Ilse Scherer-Warren: a jornada emérita da pesquisadora em movimentos sociais

14/12/2020 14:00

Em uma pequena vila chamada Portão, hoje município da Grande Porto Alegre (RS), Ilse Scherer-Warren nasceu (1944). Os pais, descendentes de alemães, criaram nove filhos: sete homens e duas mulheres. Somente dois, ela e um irmão, continuaram os estudos, algo bastante incomum para uma região agrícola e que possuía apenas uma escola primária. Adquiriu muito cedo o gosto pela leitura. Em casa tinha um armário repleto de livros e assim que aprendeu a ler, era ali que se debruçava em temas de seu interesse. Gostava também de jornal e sempre lia a segunda página do periódico O Dia, do qual o pai tinha assinatura e onde encontrava matérias relacionadas às Ciências Humanas.

Distante do que a sua cidade natal poderia lhe proporcionar e na contramão do que imaginavam para o seu futuro, Ilse apostou nos estudos para transformar sua vida. Por vontade própria, frequentou por um ano o internato, fez curso de preparação – ou, como era chamado, Artigo 99 – para suplementar o colegial (atual fundamental) e, estudando de forma autônoma, passou no exame para o ginásio (atual ensino médio). Ao mesmo tempo ingressou no curso de Secretariado na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre, que foi a sua primeira aproximação com o ambiente universitário.

Assim que saiu de Portão, morou na capital gaúcha em casas de duas famílias. Eles pagavam seus estudos e, em troca, Ilse auxiliava nas atividades domésticas. Na sequência, trabalhou no Instituto de Física da UFRGS, no período entre o final da escola secundária e a entrada na graduação.

Na escolha de qual profissão a seguir, chegou a ter dúvidas. Cientista Social ou Jornalista? Na UFRGS era o mesmo concurso para, coincidentemente, as duas áreas que Ilse mais se identificava, podendo optar ao final por uma delas. Mas não foi preciso. Por influência de seu irmão mais velho que havia lhe emprestado um manual de Sociologia, percebeu que este era o seu único caminho. Tão logo saiu a aprovação no vestibular, procurou viabilizar outro desejo, o de aprender o idioma francês. Persistiu e conseguiu uma bolsa de estudos na Aliança Francesa. Também foi aprovada em concurso público para a Secretaria do Trabalho do Rio Grande do Sul, o que lhe ajudou a custear as despesas como estudante do ensino superior.

Graduou-se em 1968, período em que o país vivia sob o golpe militar e na iminência do seu mais duro instrumento de controle da oposição – o Ato Institucional n° 5 -, em que se intensificaram os protestos em resistência ao regime, especialmente de estudantes universitários. A geração de Ilse sentiu na pele o que era ser contrária ao status quo. Em 2015, em entrevista ao sociólogo Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), para o projeto “História Audiovisual das Ciências Sociais no Brasil”, falou da sua forte ligação com o Centro Acadêmico. “Já havia alguma repressão policial e muitas vezes a gente teve que correr e se esconder da polícia”. Recordou-se de um momento no último ano do curso, quando “a Reitoria nomeou um interventor para retirar alunos que ocupavam o refeitório”. “Havia uma coordenação dos alunos e apoiados por outros, inclusive por mim, foram lá e tomaram a força” o Restaurante Universitário. “A gente passou a noite, e de madrugada veio a cavalaria e nos deu um ultimato: ou a gente saía ou eles não responderiam pela nossa integridade física”. A saída do local foi inevitável, assim como o medo de ocorrer prisões e até mesmo mortes.

Depoimento da professora Ilse para a FGV, 2015. Foto: divulgação

Imediatamente após concluir a graduação, cuja monografia tratou da Sociologia do Trabalho, Ilse ingressou no mestrado da UFRGS. Na pós-graduação optou por estudar os dois tipos de associativismo no campo, o dos proprietários de terra e o dos camponeses. Dividiu sua tese em duas partes: uma histórica, do associativismo patronal no Rio Grande do Sul, e outra empírica, sobre o surgimento do sindicalismo pelo trabalhador. Com uma bolsa de estudos fornecida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), pôde se dedicar integralmente à pesquisa. Obteve o título de mestre em 1971.

A temática dos movimentos sociais começou, a partir do mestrado, a se integrar fortemente na sua vida acadêmica. Em entrevista ao professor e sociólogo Marco Antonio Perruso, em 2007, Ilse demonstrou sua sensibilidade pelo assunto, ao assumir – a partir de seus estudos sobre o movimento camponês e o sindicalismo rural – uma “opção pelos ‘de baixo’ na desde sempre contestada hierarquia social”. Outro fator que influiu nesta trajetória foi a decisão de realizar o doutorado na Europa, em 1971, na Uníversíté de Paris X, Nanterre, sob a orientação do sociólogo francês Alain Touraine.

Desde a graduação de Ilse na UFRGS, Touraine já era um dos estudiosos dos movimentos sociais mais importantes da atualidade e o responsável por introduzir a expressão “sociedade pós-industrial”. O disputado professor, que à época redigia seu principal livro A Produção da Sociedade, publicado em 1989, conduzia seus orientandos de maneira coletiva e, para ela, este estilo de trabalhar em grupo tornou-se referência e prática comum em sua vida acadêmica.

No doutorado, decidiu dar continuidade à pesquisa sobre o sindicalismo rural, já iniciada no mestrado. Para viabilizar os estudos em Paris, obteve novamente uma bolsa de estudos pela Fapergs e, ainda, foi morar na Casa do Brasil na França. O aproveitamento do acervo de dados da pesquisa anterior a fez terminar o curso em pouco menos de três anos. “As pós-graduações na Europa são um pouquinho mais rápidas do que as nossas brasileiras”, citou. Defendeu sua tese em 1973. No seu currículo acadêmico, constam ainda dois pós-doutorados nas universidades de Londres (1987) e na de Brasília (UnB/2005) e licença sabática em São Paulo (USP) e em Minas Gerais (UFMG).

Participação de Ilsen no Simpósio Internacional “O ano de 1968 – Permanências e Mudanças”, 2008. Foto: divulgação

Ao retornar ao Brasil em 1974, estabeleceu-se no Rio de Janeiro. Ela e seu esposo se instalaram no bairro Botafogo, em um edifício ao lado da Casa de Rui Barbosa, que em muitas tardes foi o jardim de seus dois filhos mais velhos. Naquele ano lecionou como horista no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sendo a sua primeira experiência na docência. Em outro concurso, mais adiante, Ilse passou para professora adjunta da instituição.

Em entrevista ao jornalista Fabio Bianchini, em 2017, para a edição inaugural da Revista UFSC Ciência, Ilse expõe que nesses sete anos na capital fluminense, “viveu o período da abertura política e da luta pela anistia. Criou grupos de trabalho, ajudou a organizar a pós-graduação em Sociologia na UFRJ e foi a primeira coordenadora da pós e do mestrado”.

No início dos anos 80 decidiu vir para Santa Catarina, influenciada “muito mais pela questão da violência no Rio”. Por meio de contato do professor e antropólogo Silvo Coelho dos Santos (in memoriam), que iniciava um grupo de pesquisa interdisciplinar, foi colocada à disposição por dois anos na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). No seu primeiro projeto tratou da situação dos desabrigados nas construções de barragens. Com o concurso para professora titular, em 1983, foi possível fazer a transição definitiva para a capital Florianópolis, onde nasceu o seu terceiro filho.

Foi na década de 80 que “emergiram discussões sobre a redemocratização, ao mesmo tempo que se iniciou a redefinição das relações estabelecidas entre o Estado e a sociedade civil, em um momento marcado pela criação de novos partidos e pelo surgimento de grupos organizados e de novas ondas de protestos, a exemplo do movimento das ‘Diretas Já’, que lutou pelo retorno da democracia representativa ao país. Em suma, o processo de redemocratização evidenciou múltiplas e distintas possibilidades de participação e contestação pelos cidadãos”. Este panorama traçado pelos pesquisadores Aline Guizardi Delesposte e Éder Rodrigo Gimenes impulsionou para, também em 1983, a fundação do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais (NPMS) do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (PPGSP) da UFSC, por parte de Ilse e de seus alunos a partir de uma disciplina ministrada no programa.

O Núcleo, cuja trajetória está intimamente entrelaçada com o da professora Ilse, tornou-se referência central no debate teórico e na produção de conhecimento no campo das ações coletivas e movimentos sociais. Além de contribuir com a formação de recursos humanos, atua indiretamente para a consolidação de iniciativas do gênero em outras universidades. Também promove cursos, palestras, mesas-redondas e seminários nacionais e internacionais, e possui uma produção acadêmica que, segundo dados de sua página institucional, somam 46 livros, 69 capítulos de livros, 54 artigos e 113 dissertações e teses.

Livro de 1987

A produção intelectual, que tem marcado o campo de estudos sobre os movimentos sociais no Brasil e na América Latina, carrega o seu nome. Em números aproximados é autora de 30 livros, 70 artigos em periódicos, 50 capítulos de livros e 40 apresentações em eventos científicos. Em um breve relato dessa construção, destaque para o texto O Caráter dos Novos Movimentos Sociais (1984) – apresentado no 7º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) – considerado peça fundamental para o estabelecimento desta denominação, que abordava ainda o feminismo e o ecológico. O escrito foi incluído no livro Uma Revolução no Cotidiano? Novos Movimentos Sociais na América do Sul (1987), organizado por Ilse em parceria com o professor Paulo Jose Krischke, em que foi observado o surgimento de um novo formato de associação e de representação nos grupos de periferia de Florianópolis.

Com a obra Movimentos Sociais: um ensaio de interpretação sociológica (1989), Ilse marcou o início de um processo de renovação teórica no campo acadêmico e a emergência de novos atores e formas de organização social, como os movimentos de mulheres agricultoras, ambientalista, feminista, entre outros.

Outro exemplo de renovação nesse campo de estudos é apresentado no seu livro Redes de Movimentos Sociais (1996). Se até então os movimentos sociais eram vistos, a partir de sua identidade e organização internas, a nova abordagem passou a enxergá-los pela perspectiva das articulações e relações sociais. Já a publicação Cidadania sem fronteiras: ações coletivas na era da globalização (1999) e o artigo multiautoral Movimentos sociais e redes: reflexões a partir do pensamento de Ilse Scherer-Warren (2012), da revista Serviço Social e Sociedade, refletiram o alcance de sua produção em diferentes áreas do conhecimento.

Livro de 2016

O mais recente livro, fruto de sua intensa participação no processo de implantação da política de cotas da UFSC, intitula-se Ações Afirmativas na Universidade – abrindo novos caminhos (2016). Em resenha, o jornalista Artêmio Reinaldo de Souza escreveu que “nesta obra, cada um dos autores apresenta questões distintas, mas a conclusão deles é unânime: as ações afirmativas se constituem em instrumento fundamental para a democratização do acesso à universidade e para enfrentar o racismo”. A obra foi organizada juntamente com a professora Joana Célia dos Passos.

Pela amplitude de sua obra, a cientista recebeu o Prêmio Florestan Fernandes – um reconhecimento à atuação de profissionais que contribuíram para o progresso da Sociologia no Brasil -, na UFRGS, em 2015. Nesse ano, em um trecho lido em sua homenagem, foram destacadas três dimensões de seu legado: em primeiro lugar, seu papel na renovação teórica – a influência e o diálogo que mantém com a produção internacional refletem positivamente no âmbito nacional; em segundo, seu comprometimento e engajamento com as questões que envolvem a sociedade – movida por um desejo de transformação, Ilse nunca retrocedeu na luta pela promoção da justiça social; e, por último, a sua postura pautada no debate, na amizade e no respeito à pluralidade. Humildade e generosidade, em especial, são duas características que lhe são atribuídas, de forma unânime, por colegas de trabalho, alunos de graduação e pós, e egressos.

Ilse trabalhou até pouco antes da data de sua aposentadoria compulsória, em janeiro de 2014, quando completou 70 anos. Mesmo assim e de forma não mais tão intensa, continuou se envolvendo em atividades acadêmicas da Universidade. Por esta incansável jornada, em mais uma oportunidade será homenageada e desta vez será no aniversário de 60 anos da UFSC, em 18 de dezembro de 2020. Na ocasião será concedido o título de Professora Emérita, “pelos altos méritos profissionais ou por relevantes serviços prestados à Instituição”. Em sessão especial no dia 10 de março deste ano, o Conselho Universitário tomou esta decisão, de incluir a cientista social neste seleto grupo de mulheres e homens notáveis da academia brasileira.

 

Rosiani Bion de Almeida/Agecom/UFSC

 

Referências

SCHERER-WARREN, Ilse. Depoimento, 2015. Rio de Janeiro, CPDOC/Fundação Getúlio Vargas (FGV), (1h40min). Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/cientistassociais/ilsescherer. Acesso em: 30/11/2020.

Texto em Homenagem à profa. Ilse Scherer-Warren, lido durante a entrega do prêmio Florestan Fernandes, durante o 17º Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), em Porto Alegre, 2015. Disponível em: https://ppgsp.posgrad.ufsc.br/2015/07/23/professora-ilse-scherer-warren-ppgsp-recebe-premio-florestan-fernandes-da-sociedade-brasileira-de-sociologia. Acesso em: 02/12/2020.

SOUZA. Artêmio Reinaldo de. Reflexões sobre novos caminhos para as ações afirmativas, 2016. Disponível em: https://editora.ufsc.br/tag/ufsc. Acesso em: 02/12/2020.

SCHERER-WARREN, I; LÜCHMANN, L.H.H. (Orgs) Movimentos sociais e engajamento político: trajetórias e tendências analíticas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015.

BIANCHINI, Fábio. Ilse Scherer-Warren: 40 anos dedicados a pesquisas sobre movimentos sociais, 2017. Disponível em: https://ciencia.ufsc.br/2015/12/11/ilse-scherer-warren/. Acesso em: 03/12/2020.

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