Pesquisa de doutorado na UFSC dá visibilidade às mulheres pescadoras

04/06/2013 11:43

Pesca realizada por mulheres no litoral catarinense foi tema de pesquisa de doutorado na Antropologia da UFSC. Foto: Rose Mary Gerber

Uma pesquisa recente no doutorado em Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina teve como objetivo estudar uma profissão invisível: a das mulheres que trabalham na pesca artesanal no litoral catarinense. Desenvolvida pela antropóloga Rose Mary Gerber, a tese chama-se “Mulheres e o Mar: Uma etnografia sobre pescadoras embarcadas na pesca artesanal no Litoral de Santa Catarina, Brasil”. Foram 13 meses de pesquisa de campo em oito cidades.

Nesse período, Rose vivenciou o cotidiano de 22 pescadoras, foi para o mar, ajudou a puxar rede, a limpar e embalar os peixes, e constatou uma rotina de trabalho pesado, variado, invisível. Mas ao mesmo, apaixonante. Como relata Rose em sua tese, “a vida na pesca atua como distração da vida na terra. A vida no mar é fonte de saber, sanidade, ânimo para enfrentar os problemas”. Entre os desafios das pescadoras é ter seu trabalho reconhecido junto aos organismos oficiais, como o INSS.

A pesquisa foi orientada pela professora Sônia Weidner Maluf e teve apoio do Instituto Brasil Plural (IBP), da Capes e da Epagri, onde Rose trabalha como analista técnica. A tese está em fase de revisão e estará a disposição para consulta no acervo eletrônico da Biblioteca Universitária. Em breve deverá tornar-se livro. A autora também realizou um documentário em vídeo, reunindo entrevistas e depoimentos das pescadoras, que também será lançado em breve. Confira a seguir uma entrevista em que Rose conta um pouco sobre os percursos de sua pesquisa.

– Depois de 13 meses de trabalho de campo, pode-se dizer que o destaque de sua pesquisa é contribui para dar visibilidade à mulher pescadora. O que motivou a escolher este tema?
Primeiro, foi tentar descobrir se existem pescadoras embarcadas. Segundo, mostrar o trabalho dessas mulheres. Percebi que existe uma invisibilidade dessas trabalhadoras, principalmente em relação à política social. O mais grave é que elas têm dificuldades de reconhecimento pelo Ministério da Pesca e pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) como pescadoras, para poder se aposentar. Elas têm dificuldade de acessar a esses direitos, pois a alegação é de que não existem mulheres pescadoras. A tese é a prova de que elas existem.

– Em sua tese, você relaciona três tipos de atividades das mulheres na pesca: as que trabalham em terra, as que coletam e as que trabalham embarcadas. Como é a diferença entre esses trabalhos?
Não quis, com a tese, estabelecer uma classificação rígida, mas na pesquisa observei três formas da mulher de ser pescadora. Uma delas são das que ficam em terra e trabalham no descasque, na evisceração, na filetagem de peixe, desconchamento de marisco, limpeza, beneficiamento e venda do pescado. Outra forma que encontrei são as que atuam na coleta de berbigão, à beira do mar. A terceira forma é a das embarcadas. Neste caso considerei aquelas que saem todos os dias, na pesca de peixe e arrasto de camarão, em jornadas de quatro a 16 horas por dia no mar. Trabalham geralmente com seus maridos. Dentro das embarcadas também incluo as que denominei de stand-by. Ou seja, não saem todos os dias, mas estão sempre prontas, e são acionadas pelo marido de um dia para o outro para embarcar. Ao chegar em terra, marido e esposa dividem-se na tarefa de puxar o barco e realizar as atividades, como limpeza e preparação do peixe para a venda. Como eles lidam com um produto fresco, todo o trabalho é ágil, tudo precisa ser resolvido imediatamente. Além da rotina na pesca, o trabalho da casa é todo delas, que ficam até tarde da noite para lavar roupa, arrumar casa, cozinhar.

Maioria das pescadoras aprendeu o ofício com o pai. Foto: Rose Mary Gerber

– E como elas fazem quando têm filhos pequenos?
O casal entra em consenso e elas ficam em terra durante a fase de crescimento da criança. Elas se concentram no trabalho em terra, enquanto o marido arruma um camarada para trabalhar no barco. Outro caso em que houve esse consenso foi quando uma delas teve um problema pulmonar, que seria agravado pela friagem do mar.

– Em que o difere do trabalho realizado pelos homens?
Não há diferença entre o trabalho da mulher e do homem pescador. Eles contam que, na pesca embarcada, tem a parte do chumbo e da cortiça, que fazem parte da rede. O chumbo é a parte mais pesada e a cortiça é a mais leve. O trabalho é dividido por igual, quem estiver mais próximo do chumbo é quem irá puxar, seja o homem ou a mulher. Quando pedi para um dos pescadores descrever o trabalho da mulher, ele falou, como um elogio, “ela é um homem, é um animal, não falta, não reclama, tem o jeito para a pesca. É nota mil”.

– O que é ter o corpo para pesca?
É não ter enjoo no mar ou, se enjoar, conseguir controlar. Segundo elas, tem que ter força e jeito, tem que ter paixão pela pesca. Eu perguntei como é a relação com o mar e elas descreveram que é uma relação de amor, paixão e vício. Uma das pescadoras que conheci, a dona Paulina, com 70 anos, falou “eu preciso ir para o mar todos os dias, é meu vício”. Ela começou a pescar com oito anos.

– Como elas aprendem o ofício?
A maioria delas aprendeu a pescar com o pai, aos oito, dez ou doze anos de idade. Algumas começaram depois de se casar. Nesses casos, ou o marido, pescador convenceu a mulher a trabalhar com ele ou a própria mulher se sentiu atraída pela pesca. Somente um caso, o de Neneca, foi de uma filha que aprendeu a pescar com a mãe, que por sua vez aprendeu com o pai, o avô de Neneca. A forma de aprendizado mais comum é de pai para filha.

Processo etnográfico

– Na sua pesquisa, você passou vários meses com as famílias das pescadoras. Como era a sua rotina?
Geralmente eu ficava na casa da pescadora. Mas quando percebia que já estava há muito tempo na rotina delas, eu alugava uma quitinete ou um quarto em hotelzinho próximo e ficava por lá, para preservar um tempo meu e um tempo delas, para não ficar direto e invadir a privacidade, e preservar a relação.

A pesquisa foi realizada em oito cidades do litoral catarinense. Foto: Rose Mary Gerber

– Ao descrever seu processo etnográfico, você fala sobre o “exercício da sombra”. Como foi vivenciar isso?
A Etnografia é uma vivência de longa duração, muito próxima, com o sujeito que está sendo pesquisado. É algo caro para a Antropologia. Então, para dizer a elas como eu gostaria de “mergulhar” no cotidiano delas, no primeiro contato, eu explicava como ia ser a pesquisa e só conseguir “traduzir” isso dizendo que seria como uma sombra: não era só uma entrevista para depois ir embora; eu ia ficar o dia todo, todas as horas, voltar no dia seguinte; ficar dias e dias seguidos; meses. Para explicar, falei “vou ser como uma sombra”. Uma delas, inicialmente comentou após eu explicar: “mas isso não é sombra, é encosto!”.

Durante a pesquisa, aconteceu também uma espécie de “desdobramento’ da sombra. Nos primeiros dias elas me poupavam. No segundo, me botavam para trabalhar, puxar embarcação, lixar embarcação, empacotar peixe. No começo, depois de um dia de trabalho intenso, eu sentia dores pelo corpo todo. Nosso corpo citadino não está preparado para a vida delas. Mas para mim era uma experiência importante: como saber como aquelas pessoas viviam se eu não vivesse a vida delas? Percebi que elas e suas famílias me aceitaram bem e rapidamente me colocavam na prática. Minha mão de obra estava sendo aproveitada para agilizar e adiantar o trabalho. É uma vida que exige rapidez, em tudo. Até mesmo quando acontece alguma coisa triste, as pessoas não ficam muito tempo lamuriando. Elas são impositivas, poderíamos dizer que neste sentido, elas são heroínas da própria vida.

– Nesta pesquisa você teve que enfrentar desafios pessoais? Por exemplo, sentiu enjoos quando teve que embarcar?
Na Epagri, onde trabalho desde 1986, já tive várias experiências no mar, pois trabalhei com comunidades de pescadores. Em alguns momentos meu colega e eu saíamos para coletar amostras para medir a sanidade da água do mar. Então, não tenho problema com enjoo. Mas algo que foi bem difícil foi o controle da bexiga. Eu sabia que eram embarcações pequenas, de três a nove metros, que não têm cabines, nem banheiros. Sabia também que ia ser difícil fazer xixi na frente de todos, da pescadora e do seu marido. Então, minha estratégia foi não tomar líquido antes de sair. Só no final da pesquisa é que eu conheci uma pescadora que tinha inventado um jeito de fazer xixi, adaptando uma calça jeans e um penico feito com garrafa pet [esta invenção é mostrada no documentário e a própria inventora pediu para ensinar para as outras]. Outro desafio era a pesca na madrugada. Muitas pescadoras de camarão saem às duas da manhã, quando está muito escuro. Eu me angustiava em sair nesse horário, pois não dá para ver o mar nem saber direito onde se está. Então eu saía com as pescadoras por volta de 5h da manhã, quando sabia que dentro de uma hora já teria a luminosidade do dia.

Atividade econômica

– Das três atividades da pesca, existe alguma que tenha mais status, que seja mais valorizada do que outra?
Pude observar que as pescadoras embarcadas têm mais status. Você percebe isso porque elas são admiradas, por pescadores e por pescadoras que trabalham em terra, pelo que denominam como a coragem de sair para o mar. Para as que trabalham em terra também existe mais dificuldade no processo de reconhecimento. É como se o trabalho na pesca fosse uma extensão do trabalho doméstico.

– Na sua tese você acaba propondo uma redefinição do conceito de pescador e de pesca?
Sim, pois pescador é definido, por exemplo, nos dicionários de língua portuguesa, como um “substantivo masculino singular” e o significado de pesca é “retirar os produtos do mar, de lagoas, de rios”. Busquei, com a tese, mostrar que existem pescadoras mulheres e também que todo o processo de retirar, limpar, eviscerar, transformar e vender, tudo isso é a pesca. É a extração de produtos do mar, da lagoa, do rio, até a preparação para a comercialização.

A existência das pescadoras não é reconhecida pelo INSS e nem pelo Ministério da Pesca. Foto: Rose Mary Gerber

– Quais os direitos a que as pescadoras não têm acesso?
Quando fui com uma delas a um posto do INSS, para ver a questão da aposentadoria, o atendente não considerou que ela fosse pescadora. Ele solicitou-lhe que mostrasse os documentos do marido pescador, para então responder que ela teria direito a se aposentar por ser esposa de pescador e não por ser ela própria pescadora. Então, o que acontece se o marido não é pescador, e sim um professor? Ou se ela não tiver marido? Ela não terá ou terá dificuldade de acesso a esse direito, pois não é considerada uma pescadora.

– Você percorreu quais cidades?
Foram oito cidades: Laguna, Florianópolis, Governador Celso Ramos, Balneário Camboriu, Barra do Sul, Araquari, São Francisco do Sul e Itapoá.

– Como você chegou às pescadoras?
Inicialmente, fui à Federação de Pescadores de Santa Catarina, e o presidente sabia de uma pescadora em Itapoá a partir de uma notícia de jornal de alguns anos atrás. Em Governador Celso Ramos eu já conhecia uma pescadora, a dona Naca, da época da pesquisa do mestrado. Por outro lado, enviei um e-mail para meus colegas da Epagri e obtive algumas respostas. Fui seguindo pistas; fui aos lugares indicados, conforme o meu cronograma de pesquisa permitiu. Acabei a pesquisa com 22 pescadoras que embarcam, mas existem outras.

– Existe uma articulação entre as mulheres pescadoras dos diferentes locais?
Não, elas não se conhecem pessoalmente. Duas eu consegui apresentar, uma de São Francisco do Sul, a Mãezinha, e outra de Barra do Sul, a Neneca. Tornaram-se amigas. Uma visita a outra. Todas puderam ver as fotos e vídeos que eu ia fazendo durante a pesquisa e ia lhes. Foi uma maneira de elas se conhecerem.

– Elas participam de sindicato?
Elas se filiam nos sindicatos de pesca ou nas colônias de pescadores.

– Existe diferença de renda entre homens e mulheres na pesca?
A maioria das pescadoras atuava com seus maridos. Nesses casos, a renda é da família, não existe separação do dinheiro dele e do dinheiro dela. O trabalho entre casal representa uma economia de renda, pois, quando a mulher trabalha como camarada do marido, não há saída de dinheiro. Quando é preciso pagar um camarada de fora, aí existe este custo a mais. Uma das pescadoras que pesquisei trabalhava com o irmão e mais três camaradas. Nesse caso, a renda era dividida em duas partes, metade da embarcação e da rede, e a outra metade subdividida em partes iguais para a tripulação. Então, não existe pagamento diferente por ser mulher.

– Você vê algum paralelo desta realidade com o que acontece com mulheres de outros lugares ou que trabalham em outras profissões?
Em 2011, estive em Portugal por seis meses, com apoio de uma bolsa de doutorado sanduíche pela Capes. O propósito era investigar se, para além da relação de grandes navegações entre Brasil e Portugal, existia alguma relação entre a pesca nos dois países. Em algumas das ilhas de Açores e na cidade de Póvoa de Santa Iria, próximo a Lisboa – ao contrário de Póvoa de Varzim, norte do país, onde as mulheres trabalham apenas na venda dos pescados – encontrei várias pescadoras embarcadas que, a exemplo de Santa Catarina,  atuavam com seus maridos. Descobri também que a própria academia portuguesa e o equivalente ao Ministério da Pesca de Portugal desconheciam a existência dessas trabalhadoras, o que foi confirmado por um sindicalista das pescas que entrevistei. Na ocasião, o sindicato e a associação UMAR-Açores lutavam pelo direito das mulheres pescadoras. Comparando com as brasileiras, a situação das pescadoras portuguesas era diferente no sentido de que elas não precisam ser casadas ou ser filhas de pescadores para ser reconhecida como pescadora. Elas contribuem da mesma forma que outras trabalhadoras. Por outro lado, tanto lá quanto aqui, trata-se de jornadas de trabalho pesado e penoso e de populações invisibilizadas política e socialmente.

Agora, se a gente for comparar as pescadoras brasileiras com outras profissionais, hoje vemos um avanço bastante significativo das mulheres no mercado de trabalho em espaços até então considerados “masculinos”, como a presença nas oficinas de carro, na construção civil, na pintura de residências. Um paralelo que pode ser feito é com as mulheres agricultoras, que há poucos anos enfrentavam esse mesmo problema e que já avançaram muito no reconhecido de seu trabalho. Nesse sentido, as mulheres pescadoras ainda têm muito a conquistar. Já ocorreram encontros nacionais, eventos em Brasília, inscrições em colônias e sindicatos, mas a mobilização entre elas ainda é incipiente; falta articulação e um trabalho contínuo.


Sobre a pesquisa

:: Tese de doutorado: “Mulheres e o Mar: Uma etnografia sobre pescadoras embarcadas na pesca artesanal no Litoral de Santa Catarina, Brasil”

:: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

:: Autora: Rose Mary Gerber (Currículo Lattes).

:: Breve biografia: Rose Mary Gerber é antropóloga, com mestrado (1997) e doutorado (2013) em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC). É analista técnico da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri).

:: Mais informações: romagerber@gmail.com


Laura Tuyama / Jornalista da Agecom / UFSC
laura.tuyama@ufsc.br 

Fotos: Rose Mary Gerber

 

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