Exposição Ticuna em Dois Tempos prossegue no Museu de Arqueologia e Etnologia

16/07/2012 07:37

O Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral (MArquE) apresenta pela primeira vez ao público a coleção com 53 objetos recolhidos entre os Ticuna e os registros de campo, compostos por 135 diapositivos (slides) e dois diários produzidos pelo antropólogo catarinense Sílvio Coelho dos Santos no coração da selva amazônica. A visitação prossegue até 25 de outubro, de segunda a sexta-feira, das 10h às 17h (fechado terças).

A mostra traz o resultado de duas histórias de amor e homenagem a mais numerosa nação indígena do país. De um lado, o olhar do historiador e antropólogo catarinense Sílvio Coelho dos Santos, que reuniu sua coleção quando participou de expedição à Amazônia do Curso de Especialização em Antropologia do Museu Nacional, na década de 1960. De outro, o olhar estético do artista plástico Jair Jacmont, que formou sua coleção na década de 1970, adquirindo os objetos dos próprios índios, na cidade de Manaus.

Exibidas pela primeira vez ao público, as duas coleções juntas assombram e fascinam pela beleza e expressividade. A exposição conjunta é um projeto alimentado há longa data pelas duas instituições de extremos opostos do Brasil, com o objetivo de promover o diálogo entre esses dois reveladores olhares para a mesma cultura, explica a diretora do MArquE Teresa Fossari.

Integram o conjunto de Sílvio Coelho 53 objetos e  registros de campo, compostos por 135 diapositivos (slides) e dois diários produzidos pelo antropólogo catarinense no coração da selva amazônica. São adornos pessoais, cerâmicas, cestos e utensílios domésticos, bonecas esculpidas em madeira, estatuetas em madeira de macaco prego, esculturas antropozoomorfas, mantas, remos, indumentárias completas, brinquedos infantis, um tambor e principalmente bastões cerimoniais, máscaras e outros objetos ritualísticos utilizados na Festa da Moça Nova, além de slides ampliados de figuras humanas e paisagens.

Artista plástico amazonense que se inspira nos Ticuna para produzir seus quadros, Jacmont começou a colecionar as peças de arte indígena que as elites da região consideravam “panema” (azar) dentro de casa. Influenciado pelo movimento cubista na arte, Jair Jacqmont passou a observar tridimensionalidade, textura, cores, formas e conceitos das peças indígenas, como Picasso fez com máscaras e estátuas dos povos africanos.

Passou a comprar no Mercado Municipal Adolpho Lisboa, em Manaus, peças Ticuna que os vendedores consideravam “artesanatos”, valorizando-as como genuínas obras de arte, sobretudo pela sua tridimensionalidade. Assim reuniu135 peças, entre esculturas antropomorfas e bastões de ritmo e de comando usados para danças e rituais, além de uma considerável quantidade de máscaras esculpidas em madeira. Sob a guarda do Museu Amazônico da Universidade Federal da Amazônia desde 1994, essa coleção veio para Florianópolis como parte de uma parceria com a Rede de Museus do Instituto Brasil Plural – IBP.

Sílvio Coelho entre os Ticuna

Desde a vivência com os Ticuna (Túkuna, na grafia original) em julho, agosto e setembro de 1962, até o dia de sua morte, em outubro de 2008, de câncer, Sílvio Coelho dos Santos dedicaria sua inteligência e energia física à compreensão do modo de ser índio. Ao retornar da expedição comandada pelo antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, seu orientador, esse legado foi depositado na Reserva Técnica da antiga sede do Museu Universitário, do qual ele foi um dos fundadores, aguardando as condições de climatização e conservação que um acervo dessa natureza e importância exige para ser exposto. Isso só foi possível este ano com a inauguração do grande Pavilhão Sílvio Coelho dos Santos, do MArquE, pela Secretaria de Cultura e Arte da UFSC.

Subindo de barco os igarapés e visitando comunidades, Sílvio Coelho recolheu objetos representativos dessa cultura com a preocupação de salvá-los da desaparição e esquecimento futuros, em uma mostra do vínculo afetivo e político que o ligou ao “povo pescado com vara”. A cosmogonia Ticuna acredita que essa gente foi pescada com vara por um herói mítico (Yo´i) nas águas vermelhas do igarapé Eware, segundo conta a chefe da Divisão de Museologia do MArquE Cristina Castellano, que coordena a exposição ao lado da museóloga Viviane Wermelinger  e da restauradora  Vanilde Ghizoni. Depois de nascer do rio, passou a habitar as cercanias da montanha Taiwegine, onde morava o herói, um local preservado até hoje como testemunho sagrado da gênese desses índios que enfeitiçaram o antropólogo catarinense pelo coração e pela mente.

Serviço:

Exposição “Ticuna em Dois Tempos”
Local: Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral
Universidade Federal de Santa Catarina – Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima – Trindade – Florianópolis – SC
Período de exposição: 10 de maio a 25 de outubro de 2012
Horário: Segunda a sexta (fechado as terças) – 10h às 17h

Texto: Raquel Wandelli
Jornalista da UFSC na SeCArte
raquelwandelli@yahoo.com.br
(48) 3721-9459 e 9911-0524

Tags: museuSílvio CoelhoTicumaUFSC

Museu abre exposição inédita de objetos coletados por Sílvio Coelho na Amazônia

07/05/2012 11:08

Integram o conjunto de Sílvio Coelho máscaras, adornos pessoais e utensílios domésticos, entre diversas outras peças

“Sobre a viagem, posso registrar que está completa. Vivo cenas que sonhei quando garoto e que nunca imaginei viver”. (Diário de Campo de Sílvio Coelho dos Santos – Expedição Ticuna)

Quando em julho de 1962 o jovem historiador Sílvio Coelho dos Santos viajou para o território Ticuna em uma expedição arriscada pelo alto rio Solimões, tinha o desafio de agregar experiência prática à sua formação teórica como antropólogo. Ao chegar ao município de Benjamim Constant, ao lado da colega Cecília Maria Helm e do etnólogo Roberto Cardoso de Oliveira, que o orientava na pesquisa, encontrou um povo massacrado pelo avanço violento dos seringueiros e madeireiros sobre suas terras após o boom da exploração da borracha. Desfigurado pelo álcool e pela miséria, os Ticuna lutavam para perpetuar a prática de suas tradições.

Mas o pesquisador também encontrou um grupo de riqueza cultural fascinante, que organiza todos os seres vivos, inclusive os humanos, em duas grandes linhagens, a das aves e a das plantas, e cujas máscaras, desenhos e pinturas ganhariam, por sua força e originalidade, fama internacional. Muito além da prestação de contas de um trabalho acadêmico exploratório, a coleção de objetos etnográficos, diapositivos e diários de campo inéditos deixados pelo antropólogo representam a retribuição emocionada de um jovem de 24 anos ao povo pacífico, mas não passivo, que o acolheu por três meses e o fez selar o pacto de toda uma vida em defesa dos povos indígenas brasileiros.

Desde a vivência com os Ticuna (Túkuna, na grafia original) até o dia de sua morte, em outubro de 2008, de câncer, Sílvio Coelho dos Santos dedicaria sua inteligência e energia física à compreensão do modo de ser índio. Nesta quarta-feira, 9 de maio, às 19h, no campus da UFSC em Florianópolis, o Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral (MArquE) apresenta pela primeira vez ao público a coleção com 53 objetos recolhidos entre os Ticuna e os registros de campo, compostos por 135 diapositivos (slides) e dois diários produzidos pelo antropólogo catarinense no coração da selva amazônica.

Desde que retornou da expedição, no final dos anos 60, esse legado esteve depositado na Reserva Técnica da antiga sede do Museu Universitário, do qual ele foi um dos fundadores, aguardando as condições de climatização e conservação que um acervo dessa natureza e importância exige para ser exposto. Isso só foi possível com a inauguração do grande pavilhão que recebe seu nome, no dia 24 de abril, pela Secretaria de Cultura e Arte da UFSC.

Subindo de barco os igarapés e visitando comunidades, Sílvio Coelho recolheu objetos representativos dessa cultura com a preocupação de salvá-los da desaparição e esquecimento futuros, em uma mostra do vínculo afetivo e político que o ligou ao “povo pescado com vara”. A cosmogonia Ticuna acredita que essa gente foi pescada com vara por um herói mítico (Yo´i) nas águas vermelhas do igarapé Eware, segundo conta a chefe da Divisão de Museologia do MArquE Cristina Castellano, que coordena a exposição ao lado da museóloga Viviane Wermelinger e da restauradora  Vanilde Ghizoni.

Depois de nascer do rio, passou a habitar as cercanias da montanha Taiwegine, onde morava o herói, um local preservado até hoje como testemunho sagrado da gênese desses índios que enfeitiçaram o antropólogo catarinense pelo coração e pela mente.

A exposição “Ticuna em dois tempos” traz à tona essa história de amor ao conhecimento e homenagem a mais numerosa nação indígena da Amazônia brasileira e também do país. Cruza dois olhares de duas épocas distintas em duas coleções produzidas com critérios e objetivos diferentes sobre a mesma etnia. De um lado, o olhar do historiador e antropólogo catarinense representado no material coletado durante a sua participação no Curso de Especialização em Antropologia no Museu Nacional (da antiga Universidade do Brasil), no Rio de Janeiro, na década de 1960.

Integram o conjunto de Sílvio Coelho adornos pessoais, cerâmicas, cestos e utensílios domésticos, bonecas esculpidas em madeira, estatuetas em madeira de macaco prego, esculturas antropozoomorfas, mantas, remos, indumentárias completas, brinquedos infantis, um tambor e principalmente bastões cerimoniais, máscaras e outros objetos ritualísticos utilizados na Festa da Moça Nova, além de slides de figuras humanas e paisagens.

De outro lado, está o olhar estético do artista plástico Jair Jacmont, que formou sua coleção na década de 1970, adquirindo os objetos dos próprios índios, na cidade de Manaus. São mais 135 peças, entre esculturas antropomorfas e bastões de ritmo usados para danças e rituais, além de uma considerável quantidade de máscaras esculpidas em madeira. Sob a guarda do Museu Amazônico da Universidade Federal da Amazônia desde 1994, essa coleção veio para Florianópolis como parte de uma parceria com a Rede de Museus do Instituto Brasil Plural – IBP. Explica a diretora do MArquE Teresa Fossari que a exposição conjunta é um projeto alimentado há longa data pelas duas instituições de extremos opostos do Brasil, com o objetivo de promover o diálogo entre esses dois reveladores olhares para a mesma cultura.

Serviço:
Exposição “Ticuna em Dois Tempos”
Local: Museu de Arqueologia e Etnologia Professor Oswaldo Rodrigues Cabral / Universidade Federal de Santa Catarina / Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima / Trindade – Florianópolis – SC
Abertura: 9 de maio, às 19h
Período de exposição: 10 de maio a 25 de outubro de 2012
Horário: Segunda a sexta (fechado terças) – 10h às 17h

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Diário de campo narra sonho e tragédia dos índios da Amazônia

Geralmente à noite, dentro do mosquiteiro, para escapar dos carapanãs, o antropólogo Sílvio Coelho dos Santos escrevia no seu diário de campo todos os detalhes da missão amazônica com uma seriedade científica que não encobria, contudo, o sentimento de idealismo e justiça social do estudante. Ao chegar ao posto Ticuna, no dia 5 de julho, antes de testemunhar as condições de privação e violência em que viviam esses índios, Sílvio revelou sua emoção e o temor de não ser capaz de realizar a missão que lhe fora delegada.

– Às 16,30 horas chegávamos a Mariuaçu, sede do Posto Tukúnas, onde fora recebido pelo encarregado, Sr. Bernardino. O prazer de ver os índios foi total e por um momento pensei ter realizado meus sonhos.

Assim o pesquisador começa a narrar a expedição ao lado da colega paranaense do curso de especialização Cecília Vieira Helm e do coordenador, Roberto Oliveira, que lhe encomendara a pesquisa (o renomado etnólogo faleceu em 2006, dois anos antes do orientando). Segue-se aí um envolvente e envolvido relato de um narrador empenhado em deixar um registro bastante completo sobre as práticas culturais e religiosas, mitologia, sonhos, doenças, tristezas, educação indígena pelos brancos, luta pela sobrevivência da nação Ticuna.

Com um total aproximado de 200 páginas escritas na grafia da época, o relatório apresenta-se na forma manuscrita e datilografada pelo próprio autor, e já é projeto de publicação da Editora da UFSC. Cópia do material só chegou à direção do museu há cerca de oito meses, pelas mãos da esposa do antropólogo, Alair Santos. Embora inédito, o diário foi objeto de análise da mestra em Ciências da Linguagem Cristina Castellano, que escreveu sua dissertação a respeito da coleção Ticuna sob a orientação do antropólogo Aldo Litaiff, aluno e parceiro de pesquisa de Sílvio no atual MArquE.

Ao final do segundo diário, o antropólogo transcreve entrevista com o major Pereira de Melo, que atuou no subcomando do grupo da fronteira de Manaus na expedição Javari de 1960. Sílvio Coelho interroga-o com o objetivo de esclarecer qual era a população metralhada pelo exército na operação que “limpou” a área dos “bandoleiros”, como o major chamava os “apátridas com base no Peru” que, segundo ele, estariam usando os índios em seus ataques às tropas e aos moradores. Uma observação corajosa do pesquisador na última página revela a saga dos índios amazônicos naqueles tempos de ditadura militar, extermínio dos povos nativos, extração desenfreada da madeira e política desenvolvimentista:

– Pelo modo de narrar os fatos, parece que nosso informante estava consciente que os residentes nesse acampamento e vítimas dos ataques do exército eram índios. Falou-nos de que só uma lata de conserva, usada como panela, e calções que alguns habitantes usavam denunciavam a presença de civilização. Todo o acampamento era de estilo típico indígena. Uma sepultura recente foi aberta e o morto estava nu, sobre uma rede indígena.

Coelho denunciava assim os problemas dos índios com as autoridades brancas, que procuravam sempre culpar as brigas entre “tribos” pelo seu extermínio. Ao mesmo tempo mostrava a complexidade e poética da sua cultura, enfatizando a forma de organização social e política desse povo de castas patrilineares, que só admite o casamento entre membros de linhagens diferentes (designadas por nomes de aves e de plantas). Todavia, só eles são capazes de interpretar os sinais que indicam o pertencimento a uma ou outra casta.

Ritual da adolescência
Como outros exploradores que o sucederam, Sílvio Coelho sofreu o magnetismo pela Festa da Moça Nova, o worecu, ritual de iniciação feminina que dura três dias.  Grande parte dos objetos coletados pertencem a essa tradição que envolve todos os parentes e amigos das aldeias próximas.

Inicia com música, bebida (pajarú) e comida preparada pela família na “casa de festa”, preparada pela família da moça que recebe a primeira menstruação. Quando os convidados chegam, os mascarados adentram a festa com uma impressionante coreografia. As máscaras são usadas para expulsar os espíritos malignos e reanimar os espíritos da puberdade, em um movimento que perpetua o ciclo natural de nascimento, crescimento, maturidade e morte.

Acalmados os espíritos, as moças iniciadas na adolescência, são libertas do retiro em que eram mantidas em “currais” ou “jiraus”. Com os cabelos cortados ou arrancados, surgem ricamente vestidas e adornadas para serem apresentadas a toda aldeia como uma nova pessoa, conforme relata o antropólogo João Pacheco Oliveira.

De aparência monumental e impressionante, as máscaras constituem uma das manifestações mais ricas da arte Ticuna. Confeccionadas com fibra de tururi (entrecasca de espécie de Ficus), exibem geralmente uma face humana ou zoomorfa esculpida em “pau de balsa” e cocar feito de cortiça de buriti, conforme explica Cristina. Ao fazer o registro do primeiro dia, o pesquisador anota no silêncio noturno do mosquiteiro:

– À tarde fomos assistir a um ritual de “Virada” do “Pajarú” – bebida feita de mandioca, para a festa da moça nova – e que se inicia, ao que parece, com um toque de tamborim.  Nessa oportunidade notamos uma índia que catava os piolhos de  uma índia velha e os comia.  Outro fato que despertou nossa atenção foi o fabrico, na mesma casa, de uma bebida feita de
banana madura.

A pesquisa está norteada pelo conceito de “fricção étnica”, então recém-proposto por Roberto Cardoso de Oliveira, em contraposição à noção de alienação cultural, que pressupõe submissão total da cultura oprimida à dominante. Em vez disso, Oliveira e Sílvio acreditavam que a relação entre o dominador e o dominante produzia resistência, luta, atrito, contágio e contaminação. Nas páginas amarelecidas pelo tempo, os registros da rotina na aldeia são avivados por narrativas mitológicas e depoimentos diretos dos índios contando situações de conflito que tornam o relato muito verdadeiro e precioso como material bruto de análise.

Utilizados mais além por Oliveira no livro O diário e suas margens: viagem aos territórios Terêna e Tukúna,  os originais manuscritos trazem ainda informações demográficas, desenhos e estudos genealógicos de famílias que o pesquisador adorava fazer na tentativa de compreender o estranho sistema de clãs do “povo pescado”.

Mais tarde, já reconhecido como um dos maiores antropólogos do Brasil, Sílvio se valeria dessa experiência para fazer um trabalho de campo semelhante com o povo Xocleng em Santa Catarina, que deu origem às obras Índios e brancos no sul do Brasil – a dramática experiência dos Xokleng e Os índios Xokleng; memória visual.

Como fruto de sua luta junto a outros antropólogos e indigenistas, finalmente nos anos 1990 os Ticuna lograram o reconhecimento oficial da maioria de suas terras. Hoje enfrentam o desafio de garantir sua sustentabilidade econômica e ambiental e manter vivas suas práticas culturais. A paz dos Ticuna, contudo, está longe de ser alcançada. Passa pela melhoraria de sua relação com a sociedade branca, historicamente marcada pela violência, como já mostram os
depoimentos de índios recolhidos pelo pesquisador em seu diário: “Nem todos os civilizados são bons, alguns brigam com os tukuna, às vezes discutem com o freguês e não deixam dever mais de um mês” ou “Omerino Mafra açoitou um tukuna e ele não deixa tukuna vender para quem quer”.

Como a primeira jornalista a ter acesso a essa escrita etnográfica, perguntei a mim mesma e a todos que entrevistei: por que Sílvio Coelho dos Santos, de quem fui aluna especial no Curso de Pós-graduação em Antropologia, no qual era coordenador e gozava de amplo prestígio, tendo ainda sido pró-reitor de Ensino de Graduação e também de Pesquisa, presidente da Associação Brasileira de Antropologia, secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, pesquisador sênior do CNPq, nunca se interessou em publicá-lo?  E a resposta que ouço da esposa Alair confirma minha hipótese: “Foi o seu primeiro trabalho como antropólogo; imagino que ele não acreditava no valor que isso pudesse ter”. Mas é justamente no idealismo ingênuo e no entusiasmo do pesquisador ao encontrar o outro da
antropologia que reside o frescor e o encanto dessa etnografia.

“Ticuna em dois tempos” mostra que antes de se tornar um dos etnólogos mais importantes
do Brasil e um grande defensor da causa indigenista, Sílvio Coelho fez um “estágio de indigenidade” com esse povo ameaçado pelo que chamava de “interesses capitalistas”. Esse estágio impactou para sempre sua formação científica e humana. Além de antropólogo, ele foi, durante três meses, um jornalista, um fotógrafo, um habilidoso narrador, um Euclides da Cunha na Amazônia. Foi ave ou planta: Sílvio Coelho foi Ticuna!

Trechos do Diário de Sílvio Coelho:

“Sobre a viagem, posso registrar que está completa. Vivo cenas que sonhei quando garoto e que nunca imaginei viver”.

“Aqui o antropólogo tem que ser acima de tudo um equilibrista, pois ora são pontes de
um único toro de içara que deve ser atravessado, ora os balanceios e reviravoltas da embarcação na correnteza que deve ser mantida em equilíbrio”.

“Nada, narração alguma poderia dar ideia a alguém sobre o que é um igarapé, a bacia
amazônica. As prainhas formadas, as curvas, os furos, os pequenos igarapés afluentes, as árvores caídas formam um conjunto indescritível”.

Por Raquel Wandelli / Jornalista da UFSC na SeCArte / raquelwandelli@yahoo.com.br / 3721-9459 / 9911-0524

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