UFSC Explica: Ações Afirmativas
A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) instituiu seu Programa de Ações Afirmativas em 2008, por meio do Conselho Universitário (CUn), antes mesmo que o Congresso Nacional aprovasse a Lei nº 12.711/2012, que torna obrigatória a reserva de vagas para estudantes de escolas públicas em todas as instituições de ensino federais (escolas técnicas, institutos e universidades). Atualmente, mais de 50% das vagas de graduação da UFSC são reservadas para políticas de ações afirmativas. Mais recentemente, em 2014, foi aprovada a Lei nº 12.990/2014, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos federais. Ainda assim, as ações afirmativas continuam sendo objeto de polêmicas e debates.
Perguntamos à coordenadora de Relações Étnico-Raciais da Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades da UFSC (Saad), Célia Passos, e ao diretor de Ações Afirmativas da Saad, Marcelo Tragtenberg uma série de questões a respeito. Confira.
1. O que são as políticas de ações afirmativas, também conhecidas como cotas raciais? Por que elas existem?
As cotas são um tipo de ação afirmativa. De acordo com o jurista Joaquim Barbosa Gomes (Ação Afirmativa e o Princípio Constitucional da Igualdade), as ações afirmativas são políticas públicas ou privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, que visam a neutralizar os efeitos de discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como valorizar a diversidade e a criação de modelos sociais. Assim, possibilita a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais.
No Brasil há profundas e estruturais desigualdades entre negros (pretos e pardos) e brancos, em todas as áreas da vida social. E não é por causa do diferente ponto de partida após a escravidão, mas devido à discriminação racial, como mostrou Carlos Hasenbalg em suas obras, principalmente “Discriminação e Desigualdades Raciais no Brasil”. Nesse sentido, políticas afirmativas, de cotas ou de outro tipo, devem ser aplicadas imediatamente em todos os setores da vida social, para diminuir essas diferenças.
Exemplos são o acesso à graduação e à docência universitária pública. Na UFSC, o percentual de docentes pretos e pardos é cerca de 1%, num estado com 15% de pretos e pardos, e vários docentes vem de estados com maior percentual de pretos e pardos na população. Nos cursos mais concorridos, antes das ações afirmativas, o percentual de pretos e pardos era bem menor do que na população de Santa Catarina.
2. De que forma as políticas de ações afirmativas ajudam a promover igualdade racial?
Quando enfrentam as desigualdades e oportunizam a grupos discriminados historicamente o acesso a direitos fundamentais, como a educação, por exemplo. Importante dizer que as desigualdades raciais não são somente heranças da escravidão, mas, resultado do racismo que se manifesta cotidianamente nas relações sociais.
Elas permitem o acesso de negros a posições privilegiadas na sociedade, como por exemplo, o ensino superior público e privado, onde somente cerca de 17% dos jovens negros entre 18 e 24 anos tem acesso. O objetivo é chegar à proporcionalidade de negros nessas posições igual à proporção de negros na população.
3. As políticas de ações afirmativas existem no Brasil há quanto tempo?
Se entendermos essas políticas num sentido amplo, de apoio a determinados grupos sociais específicos, a primeira Ação Afirmativa foi a política de branqueamento da população brasileira de 1870 a 1930. Foi financiada a imigração européia (4,5 milhões de pessoas) e proibida a negra, com a justificativa que o negro impedia o desenvolvimento brasileiro. Por comparação, 4,5 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil de 1500 a 1888. Os brancos europeus foram os primeiros beneficiários de ação afirmativa no Brasil. Na constituição de 1934 houve uma lei de cota para limitar a imigração (2% dos imigrantes no país), e na promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (artigo 354) em 1943 havia uma cota de 2/3 para trabalhadores brasileiros.
Em relação ao ensino superior, a primeira legislação com ação afirmativa refere-se à Lei 5465/68 que estabelecia reserva de vagas no nível de ensino federal para filhos de agricultores em 50% (ensino superior) e 30% (ensino médio). Na prática, beneficiaram filhos de fazendeiros. Portanto, as ações afirmativas não surgem no século XXI e nem são as cotas raciais para negros o início delas. Contudo, nunca se ouviram discussões e polêmicas a respeito da legislação de 1968 que esteve vigente por mais de vinte anos.
As políticas de ações afirmativas de acesso ao ensino superior público em vigor antes de se tornarem Lei Federal (12.711/2012) foram implantadas nas universidades que reconheceram a ausência ou a ínfima presença dos segmentos negros e indígenas em seu interior. Há uma série de políticas de ação afirmativa: juros menores para pequenas empresas, tratamento diferenciado para gestantes, idosos e pessoas com deficiência em transporte coletivo ou atendimento público, passe escolar. Nenhuma dessas é questionada.
4. Existem pesquisas que apontam os resultados dessas iniciativas? Quais seriam alguns desses resultados?
Do ponto de vista das desigualdades raciais no acesso ao ensino superior, as cotas raciais para acesso permitiram aumentar o percentual de negros. Na UFSC, aumentaram de 8,5% em 2007 para 13,5% em 2012. A evasão foi menor entre os cotistas raciais nesse período, depois nos cotistas de escolas públicas e maior entre os estudantes da classificação geral. Um resultado impressionante, que parece ter relação com essa política, é que o percentual de negros entre 15 e 17 anos aumentou de 26% para 51% de 2003 a 2014, e o de brancos de 51% para 65%.
Em âmbito nacional já existe um conjunto de pesquisas que vem sendo realizadas tanto individualmente por pesquisadores(as) em nível de pós-graduação ou em redes de pesquisadores(as). Os resultados são vários:
- revelam que os estudantes negros e indígenas têm sido vítimas de racismo também na universidade e principalmente revelam o acerto da politica ao oportunizar a (con)vivência entre os grupos étnico-raciais;
- o desempenho dos estudantes também tem trazido resultados importantes que superam o preconceito inicial de que essa política impactaria no nível e ranking das universidades;
- mostram também o tensionamento na atual estrutura social e acadêmica. Este é provocado por vários fatores, entre eles: a simples presença de pessoas que, até então, não frequentavam os espaços do campus universitário – são outras corporeidades, múltiplas estéticas –; desigualdades econômicas mais presentes; outras sociabilidades; questões geracionais; e a explicitação do racismo. Os novos sujeitos que entram em cena na universidade trazem consigo as marcas de suas trajetórias de desigualdades e questionam a cultura acadêmica instituída.
Desse modo, a expectativa é que as ações afirmativas provoquem mudanças não só no pensamento acadêmico, mas também na convivência acadêmica.
5. Como as cotas raciais se justificam no acesso à universidade pública? E nos concursos públicos, como se justificam?
Tanto no acesso à universidade como no concurso público as cotas raciais se justificam da mesma forma, a superação das desigualdades entre brancos, negros e indígenas seja no ensino superior, seja no mercado de trabalho. Importante destacar que a Lei Federal 12.711/2012 em vigor não é uma lei com cotas raciais, pois, o critério primeiro é ter sido estudante de escola pública, em seguida a renda per capita familiar e por último a autodeclararão cor/raça.
Além disso, foram realizadas pesquisas na UFSC e UFPR, onde mostrou-se que cotas para escola pública não incluem negros.
Com relação ao concurso público, ela terá mais impacto na docência. Há departamentos na UFSC sem um professor preto ou pardo, e o percentual médio é de 1%!
6. As cotas têm data para acabar?
Pela Lei 12.711/12, as cotas deverão ser avaliadas em 2022. Contudo, em oito anos a UFSC ainda não formou um indígena em qualquer outro curso que não a Licenciatura Indígena e apenas 459 negros(as). Isso significa que pouco contribuímos nesse tempo, com a redução das desigualdades.
A Lei 12.990/2014 de cotas para negros no serviço público federal tem validade inicial de 10 anos. As políticas afirmativas devem continuar enquanto houver desigualdade racial.
Bibliografia Sugerida
O Curso do Rio: 30 anos de ação afirmativa nos EUA, W. Bowen e D. Bok
O Significado da Raça na Sociedade Brasileira, Edward Telles (disponível em PDF)
Ação Afirmativa e o Princípio Constitucional da Igualdade, Joaquim B. Gomes
Cotas nas universidades brasileiras: análise dos processos se decisão, Jocelio Santos (org.) (disponível em PDF)
O impacto das cotas nas universidades brasileiras 2004-2012, Jocelio Santos (org.) (disponível em PDF)
Como aumentar a proporção de estudantes negros nas universidades?, Tragtenberg ET. Al. Cadernos de Pesquisa v.36, n. 138, p. 437-495, maio/ago 2006
Inclusão etnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior, José Jorge de Carvalho
Relações raciais, cultura acadêmica e tensionamentos após ações afirmativas, PASSOS. J. C. Educação em Revista. Belo Horizonte: UFMG, v. 31. (disponível em PDF)
A relação entre movimento negro e academia na construção e implantação de políticas públicas: o caso das AA na UFSC, PASSOS, JC. In: PEDRO, J. M. Interdisciplinaridade no ensino, na pesquisa e na extensão. Florianópolis: EdUFSC, 2015
O impacto das ações afirmativas no currículo acadêmico do ensino superior brasileiro, PASSOS, J.C.; RODRIGUES, T. C. CRUZ, A. C. Revista da ABPN.
O sistema de cotas para negros na UnB: um balanço da primeira geração, SANTOS, S. A. Jundiaí, Paco Editorial, 2015.
UERJ. Avaliação qualitativa dos dados sobre desempenho acadêmico. Rio de Janeiro: UERJ, 2012.
UNB. Análise do sistema de cotas para negros da Universidade de Brasília: período 2º semestre de 2004 ao 1º semestre de 2013, Brasília: UnB, 2013.
Ex-alunos negros cotistas da Uerj: os desacreditados e o sucesso acadêmico, VALENTIM, Daniela F. D. Rio de Janeiro: Quarter: Faperj, 2012.
Pesquisas sobre as ações afirmativas desenvolvidas na UFSC (disponível em PDF)
Coordenadora de Relações Étnico-Raciais da Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades (Saad/UFSC). Docente do Departamento de Estudos Especializados em Educação, do Centro de Ciências da Educação (CED). Leciona disciplinas sobre Diferença, Estigma e Educação. Lider do grupo de pesquisa: Alteritas: Diferença, Arte e Educação/CNPq; e, vice-líder do Núcleo Vida e Cuidado/CNpq (NUVIC): estudos sobre violências. Pesquisadora no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI-SC), com sede na UFSC.
Marcelo Henrique Romano Tragtenberg
Diretor Administrativo da Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades (SAAD/UFSC),
Docente do Departamento de Física, do Centro de Ciências Físicas e Matemáticas (CFM), membro do INCT de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa do CNPq, pesquisador em Ação Afirmativa, Mecânica Estatística e Neurociência Computacional.