Vladimir Safatle na UFSC: ‘A ditadura militar no Brasil nunca terminou, nunca foi vencida’

16/03/2018 12:22

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

“Como chegamos até aqui? E o que significa exatamente o ‘aqui’?”, perguntou-se o filósofo e professor universitário Vladimir Safatle no início de sua palestra, apontando o “caráter completamente singular do momento histórico atual”. Segundo ele, “o Brasil nunca conheceu nada parecido em nenhum outro período de sua história. Não há nenhum momento que seja minimamente similar ao que ocorre agora. Vivemos um momento de profundo esgotamento.” O evento, que ocorreu na quarta-feira, 14 de março, no Centro de Cultura e Eventos, foi promovido pelo Centros Acadêmicos Livres de Psicologia (CALPsi) e de Filosofia (CAFIL) da Universidade Federal de Santa Catarina, com apoio da Secretaria de Cultura e Arte (SeCArte/UFSC).

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Vladimir Safatle é docente do departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Com o título “Brasil: entre o esgotamento do populismo e a reinstauração institucional”, sua palestra propôs uma reflexão sobre o cenário político brasileiro a partir de um olhar para o passado recente: “O Brasil já conheceu o esgotamento de ciclos históricos: na passagem da República Velha para o Estado Novo; na democratização de 1945; no fim da ditadura militar em 1985. Mas em todos esses momentos havia uma grande energia de transformação acumulada, que podia instaurar um novo ciclo no Brasil. Isso não ocorre agora. Vivemos o esgotamento de um ciclo histórico sem um novo horizonte se delineando. O que não significa que não exista no país uma profunda energia de transformação. Muitos falam de uma certa apatia da sociedade brasileira, mas isso não condiz com os fatos. Nos últimos dois anos, vimos manifestações constantes em várias capitais do país.”

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A greve geral de 2017, que mobilizou 35 milhões de trabalhadores, foi, segundo o filósofo, um grande acontecimento, uma vez que há 30 anos isso não ocorria no Brasil: “Isso não é um fato anódino em nenhum lugar do mundo. Só para a imprensa brasileira, que funciona com um princípio de realidade muito peculiar. Houve manifestações contínuas, muitas delas extremamente espontâneas, que só cessaram quando o aparato policial do governo começou literalmente a atirar em manifestantes. Ou seja: no momento em que a violência estatal, que já é em grau extremamente elevado na sociedade brasileira, subiu para o espaço.” Vladimir não concorda, portanto, que estejamos em um momento de paralisia social: “Nosso problema é de outra natureza. Basta vermos a quantidade de manifestações ligadas a tantos movimentos sociais com pautas próprias – feminismo; movimento LGBT; movimento negro etc – para constatarmos que a sociedade brasileira se encontra em estado de ebulição.” Mas essa ebulição, ele observa, não está conseguindo produzir um corpo político por vir. “E isso é um fato novo. As mobilizações contínuas não conseguem convergir em um ponto no qual um corpo político possa emergir.”

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“Como chegamos a esse ponto?”, perguntou novamente, afirmando em seguida que isso se deve a “um triplo esgotamento”: “O esgotamento do ciclo histórico; do modelo de desenvolvimento econômico e social; e da esquerda brasileira. Os três são dramáticos. E o mais dramático é o último.” Vladimir compreende que o ciclo histórico que se esgota agora é o da Nova República: “Ou seja, o ciclo dessa redemocratização que começou em 1984-1985 e nunca terminou. O Brasil conseguiu criar uma transição democrática que nunca termina. Vivemos um processo de redemocratização infinito, que nunca conseguiu estabelecer uma democracia. O projeto de constituição de uma democracia a partir de 1985 foi o maior de todos os fracassos da República brasileira. E não há nenhum país na América Latina que passe hoje por uma instabilidade democrática como o Brasil. Não há nenhum país que tenha manifestações a favor de um golpe militar. Não há nenhum país que tenha um candidato a presidente que está em primeiro lugar nas pesquisas – se considerarmos que Lula não irá concorrer – que seja abertamente fascista. Nenhum país da América Latina está em situação tão frágil quanto a nossa. E isso não se constitui do dia para a noite. Essa é a prova maior de que a ditadura militar no Brasil nunca terminou, nunca foi vencida.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Vladimir ressaltou o fato de que o fim da ditadura brasileira foi feito por meio de uma conciliação, um acordo pelo qual o novo governo seria composto por um núcleo de políticos da ditadura e um outro da oposição: “É um modelo no qual aqueles que fizeram parte da ditadura nunca saíram do governo, nunca foram afastados; as próprias forças armadas nunca foram obrigadas a fazer sequer uma mea culpa pública. É sempre bom lembrar: de todas as ditaduras do Cone Sul a única que nunca colocou na cadeia um torturador foi a ditadura brasileira. Não por outra razão, o Brasil é o único país da América Latina no qual, segundo estudos, os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura militar. Claramente, em bom português: tortura-se hoje no Brasil mais do que torturava-se na ditadura militar. Por que? Porque as polícias militares continuam com seu mesmo modus operandi. Porque a aberração da existência de uma polícia militar nunca foi colocada em questão.”

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Vladimir explicou que são raros os países em que existem polícias militares: “E quando existem, elas são responsáveis pelo policiamento de fronteiras e quartéis. Nós somos um dos raríssimos países do mundo onde a polícia militar policia áreas urbanas. E faz isso com a sua lógica militar, que hoje vemos muito claramente qual é através da intervenção militar no Rio de Janeiro. Então eu insistiria: tudo isso demonstra que nós não conseguimos superar o espectro da ditadura militar no interior da vida social brasileira. A constituição de 1988, por exemplo, que é tida como uma constituição cidadã, legaliza o golpe de estado. Tem um artigo, que é citado todas as vezes em que os generais aparecem na imprensa, que afirma que as forças armadas são responsáveis e garantidoras da lei e da ordem. Isso é completamente absurdo! Em princípio, as forças armadas são o corpo militar cuja função é a segurança em relação ao inimigo externo, quando ele existe. Não garantidora de lei e de ordem. Mas no Brasil elas são garantidoras da lei e da ordem e podem ser chamadas por qualquer governo. Isso é completamente legal.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

A própria Constituição, portanto, avaliza a violência estatal: “Todos os parágrafos de segurança nacional da Constituição de 1988 são cópias da Constituição de 1966. Ou seja: o ideário da segurança nacional permaneceu. E não por outra razão nós chegamos a uma situação como essa. O horizonte de conciliação posto pela República foi a entronização de um sistema de inércia e de paralisia na história brasileira. Esse horizonte conciliatório foi repetido inúmeras vezes, em todos os governos. Boa parte dos operadores e negociadores fundamentais de todos os governos eram da ditadura militar. Isso foi criando na sociedade brasileira a consciência tácita de que as negociações parlamentares e o funcionamento da democracia é falho, não tem força, não tem capacidade de intervenção.”

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Para o filósofo, permanecemos, assim, inevitavelmente atrelados ao período ditatorial: “Não há país que consiga avançar sem acertar as contas com seu passado, com as violências do seu passado. Governar o Brasil é, portanto, gerir uma forma de violência. Uma forma de violência que coloca em invisibilidade amplos setores da sociedade. Que coloca em extrema precariedade e vulnerabilidade setores amplos da população. Que instaura um regime de violência que é repetido no interior da vida social. O sistema de violência do Estado contra a sociedade é repetido no interior da própria sociedade. A Nova República terminou. Mas terminou em 2013. Depois disso, nenhum pacto mais era possível. E uma das grandes falhas da esquerda brasileira foi não entender que a partir daquele momento não havia mais acordo. Que o modelo de governabilidade que existia até então, deixaria de existir. O que nós vemos atualmente é um modelo de governabilidade que é muito mais um modelo de Guerra Civil, de incitação, de uso extremo e cada vez mais explícito, não só da força para conter revoltas populares, mas de uma explicitação dos mecanismos de degradação institucional.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Após a palestra, houve o lançamento do livro “Só mais um esforço” e sessão de autógrafos. Conforme consta no site da editora, a obra “demonstra como o lulismo foi o último momento do ‘grande modelo de conciliação’ da esquerda com a democracia liberal. Para alcançar e manter o poder, os líderes outrora radicais optaram por recuperar uma das maiores fantasias nacionais: a da aliança das classes por meio do crescimento e do progresso. Foi assim que o conformismo tomou o lugar do conflito, e a reforma, o da transformação. A análise de Safatle desemboca nesse ‘território em desagregação’ que é o Brasil atual, quando o medo paralisa a ação política e um novo desafio se coloca: refundar urgentemente a esquerda”. Um trecho do livro está disponível aqui.

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC

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