UFSC desenvolve projeto inédito no país de moradia estudantil indígena
A convivência em comunidade, a conexão com a natureza e o protagonismo do fogo são centrais na vida dos povos originários. Por isso, essas características foram fundamentais para o desenvolvimento de um projeto de Moradia Estudantil Indígena (MEI) elaborado pelo Laboratório de Projetos do departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (LabProj/UFSC), em um processo participativo que iniciou em 2017. Liderados pelo professor Ricardo Socas Wiese, membros do Labproj se reuniram periodicamente com estudantes indígenas para projetar o que provavelmente será a primeira moradia universitária no Brasil cujo projeto arquitetônico respeita as particularidades culturais das diversas etnias que frequentam o campus.
Em artigo publicado no periódico “Arquitecturas del Sur”, em 2021, pesquisadores do LabProj escreveram: “Objetiva-se, com a proposta, o projeto de uma edificação capaz de criar condições para que seus hábitos, seus rituais e seu modo de viver não sejam interrompidos durante a vida universitária, longe de suas comunidades e seus familiares. A Moradia Estudantil e outros equipamentos complementares devem ser implantados em locais integrados com o campus e que permitam o fortalecimento e a valorização da presença indígena, bem como representarem um marco para a integração com o espaço urbano e a sociedade envolvente.”
O projeto
Projetos arquitetônicos de moradia estudantil já eram tema de pesquisa do professor Ricardo desde antes do seu ingresso na UFSC, em 2017. Portanto, em seu primeiro ano na universidade, essa demanda dos estudantes indígenas lhe foi apresentada pelo professor Marcelo Tragtenberg, da então Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidade (SAAD). Ricardo demonstrou grande interesse e prontamente elaborou um projeto de extensão e outro de pesquisa com a equipe de alunos e professores do LabProj. “Mas logo vi que desenvolver esse projeto não seria algo simples. Não poderíamos projetar uma moradia estudantil comum. Precisávamos entender quem são os estudantes indígenas e suas especificidades. Era bem mais complexo do que uma temática convencional. Quanto mais entrávamos no tema, mais percebíamos que não conhecíamos nada sobre a cultura indígena.”
Um dos desafios da equipe do Labproj era o fato de ainda não existir, no Brasil, um modelo de moradia estudantil indígena com os pressupostos que teria a da UFSC. “A UFSC é pioneira em relação a projetos de moradia indígena. O que pouquíssimas universidades têm feito é adaptar espaços para os estudantes indígenas, mas geralmente dentro de um conceito bastante ultrapassado de moradia estudantil, que é meramente assistencialista, ‘um lugar para dormir’. Isso vai contra uma ideia muito mais ampla, que envolve todas as questões de permanência na universidade, e a moradia como um espaço de formação cidadã”, relata o professor.
Nesse sentido, um dos principais instrumentos de suporte à elaboração do projeto arquitetônico foi a interação entre projetistas e comunidade indígena, dentro e fora da universidade, com incursões de membros da equipe do laboratório às aldeias. Uma das atividades realizadas, por exemplo, foi a construção de uma Opy (casa de reza) na aldeia Guarani Yaka-Porã, no Morro dos Cavalos, em Palhoça (SC). Outra atividade foi a oficina de grafismo, em 2019, quando indígenas compartilharam seus saberes com a comunidade acadêmica, por meio da oralidade. O resultado dessa vivência foi a pintura dos grafismos indígenas no edifício do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFSC. “Para eles, esse momento foi um divisor de águas: pela primeira vez, puderam pintar o grafismo na instituição onde estudam. O grafismo está muito relacionado à identidade de cada etnia, à cosmologia, às relações familiares. É uma linguagem complexa e cheia de simbolismos”, relata o professor.
Esse processo de aproximação e familiarização com a multiculturalidade dos estudantes indígenas foi longo e intenso. “Passamos um ano inteiro pesquisando. Desenvolvemos, em um processo participativo, o conceito de moradia estudantil indígena. Antes, nem tínhamos ideia do que seria isso. Como esse espaço seria identificado pelos estudantes como um espaço indígena? Ao mesmo tempo, tinha a complexidade de também ser um espaço institucional”, explica Ricardo. O professor afirma que um dos desafios foi conceber algo que atendesse às demandas das diferentes etnias que convivem na universidade: “Quando começamos a estudar mais sobre a cultura indígena, nós nos deparamos com uma enorme diversidade cultural: somos um país que abriga 305 povos. As relações e as diferenças culturais entre cada etnia são extremamente complexas. Naquele momento, tínhamos estudantes de 17 etnias, de diversos lugares do Brasil. Como poderíamos projetar algo para todos?”
Os estudantes indígenas da UFSC estão divididos em dois grupos: aqueles que frequentam a Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica – destinada aos indígenas do sul da Mata Atlântica, pertencentes a três etnias: Kaingang, Xokleng e Tupi-guarani –; e os alunos regulares, que entram por vestibular e frequentam diferentes cursos da UFSC – estes provenientes de todo o território nacional. Essa enorme diversidade cultural vai desde hábitos alimentares, religiosos, de convívio social, entre outros. No mesmo artigo publicado em 2021, os autores escreveram: “Os estudantes indígenas enfrentam inúmeros desafios para garantirem condições mínimas de permanência e conseguirem concluir seus estudos. Habituados a viver próximos de seus familiares, com uma vida comunitária, contam que a saudade de casa e dos parentes é uma das causas de sua não permanência. […] Este contexto indica o quanto é necessário um tratamento específico […]. É essencial que se aprimorem as políticas de acolhimento e permanência, tanto nas esferas pedagógicas quanto de infraestrutura.”
A execução
De acordo com a arquiteta e urbanista Fabrícia de Oliveira Grando, diretora do Departamento de Projetos de Arquitetura e Engenharia (DPAE/UFSC), a execução do projeto está prevista para 2025. “O DPAE está organizado em três setores principais: planejamento, projeto e orçamento. Atualmente estamos na fase de planejamento, realizando um estudo de viabilidade”, explicou. Neste estudo, busca-se avaliar se é viável, por exemplo, a construção do prédio na área prevista, se existe abastecimento de água e de esgoto, como será executada a infraestrutura hidráulica e elétrica, se o projeto considera a Área de Preservação Permanente (APP) do terreno etc. “Esperamos entregar este estudo de viabilidade nos próximos meses”, afirma Fabrícia.
Segundo o diretor do Gabinete do Reitor, João Luiz Martins, há uma grande preocupação da administração da universidade com as políticas de permanência estudantil e as moradias de forma geral – sobretudo porque 50% dos estudantes são egressos de escolas públicas. É neste contexto que está inserido o projeto da moradia indígena. “Muitas pessoas na gestão estão empenhadas em ampliar o número de vagas em moradia estudantil, inclusive na busca de recursos para a construção de uma nova moradia além da que existe hoje. No caso da moradia indígena, os próprios estudantes também estão mobilizando deputados, buscando canais em Brasília, em ministérios e secretarias, para que seja possível implementar a obra”, explicou.
Atualmente, os indígenas vivem no que chamam de Ocupação Maloca, um espaço improvisado ao lado do Restaurante Universitário (RU), no campus da Trindade, em Florianópolis (SC). Eles devem permanecer no local até que seja concluído o Alojamento Estudantil Indígena – também nas imediações do RU –, cujas obras iniciaram em maio e estão previstas para terminar em dezembro deste ano. O local, que teve investimento de R$1,4 milhões provenientes de uma emenda parlamentar, terá capacidade para abrigar 60 estudantes, em 12 dormitórios compartilhados.
“Os estudantes indígenas que moram na Maloca pressionaram muito a administração da universidade, pois viviam em situação bastante precária. Com o passar do tempo, foram arrumando o espaço, fizeram algumas melhorias, mas ainda assim não há condições de permanecerem ali. O Alojamento visa proporcionar melhores condições de habitação para os indígenas até que a moradia oficial fique pronta”, contextualiza o professor Ricardo. A arquiteta Fabrícia reitera: “A situação deles na Maloca é muito precária mesmo. E uma reforma não resolveria o problema. Tecnicamente, é inviável que sigam morando ali. Por isso, a posição do DPAE é que esses estudantes sejam realocados para o Alojamento, assim que ele ficar pronto.”
Símbolo de conquista
Uma das diretrizes do projeto de moradia estudantil indígena da UFSC foi compreender a moradia não apenas como um espaço edificado, mas também em sua interação com o território e espaços externos. O terreno escolhido fica ao lado do Colégio de Aplicação (CA/UFSC), na entrada da universidade pelo bairro Carvoeira, voltado para a rua Desembargador Vítor Lima. A área tem diferentes espécies de árvores e um pequeno córrego, localizado em uma das divisas do terreno.
No centro da moradia foi projetado o “espaço do fogo”. Ao redor, estão quatro blocos, que poderão ser construídos em diferentes etapas, conforme o aporte de recursos financeiros. Além do “espaço do fogo”, estão previstas outras áreas de uso coletivo: duas cozinhas, uma sala de estudos e um centro de organização estudantil. Os quartos foram projetados com estruturas auxiliares em madeira, inspiradas em técnicas construtivas comuns dos povos originários. A ideia é que o número de estudantes por quarto seja flexível, conforme as demandas e necessidades dos grupos que ali habitarem. Ao todo, os dormitórios terão capacidade para abrigar 156 estudantes.
Brasílio Priprá Júnior, da etnia Xokleng, é estudante do curso de Arquitetura e Urbanismo e integrante do Labproj. Foi um dos indígenas que participou ativamente do projeto: “A moradia vai simbolizar uma conquista para nós. A UFSC é uma universidade muito boa, mas ainda enfrentamos aqui situações de racismo, de individualismo. Por isso estamos engajados nessa luta, tentando conquistar nosso espaço.” O estudante é um dos cerca de 40 que vivem hoje na Ocupação Maloca. “Quando vim para cá, foi muito difícil para mim me adaptar. A Maloca é um lugar fechado, sem janelas, com muito pouco ar circulando. Eu nunca tinha saído da aldeia para morar na cidade e me sentia preso, como se tivessem me colocado em uma caixinha”, reflete.
Brasílio é da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, cuja disputa por uma parte de seu território com o Governo do Estado de Santa Catarina fez o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a tese do “marco temporal” como inconstitucional. Lá, o estudante disse que vivia de forma mais livre, em contato constante com a natureza. Entre as muitas coisas das quais ele sente falta é andar descalço no mato e tomar banho de rio. “Aqui é sufocante. Na minha aldeia tem muita cachoeira, muito espaço de convívio ao ar livre.” O estudante sente que a nova moradia lhe proporcionará uma experiência bem diferente da que tem vivido até o momento. A cozinha grande é um dos pontos que destaca no projeto, já que os indígenas costumam fazer muitas coisas juntos, sendo o compartilhamento de refeições uma delas. Para ele, o “espaço do fogo” também será um diferencial: “Para nós, é muito importante nos reunirmos ao redor do fogo, seja para assar uma carne, conversar, contar histórias. É algo que remete muito à nossa cultura.”
A pró-reitora Simone Sobral Sampaio, da Pró-Reitoria de Permanência e Assuntos Estudantis (PRAE/UFSC), afirma que a permanência dos indígenas na universidade é um direito a ser garantido. “Se nós temos estudantes com um outro modo de vida – e é um modo de vida que existe há 500 anos de colonização e extermínio –, a universidade deve se constituir como lugar de direitos das pessoas indígenas, de produção e reprodução dessas existências. A moradia indígena, nesse sentido, será um território de retomada, um local onde os/as estudantes terão condições materiais e subjetivas para bem viver no campus.”
Ao mesmo tempo, segundo Simone, a presença dos indígenas no campus também agrega à comunidade acadêmica, que é interpelada a se posicionar, a se colocar como companheira e aliada na luta anticolonialista. “A universidade aprende com a presença dessas pessoas, com as ciências, os saberes e as práticas ancestrais desses povos. Nossa casa, nosso lar, também é lugar de vínculo comunitário e coletivo, de produção de visibilidade. Por isso a importância dessa moradia, fortalecendo e visibilizando essa presença na universidade. Ela será um símbolo do reconhecimento, pela universidade, da existência e resistência dos povos originários.”
Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC