, da San Diego State University, por causa da pesquisa etnográfica que vem realizando, juntamente com Lúcia Scalco, sobre o pensamento e comportamento político dos jovens da periferia de Porto Alegre (RS) — precisamente na zona leste, a área conhecida como Morro da Cruz.
Essa mesma conferência foi apresentada pela primeira — e provavelmente única — vez no Brasil na última segunda-feira, 25 de março, na Universidade Federal de Santa Catarina. Em um auditório lotado — com boa parte do público sentado no chão e até assistindo em pé do lado de fora —, Rosana proferiu a aula inaugural do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH/UFSC). A plateia permaneceu atenta e demonstrando grande interesse durante as quase duas horas de sua fala. Colunista do The Intercept e uma das idealizadoras da Escola Comum, a docente tem uma atuação expressiva fora da academia e já era conhecida por muitos dos presentes. Após sua longa explanação, ela sintetizou o momento político atual com palavras otimistas: “A extrema direita ganhou, mas as feministas também ganharam. O número de deputadas está crescendo e há uma nova geração de meninas que terão uma atuação fundamental para confrontar esse governo e reestabelecer a democracia e a esperança no Brasil.”
“Da esperança ao ódio”
Recebida entre aplausos e exclamações de protesto — como “Fora Bolsonaro!” e “Lula Livre!” —, Rosana manifestou sua satisfação pelo acolhimento caloroso. “Esse auditório cheio expressa a vontade e necessidade de estarmos juntos nesse momento, que é o começo de um período de quatro anos, mas que é também o momento em que cresce muito a rejeição a Bolsonaro no início do governo, o que caracteriza uma rejeição histórica. Mas como as camadas populares vieram a apoiar Bolsonaro? Como esses cidadãos de baixa renda, esses novos consumidores que simbolizavam a ascensão do Brasil como uma potência democrática global na Era Lula, como esses sujeitos passam a apoiar Bolsonaro?”
A partir desses questionamentos, sua pesquisa buscou apresentar um panorama da política brasileira em um intervalo de 10 anos, de 2009 a 2019, que ela define como “do lulismo ao bolsonarismo”: “Esse período é marcado pela ascensão e queda da economia, pelo colapso do sistema político e pela erosão dos partidos tradicionais. Procuramos averiguar como o cenário político e econômico nacional afetam os indivíduos e também como os grupos populares conformam cada momento político. Observamos que, após o momento de crescimento, vem o momento de crise. E essa crise vai afetar o self, o eu individual, as identidades.”
Nesses 10 anos, Rosana observou de perto a passagem da fase de esperança e de projeção de sonhos para estados de descrença e depressão. “Vimos o alargamento dos sonhos dos sujeitos e depois o fechamento desses sonhos. Um certo momento de emergência global fez com que os indivíduos pudessem sonhar mais longe. Mas essa nossa capacidade de sonhar se amplia ou se fecha de acordo com o momento político. Fizemos um estudo etnográfico longitudinal, acompanhando os mesmos grupos de jovens antes e depois da crise econômica. E Porto Alegre é um lugar muito paradigmático para estudar a ascensão bolsonarista e da extrema direita, porque foi o berço do orçamento participativo e também tem a marca do Fórum Social Mundial. Porto Alegre era amplamente conhecida como uma cidade de esquerda. Mas em 2018 Bolsonaro ganhou em todos os bairros da cidade, inclusive nos menos favorecidos. É muito significativo que ele tenha conseguido se eleger no lugar onde nasceu um modelo de orçamento participativo que se tornou referência para o mundo todo na década de 1980.”
Ao longo desses anos, as etnógrafas participaram do cotidiano das famílias, fizeram entrevistas informais e formais e, de 2016 a 2018, criaram 17 grupos focais com jovens eleitores de Bolsonaro — e também participaram de grupos de Whatsapp com os integrantes da pesquisa. “Sempre faço questão de dizer: havia ódio na esperança, assim como hoje há esperança no que chamamos de ódio. Esperança e ódio não são categorias totalizantes, há contradições e complexidades. Não foi de um dia pro outro que o Brasil ‘acordou bolsonarista’. Nos anos 1980, as reuniões do orçamento participativo e das associações de bairro eram intensas e constituíam um canal de mobilização muito forte em Porto Alegre. Todas as gerações que hoje têm acima de 50, 60 anos, especialmente as mulheres, tiveram uma formação política muito sólida. E essas foram as mulheres que não votaram no Bolsonaro de jeito nenhum.”
Entretanto, um processo gradual de desmobilização da base se iniciou quando Lula venceu as eleições em 2002 e o PT mudou sua forma de organização política: “Após anos de mobilização popular, surge um Estado mais gestor, que institui um modelo de inclusão financeira. A partir daí, há menos investimento nas lutas e um investimento muito maior em promover a inclusão via consumo. Os resultados disso foram muito expressivos e marcaram uma era do Brasil: uma era de redução da extrema pobreza, de saída do mapa da fome, de adoção de políticas de inclusão social e financeira e do programa que se tornou mais famoso, o Bolsa Família.”
A consequência desse cenário de inclusão via consumo, segundo a pesquisadora, é o ápice do crescimento econômico brasileiro: “O Brasil resiste à crise econômica mundial de 2008, atinge seu pico de crescimento e começa a ganhar respeito como economia emergente, protagonista e democrática no sistema internacional. Os acordos internacionais eram muitos, a cooperação sul-sul era o grande caminho. As novas camadas médias passam a ser um fato notório no país: 40 milhões de pessoas acessaram a classe média. Sendo controverso ou não esse número, não há dúvida de que as condições de vida das classes populares, sobretudo no que diz respeito a acesso a bens e direitos, se transformou de maneira inédita. Havia toda uma nova linguagem de felicidade, sonho e brilho. A subjetividade política das populações menos favorecidas foi impactada de várias maneiras. Nós constatamos, nos discursos desses indivíduos, o sentimento de visibilidade via consumo: ‘Eu existo’.”
A invisibilidade histórica e a humildade dos chamados subalternos estava se transmutando em orgulho, autoestima, autovalor: “Então o consumo também era político, uma vez que a invisibilidade estava se transformando no ‘direito ao brilho’. Havia uma política pulsante, provocadora, desafiadora. Nossos interlocutores se sentiram empoderados e muitos começaram a sonhar mais alto, vários começaram a pensar em voltar a estudar, entrar em uma faculdade, ou mesmo em comprar um pequeno apartamento pelo ‘Minha casa, Minha vida’. As pessoas ousavam comprar coisas e ir a lugares onde sabiam que ‘não deviam’ ir, elas estavam quebrando o monopólio dos bens de distinção. Através do consumo, nossos interlocutores contestavam estruturas raciais e de classe.”
Mas, conforme ela observa, também havia uma consciência clara de que essa ainda era uma cidadania muito precária. “Isso era muito diferente do orçamento participativo, que era baseado em uma democracia radical e tudo era debatido no plano coletivo. Então foi muito menos uma mudança estrutural e mais uma mudança no acesso a direitos e coisas. O Brasil certamente mudou positivamente, mas permaneciam as mesmas estruturas racistas, desiguais e violentas. A dignidade se deu na aparência.”
O grande problema, para Rosana, foi que o “lulismo” abriu uma brecha de esperança, mas essa brecha foi fechada de maneira brusca. “A esquerda fez muitos deboches da crise econômica e cometeu o erro de não observar como a crise afetou as camadas C e D de maneira brutal. Isso foi negligenciado no debate político. A partir das manifestações de junho de 2013 começaram os cinco anos de limbo histórico, e foi aí que Bolsonaro começou a crescer. Nesse mesmo ano ele foi uma das pessoas mais procuradas no Google e, em 2014, começou a articulação do golpe para o impeachment de Dilma. Bolsonaro tinha uma intenção de 7% de votos em 2013 e manteve esses 7% nos anos seguintes. Depois do escândalo da JBS e do impeachment, ele vai de 7 a 17%, e a partir daí não para de crescer.”
A pesquisadora defende a ideia de que o que houve no Brasil foi o colapso do sistema político. “Muitos realmente acreditaram que o impeachment era um movimento contra a corrupção. A percepção popular é que os políticos eram ‘tudo farinha do mesmo saco’. Ou seja, PT, PSDB, esquerda, direita, centro… Todo o sistema foi percebido como corrompido, como ‘tudo a mesma coisa’. Em meio a uma crise econômica, o sistema político ruiu e Bolsonaro cresce então como uma alternativa radical. Ele é o político da história brasileira que mais foi a programas de televisão: entre 2013 e 2018 ele apareceu em 33 programas populares e se tornou um fenômeno midiático. Ele falava o que ninguém tinha coragem de falar e começou a ver que, no meio de uma crise econômica e política, ele ganhava atenção falando qualquer coisa.”
A pesquisadora constata que uma das estratégias de Bolsonaro foi disseminar a ideia de que o grande inimigo do brasileiro é o “vagabundo”: “É esse sujeito pobre, periférico, negro, traficante. E essa noção de ‘vagabundo’ começa a se estender a travestis, gays, nordestinos, ativistas, feministas, acadêmicos… todo mundo, basicamente não sobra ninguém. Em meio a uma profunda crise, Bolsonaro começa a estimular o medo e a necessidade de autodefesa. E passa a ser admirado pelo sujeito que tem um desejo profundo de ter arma para ‘autodefesa contra vagabundos’, mas também contra mulheres, homossexuais e todos aqueles que ameaçam a estabilidade de uma certa família tradicional.”
A crise econômica se torna um momento propício para amplificar essa sensação de medo e encontrar culpados. Cresce o desejo de autodefesa em relação a esse ‘outro’ e de andar armado, que sempre esteve latente. Segundo a antropóloga, em 2016, os jovens de periferia já demonstravam profunda admiração por Bolsonaro, que era conhecido como “Bolsonaro zueiro”, por expressar ideias preconceituosas através de piadas. “Esses meninos, que foram os mesmos que participaram dos famosos ‘rolezinhos’ em shopping centers, achavam ele engraçado, direto, autêntico e já se autoproclamavam ‘bolsominions’. Ele se tornou a ‘nike’ de antigamente; Bolsonaro era uma ‘marca’, um ‘mito’. E a questão das armas era justamente o que mais fascinava esses meninos. Há aí também um elemento fálico. Esses jovens já eram extremamente conservadores em termos de gênero.”
A ocupação das escolas em 2016, diferente dos ‘rolezinhos’, foi protagonizada por mulheres e se conformou como uma janela de oportunidades para uma nova onda feminista, antirracista e anti-homofóbica. “Interpretamos essa nova onda feminista na periferia como algo revolucionário. De fato, houve uma quebra na estrutura social. Nas periferias há um histórico de mulheres chefes de família e líderes comunitárias, mas não feministas. As filhas dessas mulheres, pelo contrário, se autoproclamam feministas e discutem a grande política, o que é de fato extraordinário. O bolsonarismo, então, em um primeiro momento, significava também uma resposta a esse engajamento das meninas, ao sentimento de perda de protagonismo, perda de controle, e à desestabilização do padrão hegemônico da hipermasculinidade.”
A polarização, portanto, não é só entre direita e esquerda, mas também uma questão de gênero. “Existe uma tendência de gênero na oposição à Bolsonaro. Mas isso não se dá de forma isolada. Não tem como separar a ‘crise do macho’ da crise econômica. A crise econômica faz o ‘pai de família’ perder o emprego e, consequentemente, perder o papel de provedor. Esse indivíduo que deixa de ser o provedor fica sem saber o que é no mundo. E isso gera raiva pois se dá em um processo em que havia a sensação de que você estava subindo, e de repente você cai. A percepção de queda é muito brutal.”
A masculinidade, conforme Rosana argumenta, foi duplamente afetada pelas vozes feministas emergentes e pela dificuldade econômica, que de fato tiveram influência na ascensão de Bolsonaro. “Em um segundo momento, o que prevaleceu foi o sentimento de medo, vulnerabilidade e frustração em relação a segurança pública e ao empobrecimento. Houve uma degradação na vida do morro. A grande narrativa do país emergente colapsou, se esfacelou. As pessoas compravam menos e sonhavam menos. Para muitos, o principal benefício que a Era Lula tinha proporcionado era conforto material. Mas sem dinheiro e sem emprego, não se podia mais comprar nada.”
Além disso, a esquerda negligenciou o debate da segurança urbana. “Quem sofre violência todos os dias é a pessoa pobre que está na parada de ônibus à meia-noite, em ruas escuras, sem iluminação, e que é corriqueiramente assaltada. 100% dos nossos interlocutores foram assaltados, e são histórias de assaltos muito violentos. Quando eles perdiam os bens, como um celular por exemplo, perdiam também os elementos estruturantes de cidadania e reconhecimento que se dava via consumo. E já não havia mais espaços coletivos para discutir a angústia, a violência, o medo, a frustração. O feminismo proporciona isso às mulheres, mas os homens não têm hoje esse tipo de espaço. Eles viveram e vivem a violência de maneira muito individualizada.”
“Nesse mundo doido em que as meninas estão falando de política”, Bolsonaro representa a ideia de uma figura militar que iria restaurar uma autoridade masculina e garantir “uma ordem no mundo perdido”: “Na sociologia já há muitos estudos sobre a ideia da arma na construção da hipermasculinidade como algo fundamental. Muito mais do que proteger bens, ela protege a honra e a masculinidade. Há ainda uma categoria de trabalhadores que são pobres, mas não paupérrimos, que entende que PT fez pouco por eles, mas muito por gays, mulheres e ‘vagabundos’. E contra ‘vagabundos’, Bolsonaro tem esse discurso forte de que ‘tem que morrer’, a ‘polícia tem que matar’. Muitas periferias têm características parecidas, com um discurso punitivista muito forte entre as classes C e D. As pessoas acham que deveria haver mais punição e inclusive pena de morte. A narrativa da impunidade é disseminada todos os dias na televisão pelo Datena e também pelas imagens de violência que circulam no Whatsapp do Brasil profundo. São imagens quase impossíveis de ver. Grande parte da população só recebe isso.”
As pesquisadoras interpretam os últimos meses antes das eleições, “quando Bolsonaro começou a crescer absurdamente”, como um momento de “efervescência coletiva”: “Não conseguíamos mais entrevistar as pessoas. ‘Por que você vota em Bolsonaro?’ ‘Pela família, por Deus, pela corrupção, pelo cachorro, por tudo.’ Era um movimento de radicalização, muito emocional e de contágio, principalmente porque, com Lula fora do pleito, ele dominou o cenário. E no final do processo eleitoral parecia que votar em Bolsonaro era muito mais uma questão de pertencimento do que um entusiasmo real. Tanto que ninguém se autodenominava ou se reconhecia como de direita, a maioria sequer sabia o que significava ‘ser de direita’. Por isso eu digo que a extrema direita ganhou, mas as feministas também ganharam. Hoje o cenário está mudando e os grandes meios de comunicação têm apresentado muitas críticas a Bolsonaro. Acredito, portanto, que as estruturas institucionais prevalecerão e veremos um processo de redemocratização.”
Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC