Acervo doado à UFSC mostra obstinação de mulher vítima da ditadura por reparação histórica

15/07/2025 09:12

Arthur Will Tocchetto foi bolsista do projeto que criou o acervo. Fotos: Gustavo Diehl

Boletins do Serviço de Polícia do Exército, questionários de interrogatório aplicados a presos políticos e arquivos que documentam a perseguição a catarinenses durante a ditadura militar estão entre os materiais digitalizados que compõem a coleção do Comitê Catarinense Pró-Memória dos Mortos e Desaparecidos Políticos (CCPMMDP). O acervo está disponível, mediante cadastro, no site do Acervo Memória e Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

O conjunto documental foi reunido por Derlei Catarina de Luca, vítima da ditadura militar e coordenadora do CCPMMDP. Como primeiro grupo pró-memória do Brasil, o comitê atua em Santa Catarina desde os anos 1990, com influências que ultrapassam o âmbito estadual, gerando articulações nacionais e internacionais em torno do direito à memória e à justiça.

Entre os materiais, destacam-se fotografias originais de funerais, do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da atuação do comitê; listas com anotações de vítimas da repressão; manuais militares de interrogatório e tortura e cartas pessoais. Há também reportagens de jornais da época, documentos de movimentos sociais, registros da espionagem militar dentro da UFSC e dossiês sobre casos específicos como o de Arno Preis, guerrilheiro enterrado sob identidade falsa, ou o de Higino João Pio, prefeito de Balneário Camboriú cuja morte foi forjada como suicídio.

O material, reunido ao longo de mais de 25 anos de atuação de Derlei, foi doado ao Memorial dos Direitos Humanos, sediado no Laboratório de Sociologia do Trabalho da UFSC. Atualmente, está sob a guarda do Acervo Memória e Direitos Humanos do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH) da universidade.  Uma outra parte dos documentos reunidos por ela está sob custódia do Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas (IDCH) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

O acervo reúne aproximadamente 12 caixas de documentos, com mais de mil itens já indexados. Seu tratamento começou em 2022, como parte de um projeto de extensão universitária. Desde então, uma equipe multidisciplinar formada por historiadores, museólogos, especialistas em ciência da informação, relações internacionais e estatística passou a trabalhar na organização do conjunto documental. “O processo envolve muita leitura, interpretação e decodificação de documentos muitas vezes cifrados com siglas e codinomes usados pelos órgãos da ditadura”, explica o estudante de História Arthur Will Tocchetto, que integrou a equipe do projeto. Cada item é digitalizado página por página, com cuidado para manter a ordem original.

Para a professora Graziela Martins, coordenadora do GT- acervo, o valor da coleção é único justamente por reunir informações que não se encontram em nenhum outro lugar. “Trata-se de uma pesquisa minuciosa, com levantamento de nomes, situações de desaparecimento e outros dados fundamentais. Agora digitalizado, ele amplia o acesso da sociedade, mas é especialmente pensado para atender quem está se aprofundando na temática: estudantes, pesquisadores, autores de TCCs, teses e dissertações”, resume.

Derlei Catarina de Luca dedicou parte da vida à busca de reparação

Derlei Catarina de Luca quando foi presa pelos órgãos de repressão de São Paulo após o Congresso de Ibiúna. Foto: Acervo CCPMMDP

Natural de Santa Catarina, Derlei foi perseguida pelo regime militar e chegou a ser exilada do país. Ela foi presa e fichada em 12 de outubro de 1968, durante o 30º Congresso da UNE, em Ibiúna (SP), que reunia estudantes universitários e fazia oposição ao regime. O evento foi descoberto pelo Exército, resultando na prisão de centenas de estudantes — entre eles, 15 catarinenses, que foram levados ao DOPS de São Paulo e, após alguns dias detidos, transferidos para Florianópolis, onde foram fichados e soltos sob liberdade vigiada.

“Chegando a Florianópolis, as viaturas rodaram conosco por toda a cidade e a ordem era largar-nos onde não houvesse gente. Uns foram soltos antes da ponte Hercílio Luz, outros depois da ponte e outros ainda na Agronômica. Tudo para evitar que os estudantes que nos esperavam fizessem alguma manifestação”, relata Derlei em carta disponível no acervo. Dois meses depois da promulgação do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em dezembro daquele ano, Derlei deixou Florianópolis sem avisar ninguém. Durante o exílio, ela viveu em países como Chile, Panamá, Peru e Cuba. 

A vida de Derlei Catarina de Luca esteve intrinsecamente ligada à busca, ao recebimento e à preservação de documentos, que serviram tanto ao seu engajamento ativista quanto à sua jornada pessoal de resgate da memória e da justiça. Os documentos que constituem o acervo contornam as histórias e ajudam pesquisadores e ativistas do Brasil a conhecerem as vítimas de um dos períodos mais sombrios do país, dentre eles Divo Fernandes D’Oliveira, Arno Preis, Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter e Paulo Stuart Wright, cujas histórias reunimos a partir dos recortes e documentos de Derlei.

Paulo Stuart Wright: após cassação injusta, memória de deputado segue em reparação

Foto em preto e branco de Paulo Stuart Wright. Foto: Acervo CCPMMDP

Paulo Stuart Wright foi um pastor presbiteriano, deputado estadual e sociólogo, nasceu em 2 de julho de 1943, em Joaçaba (SC), filho do pastor presbiteriano Lathan e de Maggir Belle. Criado em uma família missionária, estudou o primário em uma escola criada por seu pai, completou o ginásio em Passo Fundo e se formou em Sociologia nos Estados Unidos. Fugiu do país para não ser recrutado para a Guerra da Coreia e, ao retornar ao Brasil, casou-se com Edimar Rickli e fixou-se novamente em Joaçaba.

Sua atuação política o levou à perseguição pelo regime militar. A Ficha Cadastral o identifica como dirigente da Ação Popular (AP), organizador de milícias populares e responsável pela criação da Fecopesca, uma cooperativa de pescadores no litoral catarinense. Segundo depoimento de Agostinho Mignoni, Paulo filiou-se inicialmente ao PTB em Joaçaba, candidatando-se a prefeito, mas foi derrotado, por apenas 7 votos, após ser rotulado de comunista pelo PRP. Mais tarde, foi nomeado pelo governador Celso Ramos como diretor da Imprensa Oficial do Estado, onde organizou 27 cooperativas filiadas à Fecopesca. 

Uma reportagem do jornal Diário Catarinense, de 3 de abril de 1994, registra que ele foi o primeiro catarinense a ter seu mandato cassado pela ditadura, em 1964. “Logo após o golpe de 64, com prisões, fechamento de sindicatos e outras entidades e a censura à imprensa, instaurou um pânico generalizado.” A reportagem detalha que Santa Catarina não ficou de fora, chegando a receber a visita do embaixador norte-americano Lincoln Gordon, um dos responsáveis pelas operações americanas que apoiaram o golpe de Estado de 1964, que foi recebido com churrasco na recém criada Universidade Federal (UFSC). 

Logo após a passagem de Lincoln, chegou à mesa de Ivo Silveira, então presidente da Assembleia Legislativa, um dossiê com “atividades subversivas” do deputado Paulo Wright. Uma comissão especial levou à sua cassação em apenas nove dias, com apenas um voto contrário, segundo uma carta da Igreja Metodista Central de 1973.

Paulo soube antecipadamente da cassação e fugiu, buscando asilo na embaixada do México no Rio de Janeiro e partindo para o país em julho. Retornou ao Brasil clandestinamente um ano depois, militando ativamente na Ação Popular (AP), um grupo político de origem católica. Um Boletim Informativo de 1973 registra que foi detido em abril de 1972 e liberado dias depois, com sua punibilidade posteriormente prescrita.

Sua prisão e desaparecimento ocorreram em setembro de 1973. De acordo com a Ficha Cadastral de 2012, Paulo foi preso por agentes do DOI-CODI dentro de um trem em Santo André (SP), sob a falsa identidade de Pedro João Tim e levado à sede do DOI-CODI na Rua Tutóia, em São Paulo, onde teria sido torturado por dias até a morte. A enfermeira Maria Diva de Farias prestou depoimento secreto ao STF, confirmando ter visto se hospede sendo espancado. “Ele tinha problemas de saúde e não resistiu às torturas.”

Mesmo após sua morte, a luta pela memória de Paulo Stuart Wright segue viva. Em 1985, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina anulou oficialmente sua cassação. Em 1999, um comunicado da Igreja Presbiteriana de Florianópolis restaurou sua condição de membro “post mortem”, anulando sua expulsão de 1964 e reconhecendo a violação de seus direitos. Sua filha, Leila Cristina Wright, crítica social e militante da memória, denuncia a forma como a trajetória do pai é frequentemente reduzida à clandestinidade, apagando sua contribuição à luta dos trabalhadores por meio da Fecopesca.

Divo Fernandes D’Oliveira: 30 anos de espera por reconhecimento dos danos provocados pelo regime militar

Ficha Cadastral de dados da Morte de Divo Fernandes.

Divo Fernandes D’Oliveira foi marinheiro, ex-líder de mineradores de carvão e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Natural de Tubarão, mudou-se com sua esposa, Neyde Medeiros de Oliveira, para Criciúma. Em 1964, foi acusado de porte ilegal de armas e, no ano seguinte, desapareceu no Presídio Lemos de Brito, no Rio de Janeiro. Seu corpo nunca foi encontrado.

“Meu pai já era considerado um velho comunista em 64 (…) Foi através de uma traição que conseguiram pegá-lo (…) Ele não teve chance de explicar nada pra gente nem teve chance de uma defesa”, contou Alba, filha adotiva do casal, em entrevista ao Jornal Página 3, em 1996, um dos documentos disponíveis no acervo.

A morte de Divo foi atribuída aos órgãos de segurança do regime militar, tornando-o um dos primeiros militantes de esquerda mortos após o golpe de 1964. A esposa foi informada do desaparecimento em 1965, mas apenas em 1980 a filha soube o que havia acontecido, por meio de cartas guardadas pela mãe. O caso foi destaque em reportagem do jornal de Santa Catarina, em 1995, documento que Derlei também guardou.

Vinte anos após o desaparecimento do pai, Alba iniciou uma busca por informações. Visitou quartéis, presídios e cemitérios, onde encontrou pastas com dados sobre Divo. Com o apoio do CCPMMDP, continuou a luta pelo reconhecimento: “Eu perguntava, perguntava e ninguém respondia. Foi aí que Derlei Catarina de Luca entrou em contato comigo dizendo que meu pai fazia parte da lista de catarinenses desaparecidos”, relatou ao Página 3.

O processo de reconhecimento como desaparecido político foi aprovado apenas em 1994. Embora tenha sido um dos primeiros militantes a serem mortos pelo regime, Divo foi o último catarinense reconhecido oficialmente como desaparecido político pelo governo. A partir do reconhecimento, sua família passou a receber indenizações do Estado.

Arno Preis: décadas de apagamento após morte forjada

Recorte de jornal com ilustração de Arno Areis

Arno Preis era advogado, natural de Santa Catarina, poliglota, falava dez idiomas, ex-guerrilheiro e militante do Partido Operário Comunista (POC). Também teve ligações com a Ação Popular Marxista-Leninista (ALN) e o Movimento de Libertação Popular (Molipo), formado por estudantes universitários revolucionários nos anos 1970. Foi morto em 15 de fevereiro de 1972 pelas forças do regime militar.

Um dos documentos do acervo traz o relato de João Bulhões, motorista de táxi que se mudou para Paraíso do Norte — atual Paraíso de Tocantins — um ano após os fatos. Segundo ele, Arno chegou à cidade durante o Carnaval e pediu para ser levado a um hotel. O taxista, informante da polícia, teria visto uma mala com dinheiro e uma arma, e o denunciou como assaltante à delegacia.

Bulhões relata que os agentes Luzimar e Gentil foram ao clube onde Arno estava e o abordaram com armas em punho. Arno reagiu, atingindo os dois com disparos, e tentou fugir. Foi atingido na perna por um tiro disparado por outro agente e se escondeu em um terreno baldio. Cercado, acabou morto durante a operação.

Na época, os órgãos de segurança afirmaram que Arno havia morrido ao resistir à prisão. A imprensa o rotulou como “terrorista” e “assaltante”, reproduzindo a versão oficial. No entanto, um parecer criminal elaborado em junho pelo perito Celso Nenevê apontou inconsistências: o laudo mostrava ferimentos perfurocortantes de 10 e 15 centímetros de diâmetro, que indicam proximidade entre agressor e vítima e sugerem que podem ter ocorrido antes da troca de tiros.

Além disso, o perito observou que, em uma das fotos do laudo original, a arma na mão esquerda do corpo não condizia com a posição do coldre na cintura, sugerindo encenação. Arno foi enterrado sob o nome falso de Patrick McBundy Cornick. O coveiro Milton Gomes foi instruído a não comentar o caso e a enterrá-lo em uma cova rasa, “porque era um porco”. Indignado, ele construiu uma pirâmide de concreto sobre o túmulo, o que permitiu sua posterior localização. Na opinião de Milton, Arno foi executado na delegacia, pois apresentava um ferimento de bala no ouvido.

Convite de sepultamento de Arno Preis, vinte cinco anos após sua morte.

Por anos, os restos mortais permaneceram sob o nome falso de Patrick McBundy Cornick, até que familiares, militantes e membros do Comitê Catarinense Pró-Memória dos Mortos e Desaparecidos Políticos iniciaram um processo de investigação para recuperar sua memória e obter reconhecimento oficial.

A busca por justiça começou ainda na década de 1980, como mostra uma carta escrita por Derlei Catarina de Luca em 1983, relatando o envio de solicitações de informação às autoridades locais do município de Paraíso. Em outubro de 1993, o presidente da Comissão Externa da Câmara dos Deputados, Nilmário Miranda, esteve no cemitério de Paraíso com dois médicos-legistas do Instituto Médico Legal do Distrito Federal para realizar a exumação da ossada de Arno. A operação teve como objetivo viabilizar a emissão de um atestado de óbito oficial com seu verdadeiro nome, corrigindo décadas de apagamento.

Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter: “Jamais poderão varrer a minha contribuição”

Retrato em preto e branco de Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter assassinado em São Paulo. Foto: Acervo CCPMMDP

Natural de Orleans e nascido em 1942, Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreute era graduado em jornalismo e sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URGS). Um relato do CCPMMDP de 1995 aponta que ele possuía um nível cultural elevado e um vocabulário raro. “Era considerado um intelectual (…) Jornalista que poderia trabalhar em qualquer grande imprensa. Mas tomou outro caminho. Mudou-se para São Paulo a fim de organizar o Partido Operário Comunista (Port)”. 

Rui organizava jornais clandestinos, grupos de estudos, debates e palestras sobre a situação nacional e soluções para a revolução no Brasil. Era um militante e contestador da ditadura. Aos 29 anos de idade, em 1972, Rui foi preso, torturado e morto pelo DOPS de São Paulo. Seu corpo foi esquartejado segundo relato. O atestado de óbito assinado pelo doutor Isaac Abramovict, medico que assinou grande parte dos laudos de mortos sob tortura, atestou a morte como Anemia Aguda Traumática, conforme foi noticiado pelo jornal Ponto de vista, em 13 de junho de 1992, disponível no acervo.

O pai de Osvaldo foi informado por um telefonema anônimo sobre o desaparecimento de seu filho. Ele viajou para São Paulo e iniciou uma busca por informações. Por 25 dias os órgãos de segurança informaram apenas que “nada consta”. Após esse período, Osvaldo soube que Rui havia dado entrada no Instituto Médico Legal (IML) e fora enterrado no cemitério de perus, conforme foi noticiado pelo jornal.

Após vasta burocracia, foi autorizada a exumação e o transporte do corpo para sepultamento definitivo no jazigo da família em Orleans. Um caixão metálico foi hermeticamente selado por conta do avançado estado de decomposição. No acervo consta um dos últimos registros do diário de Rui. “E sei dos riscos, dos perigos. Mas sei também que embora me eliminem fisicamente, jamais poderão varrer a minha contribuição, derrubar toda valiosa herança que deixo a humanidade.”

Diploma de mérito concedido a Rui Pfuntzenreuter

 


As histórias de Divo Fernandes D’Oliveira, Arno Preis, Rui Osvaldo Aguiar Pfutzenreuter e Paulo Stuart Wright representam apenas um fragmento das vidas impactadas pela ditadura militar, cujos registros estão preservados no acervo. Muitas outras vítimas da repressão, como João Batista Rit, Luiz Eurico Tejera, Frederico E. Mayr, Vanio de Matos e Lucindo Costa, também têm suas trajetórias documentadas, aguardando para serem conhecidas e compreendidas.

A disponibilidade deste material no Acervo Memória e Direitos Humanos da UFSC oferece a pesquisadores e ao público em geral a oportunidade de mergulhar nesses relatos a partir do olhar de uma vítima.

Mateus Mendonça| agecom@contato.ufsc.br

Estagiário da Agecom | UFSC

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