Extrema direita, fascismo e crise democrática foram temas de debate em palestra na UFSC

23/11/2018 16:53

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Há cerca de dois anos a professora Esther Solano, do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pesquisa o avanço da extrema direita e do conservadorismo na política brasileira e mundial. A partir de entrevistas em profundidade com eleitores de Bolsonaro no centro e, sobretudo, periferias de São Paulo, a pesquisadora tenta entender por que tantas pessoas decidiram apoiar um candidato de extrema direita. “É uma proposta acadêmica, intelectual, mas é também uma proposta de chamar a atenção da academia, que durante muito tempo ficou enclausurada, fechada e centrada em si mesma. É nosso dever estar na sociedade, escutar e entender a sociedade. É preciso humildade na escuta. As pessoas estão falando, estão gritando, mas ainda nos falta ouvir”, explicou a docente no início da palestra que ministrou na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o título “A crise da democracia e os extremismos de direita”. O evento, que ocorreu no dia 19 de novembro, foi promovido pelo Centro Acadêmico de Relações Internacionais (CARI/UFSC), com apoio do departamento de Relações Internacionais e do Centro Socioeconômico (CSE).

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

“Quais as razões dessa onda de extrema direita que vemos no mundo? Obviamente não é um fenômeno de caráter regional ou nacional, é um fenômeno de caráter global. Estamos diante de um fato sociopolítico novo, que é essa ‘nova direita’, essa ‘extrema direita’, ou mesmo um ‘fascismo democrático’. De fato, há um discurso de fascistização da vida cotidiana, de aniquilação do outro. E isso não se apresenta como ruptura política, mas sim como possibilidades dentro do campo democrático. Existe uma certa fascistização institucional da política.” Essa onda de extrema direita mundial, segundo a pesquisadora, tem um caráter populista e nacionalista, e surge como resposta e esperança para muita gente. Nas entrevistas que fez com eleitores de Bolsonaro, a palavra que mais se repetia era “esperança”: “Bolsonaro projeta uma ideia de mudança, de possibilidade de algo novo. Trump, quando foi eleito, também era uma possibilidade de mudança, de esperança. Nosso desafio é entender como chegamos a isso. Por que essa onda global de extrema direita representa uma esperança para muita gente?”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Esther abordou o conceito de “pós-democracia”, que é a ideia de que estamos vivendo em um sistema formalmente democrático, com uma morfologia democrática, mas que seria na verdade um “fascismo democrático”. “Temos eleições, temos representantes, mas é uma democracia minimalista, eleitoral. Vivemos basicamente uma ‘aparência democrática’. Pelas aparências, tudo tem objetivamente uma forma democrática. Mas essa democracia está totalmente capturada pela racionalidade neoliberal. O neoliberalismo passou a ser o organizador das relações sociais a nível planetário. A racionalidade neoliberal organiza não só as relações produtivas e econômicas, mas os indivíduos como eles são. Cada um de nós se define no papel que tem nessa estrutura neoliberal. O neoliberalismo, portanto, é o grande definidor universal. E a democracia, um mero acessório.”

A partir dessa perspectiva de que o centro nevrálgico organizador das sociedades é o sistema neoliberal, a democracia, como “acessório”,  torna-se dispensável. “A democracia se tornou um impedimento, um bloqueio para um sistema que é cada vez mais predatório, que joga milhões de pessoas na vulnerabilidade, no desemprego, nos empregos precários, na descartabilidade. A democracia e a ordem neoliberal são dois conceitos absolutamente contraditórios. Por isso estamos presenciando um processo desdemocratizante. O que é a democracia? Em uma definição política clássica, é basicamente a possibilidade de construção de um presente e futuro conjunto, coletivo. É a ideia de que a ordem política se constrói com base em direitos e não em privilégios. É a ideia de que o conflito é possível entre todos. Na democracia não há ‘adversários’ políticos, pois todos nós podemos existir. Não temos que aniquilar o outro, seja física ou metaforicamente.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Já o neoliberalismo, em sua fase mais selvagem, mais predatória, tem exatamente a dinâmica e a filosofia oposta. “Ele provoca uma polarização extrema do mundo, uma concentração de riqueza brutal na mão de alguns, instaura uma dinâmica de violência, de exclusão, porque nem todo mundo cabe nessa lógica neoliberal. Existem corpos ‘matáveis’, ‘aniquiláveis’. A lógica neoliberal é a lógica do inimigo. E a lógica do inimigo é profundamente antidemocrática, uma vez que o inimigo é aquele que deve ser aniquilado. Temos, portanto, duas formas filosóficas e sociopolíticas totalmente excludentes uma da outra. Como essa filosofia neoliberal se tornou centralizadora das relações sociais, isso faz com que a democracia seja um obstáculo para o desenvolvimento neoliberal. Portanto, estamos passando por um processo claramente desdemocratizante, mas em sua forma institucional. As instituições são as que produzem esse processo desdemocratizante.”

Outro problema que a política atual enfrenta, segundo Esther, é o da representação. Partidos tradicionalmente de esquerda se institucionalizaram e se transformaram em partidos burocráticos, administrativos. “Eles muitas vezes se esqueceram da política como luta, como tentativa de entender nosso lugar e nosso papel no mundo. Ficaram só na política do dia-a-dia, do cotidiano, da negociação. Então como essa extrema direita chega ao poder? Com um discurso de outsider, anti-sistema, anti-mainstream. É um discurso rupturista de renovação. Não é à toa que Bolsonaro não só ganhou a eleição, como levou consigo 52 deputados do PSL, além os governadores dos estados mais importantes do país.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

A vitória de Bolsonaro representou, para a pesquisadora, uma negação da política tradicional, uma onda “antipartidarista”: “Quando falamos de crise de representatividade, são duas as grandes figuras dessa crise: o político tradicional e o partido. Os partidos se reduziram a uma mera máquina burocrática, autocentrada, por isso as pessoas perderam o vínculo emocional com a política, que é fundamentalmente afetiva. Quando a extrema direita explora e provoca esse vínculo emocional, ela oferece de fato respostas, esperanças.” Uma das perguntas que Esther fez aos seus entrevistados foi: “Quando você escuta falar em política, qual o sentimento que tem?” Vergonha, asco, nojo, tristeza, desesperança foram algumas das respostas que ouviu. “Eram sempre afetos brutais e negativos. Se a política é uma construção coletiva, quando você a rejeita, você está rejeitando a possibilidade de convívio. Logo, impõe-se a lógica do hiperindividualismo, do self-made man.”

Essa degradação da política, no Brasil, foi muito potencializada pela Operação Lava Jato. “O que eu denomino de ‘lavajatismo’ é basicamente um modelo espetacularizado de lutar contra a corrupção. Temos uma operação que é altamente teatralizada, que se utiliza de um processo de manipulação da opinião pública e da imprensa, com a participação de juízes ‘popstar’. Temos a politização da justiça e a judicialização da política e, no final das contas, o que temos é a criminalização da política a partir da disseminação contínua da ideia de que ‘a política é corrupta’. A operação aparece todo dia na imprensa, de forma espetacularizada. Então, só o que chega à opinião pública é a ideia de que a política é altamente corrupta. Nesse contexto, a ideia de ‘combate à corrupção’ pode se tornar um problema enorme.

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC

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