Sessão histórica: Conselho Universitário decide pelo caminho da memória e reparação

06/06/2025 18:22

Conselho Universitário retoma discussões sobre o relatório final da CMV-UFSC. Fotos: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC

As duas primeiras pautas da sessão ordinária do Conselho Universitário (CUn) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizada na tarde desta sexta-feira, 6 de junho, retomaram as discussões sobre o relatório final da Comissão Memória e Verdade (CMV). A reunião, considerada histórica para a instituição, ocorreu no Auditório da Reitoria e contou com ampla participação da comunidade, interna e externa, além de ser transmitida ao vivo pelo canal do YouTube do CUn.

A controvérsia em torno do relatório da CMV segue como um dos debates mais sensíveis da história recente da UFSC, envolvendo memória, reparação e o papel da Universidade durante o regime autoritário. Criada em 2014, a CMV tinha como objetivo investigar violações de direitos humanos ocorridas na instituição durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Ao longo de quatro anos, a Comissão analisou mais de 1.500 documentos históricos, coletou depoimentos de vítimas e testemunhas, e promoveu audiências públicas. Em 2018, apresentou um relatório final com 12 recomendações, incluindo a reavaliação de homenagens a figuras ligadas a denúncias e perseguições no período. O documento foi aprovado por unanimidade pelo Conselho Universitário à época.

A sessão desta sexta-feira deveria ter ocorrido em 30 de maio, mas foi adiada após decisão judicial liminar (Mandado de Segurança nº 5018339-27.2025.4.047200/SC), impetrada pela família Ferreira Lima contra a UFSC. A liminar determinou que a Universidade “se abstenha de deliberar ou praticar qualquer ato que importe na revogação das homenagens conferidas ao ex-reitor João David Ferreira Lima — especialmente quanto à alteração do nome do campus universitário — até que haja decisão expressa e definitiva do Conselho Universitário sobre a impugnação apresentada no Processo nº 23080.000600/2023-25”.

Primeira decisão

O primeiro item da pauta foi a análise do processo nº 23080.000600/2023-25, que trata do pedido de impugnação ao relatório final da CMV apresentado pela advogada Heloísa Blasi Rodrigues, representante da família Ferreira Lima. A petição alega que o relatório atribuiu “fatos e juízos de valor lesivos à honra e à memória do ex-Reitor João David Ferreira Lima”, sem observância dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do direito de resposta proporcional ao agravo. A relatoria ficou sob responsabilidade do conselheiro Ubirajara Franco Moreno.

Em seu parecer, o conselheiro relator argumentou que o pedido configura um legítimo exercício do direito de petição, garantido pela Constituição Federal, e que cabe ao Conselho Universitário deliberar sobre o caso, já que a CMV foi instituída por esse órgão. No entanto, concluiu que o relatório final da Comissão possui “natureza eminentemente histórica e memorialística, voltada à reconstrução da memória institucional e à promoção do direito à verdade histórica”, e que o documento “não gera efeitos jurídicos concretos que possam ser anulados ou reformados mediante impugnação administrativa”, dado que suas atividades “não têm caráter jurisdicional ou persecutório, mas sim esclarecedor”.

Advogada da família Ferreira Lima, Heloísa Blasi, participou da sessão do CUn

Apesar disso, o parecer acolheu duas demandas apresentadas na petição. A primeira é a recomendação para que a obra “UFSC: Em Nome da Verdade”, de autoria de Heloísa Blasi Rodrigues, seja disponibilizada no Instituto Memória e Direitos Humanos e na Biblioteca Universitária, garantindo “amplo acesso à comunidade acadêmica”. A segunda é a limitação do escopo de atuação da CMV ao período estabelecido pela Lei nº 12.528/2011 — de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. Segundo o conselheiro, “questões relativas à aquisição da Casa da Rua Bocaiúva e eventuais controvérsias entre os professores João David Ferreira Lima e Henrique da Silva Fontes não guardam relação com violações de direitos humanos” e, portanto, não devem ser consideradas nos trabalhos da Comissão.

Quanto à retirada de homenagens ao ex-Reitor, incluindo a alteração do nome do campus da Trindade, o conselheiro destacou que tal decisão deve ser tomada “exclusivamente mediante decisão do Conselho Universitário, em processo administrativo próprio, com a garantia do contraditório, da ampla defesa e da oitiva da família do homenageado, devidamente representada por sua procuradora”. Ele também solicitou “a averiguação e apuração de responsabilidades pela dilação na resposta à petição encaminhada”, dado o caráter preventivo do pedido e a idade avançada do requerente.

Por fim, o parecer acolheu a recomendação para a elaboração de uma resolução específica que regulamente a preservação da memória institucional e a proteção da comunidade universitária contra violações de direitos humanos. Segundo Ubirajara, essa medida “visa fortalecer os compromissos institucionais da UFSC com a promoção da verdade, da memória e da defesa dos direitos fundamentais”. Após os debates, o parecer foi aprovado por maioria, com apenas um voto contrário.

Segunda decisão

O segundo item da pauta tratou do processo nº 23080.018179/2024-90, de autoria de Daniel Ricardo Castelan, que aborda os encaminhamentos das recomendações do relatório final da CMV. Nesse caso, além do parecer do conselheiro Ubirajara Franco Moreno, os conselheiros Alex Degan e Amanda Zamboni apresentaram um parecer conjunto como relatores de vista.

Os conselheiros Alex e Amanda concordaram integralmente com as Recomendações 1, 2, 3, 4, 7, 10, 11 e 12, que incluem ações como a ampliação dos acervos históricos da UFSC, a criação de um programa de extensão sobre memória e direitos humanos, e a recuperação do edifício do Centro de Convivência, sede do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Eles recomendaram que a UFSC “apresente, ainda no tempo da atual gestão, um plano para recuperação do edifício”.

Sobre a Recomendação 8, que propõe a reabertura de casos revelados pelo relatório, os conselheiros reconheceram as limitações jurídicas apontadas no parecer original. Eles reforçaram que a UFSC deve “colaborar ativamente, uma vez provocada judicialmente, com indivíduos e instituições que mobilizem aparato jurídico em torno de casos e histórias revelados pelo relatório” e facilitar o acesso a documentos relevantes para pesquisadores.

A Recomendação 6, que trata da reavaliação de homenagens, recebeu especial atenção. Os conselheiros sugeriram que a alteração do nome do Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima seja deliberada em uma sessão especial do CUn, no prazo de até uma semana, respeitando o Artigo 17º do Estatuto da UFSC, que exige “a aprovação por três quintos do total de seus membros”. Eles enfatizaram que o escrutínio deve ser por voto aberto, como na concessão do nome atual.

Os conselheiros destacaram a relevância pedagógica do debate, citando Theodor Adorno: “Não se pode simplesmente esquecer o que passou. É necessário esclarecer os motivos que tornaram a barbárie algo realizável”. Para Alex e Amanda, a UFSC assumiu seu papel educativo ao promover o debate, alinhando-se às reflexões de Adorno e Walter Benjamin, que defendem o uso da memória coletiva como ferramenta de transformação social.

O relator Ubirajara manifestou concordância com o parecer de vista, especialmente sobre a realização de uma sessão exclusiva para tratar da mudança do nome do campus. Ele esclareceu que a atribuição do nome ao campus foi feita como uma alteração do estatuto, e não em uma categoria formal de “homenagem”, o que reforça a proposta de tratá-la como uma reforma estatutária. Diante da concordância, o relator se dispôs a retirar seu parecer original para que fosse votado o de vista.

Ao final da discussão, o parecer de vista conjunto foi aprovado por maioria, com apenas dois votos contrários. Esta decisão estabeleceu que a votação sobre a alteração do nome do campus-sede da UFSC ocorrerá, em sessão especial, na próxima semana.

Retrospectiva do debate

Os debates sobre as recomendações da Comissão Memória e Verdade (CMV) da UFSC têm mobilizado intensamente a comunidade acadêmica e a sociedade civil, gerando divisões e emoções acirradas. Entre as 12 recomendações do relatório final, aprovado em 2018, a que tem mais gerado polêmica é a sexta, que sugere a retirada do nome do ex-reitor João David Ferreira Lima do campus-sede da Universidade, no bairro Trindade, Florianópolis. A homenagem foi concedida em 2003, antes do conhecimento de documentos que apontam a colaboração de sua gestão com o regime militar.

A primeira sessão do CUn sobre esta pauta ocorreu em 29 de abril, durante uma reunião ordinária que precisou ser transferida para o Auditório da Reitoria devido à ampla participação da comunidade universitária. O espaço ficou lotado por estudantes, servidores técnico-administrativos e professores, representantes da CMV e membros da família Ferreira Lima, com inscrições para falas aberta ao público. No centro do debate, estavam o relatório da CMV e a petição de impugnação apresentada em janeiro de 2023 pela advogada Heloísa Blasi Rodrigues, representando Davi Ferreira Lima, filho do ex-reitor.

O pedido foi tratado como um exercício legítimo do direito de petição e buscava impedir medidas que pudessem manchar a imagem do ex-reitor ou revogar o reconhecimento de suas contribuições à UFSC. Os argumentos apresentados incluíram alegações de violação ao contraditório, ampla defesa e direito de resposta, além de apontarem supostos vícios formais e materiais no relatório, como a extrapolação de seu escopo temporal e a seleção parcial de fontes. Entre os pedidos, destacaram-se a manutenção das homenagens ao ex-reitor, a divulgação de provas apresentadas pela família e a limitação do relatório a fatos relacionados exclusivamente às violações de direitos humanos entre 1946 e 1988, conforme definido pela Lei 12.528/2011.

O conselheiro-relator acolheu parcialmente os argumentos da petição e recomendou a limitação do escopo do relatório a fatos relacionados a violações de direitos humanos ocorridas após 1964. Ele também excluiu episódios como a aquisição da casa da rua Bocaiúva e as controvérsias com Henrique Fontes, classificados como fora do marco legal. Quanto à revogação de homenagens, defendeu que decisões dessa natureza sigam um processo administrativo próprio, com garantia de contraditório e ampla defesa, além de deliberação por votação secreta no Conselho Universitário, exigindo aprovação de pelo menos 3/5 dos votos.

O parecer também analisou outras recomendações da CMV, manifestando apoio à maioria delas, como o fortalecimento de acervos históricos, a criação de programas de extensão sobre memória e direitos humanos e a realização de sessões solenes de desagravo. Contudo, opôs-se à reabertura de casos históricos, apontando fragilidades jurídicas na proposta.

A sessão foi marcada por embates intensos. A advogada Heloísa Blasi criticou a formação da comissão instituída pela Resolução 7/2023 – responsável por analisar o relatório – e acusou o Conselho de cercear o direito de defesa ao divulgar o documento antes de conceder acesso oficial à família. Em contrapartida, o conselheiro Lucas Edcuardo Brum argumentou que a petição funcionou como um recurso intempestivo e desviou o foco da discussão. Ele enfatizou que o debate não se trata de um julgamento moral do ex-reitor, mas sim de uma análise sobre os excessos cometidos pela UFSC durante o regime militar. Lucas também destacou que documentos apresentados pela CMV comprovam que João David Ferreira Lima colaborou ativamente com a ditadura, delatando membros da comunidade universitária.

Outros conselheiros, como Luiza Costa Pereira e Tiago Montagna, defenderam o rigor metodológico do relatório da CMV, afirmando que há evidências claras da colaboração do ex-reitor com o regime de 1964. Eles questionaram se é adequado manter o nome do campus Trindade associado a alguém que comprovadamente apoiou atos autoritários. O conselheiro Alex Degan reforçou essa perspectiva, argumentando que a decisão sobre as homenagens reflete mais sobre os valores da própria UFSC do que sobre o legado do ex-reitor.

A conselheira Sofia Garcia, representando os estudantes, fez um apelo emocionado, conectando o debate às questões atuais da universidade, como fome, precarização e violência. Ela afirmou que a revogação da homenagem ao ex-reitor é uma questão de dignidade e história, defendendo que o nome do campus deve honrar os valores da instituição.

Em 6 de maio, durante uma sessão extraordinária, o debate foi retomado. Discursos contundentes trouxeram à tona questões históricas, políticas e éticas. O conselheiro Renato Ramos Milis destacou a importância de honrar aqueles que enfrentaram a repressão militar, como Derlei Catarina de Luca e Adolfo Luiz Dias, que, segundo ele, não recebem o devido reconhecimento. Ele apelou pela aprovação imediata da retirada da homenagem, utilizando como argumento o relatório da CMV e o impacto das perseguições vividas por membros da universidade.

O professor Paulo Pinheiro Machado, integrante da comissão que analisou as recomendações da CMV, destacou que as conclusões do relatório foram baseadas em documentos assinados pela administração da UFSC e pelo próprio ex-reitor. Ele apresentou evidências, como o inquérito do AI-1 de 1964 e correspondências que apontam colaborações com órgãos de repressão. Também relatou que a família Ferreira Lima, apesar de solicitada, não apresentou documentos que refutassem as informações da CMV. “O nome do campus é um patrimônio da UFSC, não um bem pessoal ou de herança”, afirmou, defendendo que o conselho já possui elementos suficientes para deliberar.

Por outro lado, Gabriel Ferreira Lima, neto do ex-reitor, defendeu a memória de seu avô, afirmando que ele usou seus relacionamentos para evitar punições mais severas a estudantes e funcionários durante o regime militar. Ele sugeriu uma consulta pública para decidir o futuro do nome do campus, argumentando que o debate deveria primar pelo rigor acadêmico.

A conselheira Carmen Maria Olivera Muller rebateu as alegações de Gabriel, destacando que as recomendações da CMV foram aprovadas em 2018 e que o processo foi transparente. Ela criticou a concessão da homenagem ao ex-reitor, feita sem consulta pública, e lembrou o sofrimento de perseguidos pela ditadura, como o professor José do Patrocínio Galote, que ficou três anos sem poder exercer sua profissão.

O relator apresentou uma versão revisada de seu parecer, incorporando sugestões como a inclusão de critérios de simetria e a previsão de consultas públicas para a concessão ou revogação de homenagens. Apesar do avanço do debate, a votação foi adiada após pedidos de vistas ao processo por parte de dois conselheiros.

Nesta sexta-feira, 6 de junho, a sessão que deliberou sobre o pedido de impugnação do relatório final da CMV-UFSC foi marcada por intensos debates. O parecer do relator Ubirajara Franco Moreno foi contrário ao acolhimento da petição, argumentando que não havia elementos suficientes para justificar a revisão, correção ou anulação do relatório.

A advogada Heloísa Blasi Rodrigues, representante da parte que solicitou a impugnação, protestou contra a decisão de limitar seu tempo de fala, classificando a medida como “cerceamento de defesa”. Em sua intervenção, ela questionou a solidez das provas apresentadas no relatório e defendeu que as investigações realizadas em 1964, a pedido do Ministério da Educação, não resultaram em demissões ou expulsões. Blasi destacou que o processo teria sido extraviado e nunca chegou ao Ministério.

Os argumentos da advogada foram rebatidos pelos conselheiros, que defenderam a autonomia da universidade e a importância de enfrentar a história institucional. O conselheiro Alex Degan destacou que o Conselho Universitário estava avaliando “um parecer”, e não condenando indivíduos. Ele reforçou que a decisão de alterar homenagens é de direito da universidade, lamentando que “as famílias que sobreviveram nunca foram ouvidas nesse processo”.

O conselheiro Jorge Balster contextualizou o debate dentro de um cenário político que, segundo ele, flerta com o autoritarismo. Ele criticou a pressão externa exercida por políticos, setores da mídia e empresários, reafirmando que a autonomia universitária é essencial para o cumprimento do dever da instituição. “É uma condição para que possamos cumprir com a nossa missão”, declarou.

Já o conselheiro Daniel Castelan celebrou a transparência do processo e afirmou que o relatório da CMV trouxe à tona documentos que comprovam que o ex-reitor Ferreira Lima colaborou com a repressão militar, entregando estudantes e professores aos órgãos de controle da ditadura. Ele classificou o pedido de impugnação como uma tentativa de censura de informações.

O conselheiro Luiz Felipe Barros de Paiva reforçou a legitimidade do relatório aprovado em 2018, destacando que ele contém “farta documentação comprovatória das sepulturas transparentes de direitos humanos”. Ele também refutou as alegações da advogada sobre o desaparecimento de documentos, afirmando que os 11 processos analisados ​​pela comissão estão devidamente registrados e que as informações contestadas eram “inverdades”.

A perspectiva estudantil foi trazida pela conselheira Sofia Garcia, que defendeu o relatório como um instrumento essencial para enfrentar os fatos históricos. Ela destacou a importância de “abrir as portas dos porões da ditadura” e relacionou o debate a questões contemporâneas, ressaltando que o ato é uma luta por “memória, verdade e justiça”. Para Sofia, a retirada da homenagem ao ex-reitor Ferreira Lima é uma resposta necessária às pressões externas que tentam “apagar” a história.

O conselheiro Renato Milis questionou o momento do pedido de impugnação, levantando a suspeita de que a iniciativa só surgiu após a possibilidade de retirada do nome de Ferreira Lima do campus ter sido cogitada. Ele destacou o apoio recebido pela defesa dos setores como a OAB, a imprensa e os empresários, ressaltando que o objetivo real seria a preservação de interesses ligados ao poder. “A ditadura não é uma questão de interpretação”, afirmou.

 

Rosiani Bion de Almeida / SECOM UFSC
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