Sessão histórica: Conselho Universitário decide pelo caminho da memória e reparação

Conselho Universitário retoma discussões sobre o relatório final da CMV-UFSC. (Fotos: Gustavo Diehl/Agecom/UFSC)
As duas primeiras pautas da sessão ordinária do Conselho Universitário (CUn) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), realizada na tarde desta sexta-feira, 6 de junho, retomaram as discussões sobre o relatório final da Comissão Memória e Verdade (CMV). A reunião, considerada histórica para a instituição, ocorreu no Auditório da Reitoria e contou com ampla participação da comunidade, interna e externa, além de ser transmitida ao vivo pelo canal do YouTube do CUn.
A controvérsia em torno do relatório da CMV segue como um dos debates mais sensíveis da história recente da UFSC, envolvendo memória, reparação e o papel da Universidade durante o regime autoritário. Criada em 2014, a CMV tinha como objetivo investigar violações de direitos humanos ocorridas na instituição durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Ao longo de quatro anos, a Comissão analisou mais de 1.500 documentos históricos, coletou depoimentos de vítimas e testemunhas, e promoveu audiências públicas. Em 2018, apresentou um relatório final com 12 recomendações, incluindo a reavaliação de homenagens a figuras ligadas a denúncias e perseguições no período. O documento foi aprovado por unanimidade pelo Conselho Universitário à época.
A sessão desta sexta-feira deveria ter ocorrido em 30 de maio, mas foi adiada após decisão judicial liminar (Mandado de Segurança nº 5018339-27.2025.4.047200/SC), impetrada pela família Ferreira Lima contra a UFSC. A liminar determinou que a Universidade “se abstenha de deliberar ou praticar qualquer ato que importe na revogação das homenagens conferidas ao ex-reitor João David Ferreira Lima — especialmente quanto à alteração do nome do campus universitário — até que haja decisão expressa e definitiva do Conselho Universitário sobre a impugnação apresentada no Processo nº 23080.000600/2023-25”.
Primeira decisão
O primeiro item da pauta foi a análise do processo nº 23080.000600/2023-25, que trata do pedido de impugnação ao relatório final da CMV apresentado pela advogada Heloísa Blasi Rodrigues, representante da família Ferreira Lima. A petição alega que o relatório atribuiu “fatos e juízos de valor lesivos à honra e à memória do ex-Reitor João David Ferreira Lima”, sem observância dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do direito de resposta proporcional ao agravo. A relatoria ficou sob responsabilidade do conselheiro Ubirajara Franco Moreno.
Em seu parecer, o conselheiro relator argumentou que o pedido configura um legítimo exercício do direito de petição, garantido pela Constituição Federal, e que cabe ao Conselho Universitário deliberar sobre o caso, já que a CMV foi instituída por esse órgão. No entanto, concluiu que o relatório final da Comissão possui “natureza eminentemente histórica e memorialística, voltada à reconstrução da memória institucional e à promoção do direito à verdade histórica”, e que o documento “não gera efeitos jurídicos concretos que possam ser anulados ou reformados mediante impugnação administrativa”, dado que suas atividades “não têm caráter jurisdicional ou persecutório, mas sim esclarecedor”.
Apesar disso, o parecer acolheu duas demandas apresentadas na petição. A primeira é a recomendação para que a obra “UFSC: Em Nome da Verdade”, de autoria de Heloísa Blasi Rodrigues, seja disponibilizada no Instituto Memória e Direitos Humanos e na Biblioteca Universitária, garantindo “amplo acesso à comunidade acadêmica”. A segunda é a limitação do escopo de atuação da CMV ao período estabelecido pela Lei nº 12.528/2011 — de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988. Segundo o conselheiro, “questões relativas à aquisição da Casa da Rua Bocaiúva e eventuais controvérsias entre os professores João David Ferreira Lima e Henrique da Silva Fontes não guardam relação com violações de direitos humanos” e, portanto, não devem ser consideradas nos trabalhos da Comissão.
Quanto à retirada de homenagens ao ex-Reitor, incluindo a alteração do nome do campus da Trindade, o conselheiro destacou que tal decisão deve ser tomada “exclusivamente mediante decisão do Conselho Universitário, em processo administrativo próprio, com a garantia do contraditório, da ampla defesa e da oitiva da família do homenageado, devidamente representada por sua procuradora”. Ele também solicitou “a averiguação e apuração de responsabilidades pela dilação na resposta à petição encaminhada”, dado o caráter preventivo do pedido e a idade avançada do requerente.
Por fim, o parecer acolheu a recomendação para a elaboração de uma resolução específica que regulamente a preservação da memória institucional e a proteção da comunidade universitária contra violações de direitos humanos. Segundo Ubirajara, essa medida “visa fortalecer os compromissos institucionais da UFSC com a promoção da verdade, da memória e da defesa dos direitos fundamentais”. Após os debates, o parecer foi aprovado por maioria, com apenas um voto contrário.
Segunda decisão
O segundo item da pauta tratou do processo nº 23080.018179/2024-90, de autoria de Daniel Ricardo Castelan, que aborda os encaminhamentos das recomendações do relatório final da CMV. Nesse caso, além do parecer do conselheiro Ubirajara Franco Moreno, os conselheiros Alex Degan e Amanda Zamboni apresentaram um parecer conjunto como relatores de vista.
Os conselheiros Alex e Amanda concordaram integralmente com as Recomendações 1, 2, 3, 4, 7, 10, 11 e 12, que incluem ações como a ampliação dos acervos históricos da UFSC, a criação de um programa de extensão sobre memória e direitos humanos, e a recuperação do edifício do Centro de Convivência, sede do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Eles recomendaram que a UFSC “apresente, ainda no tempo da atual gestão, um plano para recuperação do edifício”.
Sobre a Recomendação 8, que propõe a reabertura de casos revelados pelo relatório, os conselheiros reconheceram as limitações jurídicas apontadas no parecer original. Eles reforçaram que a UFSC deve “colaborar ativamente, uma vez provocada judicialmente, com indivíduos e instituições que mobilizem aparato jurídico em torno de casos e histórias revelados pelo relatório” e facilitar o acesso a documentos relevantes para pesquisadores.
A Recomendação 6, que trata da reavaliação de homenagens, recebeu especial atenção. Os conselheiros sugeriram que a alteração do nome do Campus Universitário Reitor João David Ferreira Lima seja deliberada em uma sessão especial do CUn, no prazo de até uma semana, respeitando o Artigo 17º do Estatuto da UFSC, que exige “a aprovação por três quintos do total de seus membros”. Eles enfatizaram que o escrutínio deve ser por voto aberto, como na concessão do nome atual.
Os conselheiros destacaram a relevância pedagógica do debate, citando Theodor Adorno: “Não se pode simplesmente esquecer o que passou. É necessário esclarecer os motivos que tornaram a barbárie algo realizável”. Para Alex e Amanda, a UFSC assumiu seu papel educativo ao promover o debate, alinhando-se às reflexões de Adorno e Walter Benjamin, que defendem o uso da memória coletiva como ferramenta de transformação social.
O relator Ubirajara manifestou concordância com o parecer de vista, especialmente sobre a realização de uma sessão exclusiva para tratar da mudança do nome do campus. Ele esclareceu que a atribuição do nome ao campus foi feita como uma alteração do estatuto, e não em uma categoria formal de “homenagem”, o que reforça a proposta de tratá-la como uma reforma estatutária. Diante da concordância, o relator se dispôs a retirar seu parecer original para que fosse votado o de vista.
Ao final da discussão, o parecer de vista conjunto foi aprovado por maioria, com apenas dois votos contrários. Esta decisão estabeleceu que a votação sobre a alteração do nome do campus-sede da UFSC ocorrerá, em sessão especial, na próxima semana.
Retrospectiva do debate
Os debates sobre as recomendações da Comissão Memória e Verdade (CMV) da UFSC têm mobilizado intensamente a comunidade acadêmica e a sociedade civil, gerando divisões e emoções acirradas. Entre as 12 recomendações do relatório final, aprovado em 2018, a que tem mais gerado polêmica é a sexta, que sugere a retirada do nome do ex-reitor João David Ferreira Lima do campus-sede da Universidade, no bairro Trindade, Florianópolis. A homenagem foi concedida em 2003, antes do conhecimento de documentos que apontam a colaboração de sua gestão com o regime militar.
A primeira sessão do CUn sobre esta pauta ocorreu em 29 de abril, durante uma reunião ordinária que precisou ser transferida para o Auditório da Reitoria devido à ampla participação da comunidade universitária. O espaço ficou lotado por estudantes, servidores técnico-administrativos e professores, representantes da CMV e membros da família Ferreira Lima, com inscrições para falas aberta ao público. No centro do debate, estavam o relatório da CMV e a petição de impugnação apresentada em janeiro de 2023 pela advogada Heloísa Blasi Rodrigues, representando Davi Ferreira Lima, filho do ex-reitor.
O pedido foi tratado como um exercício legítimo do direito de petição e buscava impedir medidas que pudessem manchar a imagem do ex-reitor ou revogar o reconhecimento de suas contribuições à UFSC. Os argumentos apresentados incluíram alegações de violação ao contraditório, ampla defesa e direito de resposta, além de apontarem supostos vícios formais e materiais no relatório, como a extrapolação de seu escopo temporal e a seleção parcial de fontes. Entre os pedidos, destacaram-se a manutenção das homenagens ao ex-reitor, a divulgação de provas apresentadas pela família e a limitação do relatório a fatos relacionados exclusivamente às violações de direitos humanos entre 1946 e 1988, conforme definido pela Lei 12.528/2011.
O conselheiro-relator acolheu parcialmente os argumentos da petição e recomendou a limitação do escopo do relatório a fatos relacionados a violações de direitos humanos ocorridas após 1964. Ele também excluiu episódios como a aquisição da casa da rua Bocaiúva e as controvérsias com Henrique Fontes, classificados como fora do marco legal. Quanto à revogação de homenagens, defendeu que decisões dessa natureza sigam um processo administrativo próprio, com garantia de contraditório e ampla defesa, além de deliberação por votação secreta no Conselho Universitário, exigindo aprovação de pelo menos 3/5 dos votos.
O parecer também analisou outras recomendações da CMV, manifestando apoio à maioria delas, como o fortalecimento de acervos históricos, a criação de programas de extensão sobre memória e direitos humanos e a realização de sessões solenes de desagravo. Contudo, opôs-se à reabertura de casos históricos, apontando fragilidades jurídicas na proposta.
A sessão foi marcada por embates intensos. A advogada Heloísa Blasi criticou a formação da comissão instituída pela Resolução 7/2023 – responsável por analisar o relatório – e acusou o Conselho de cercear o direito de defesa ao divulgar o documento antes de conceder acesso oficial à família. Em contrapartida, o conselheiro Lucas Edcuardo Brum argumentou que a petição funcionou como um recurso intempestivo e desviou o foco da discussão. Ele enfatizou que o debate não se trata de um julgamento moral do ex-reitor, mas sim de uma análise sobre os excessos cometidos pela UFSC durante o regime militar. Lucas também destacou que documentos apresentados pela CMV comprovam que João David Ferreira Lima colaborou ativamente com a ditadura, delatando membros da comunidade universitária.
Outros conselheiros, como Luiza Costa Pereira e Tiago Montagna, defenderam o rigor metodológico do relatório da CMV, afirmando que há evidências claras da colaboração do ex-reitor com o regime de 1964. Eles questionaram se é adequado manter o nome do campus Trindade associado a alguém que comprovadamente apoiou atos autoritários. O conselheiro Alex Degan reforçou essa perspectiva, argumentando que a decisão sobre as homenagens reflete mais sobre os valores da própria UFSC do que sobre o legado do ex-reitor.
A conselheira Sofia Garcia, representando os estudantes, fez um apelo emocionado, conectando o debate às questões atuais da universidade, como fome, precarização e violência. Ela afirmou que a revogação da homenagem ao ex-reitor é uma questão de dignidade e história, defendendo que o nome do campus deve honrar os valores da instituição.
Em 6 de maio, durante uma sessão extraordinária, o debate foi retomado. Discursos contundentes trouxeram à tona questões históricas, políticas e éticas. O conselheiro Renato Ramos Milis destacou a importância de honrar aqueles que enfrentaram a repressão militar, como Derlei Catarina de Luca e Adolfo Luiz Dias, que, segundo ele, não recebem o devido reconhecimento. Ele apelou pela aprovação imediata da retirada da homenagem, utilizando como argumento o relatório da CMV e o impacto das perseguições vividas por membros da universidade.
O professor Paulo Pinheiro Machado, integrante da comissão que analisou as recomendações da CMV, destacou que as conclusões do relatório foram baseadas em documentos assinados pela administração da UFSC e pelo próprio ex-reitor. Ele apresentou evidências, como o inquérito do AI-1 de 1964 e correspondências que apontam colaborações com órgãos de repressão. Também relatou que a família Ferreira Lima, apesar de solicitada, não apresentou documentos que refutassem as informações da CMV. “O nome do campus é um patrimônio da UFSC, não um bem pessoal ou de herança”, afirmou, defendendo que o conselho já possui elementos suficientes para deliberar.
Por outro lado, Gabriel Ferreira Lima, neto do ex-reitor, defendeu a memória de seu avô, afirmando que ele usou seus relacionamentos para evitar punições mais severas a estudantes e funcionários durante o regime militar. Ele sugeriu uma consulta pública para decidir o futuro do nome do campus, argumentando que o debate deveria primar pelo rigor acadêmico.
A conselheira Carmen Maria Olivera Muller rebateu as alegações de Gabriel, destacando que as recomendações da CMV foram aprovadas em 2018 e que o processo foi transparente. Ela criticou a concessão da homenagem ao ex-reitor, feita sem consulta pública, e lembrou o sofrimento de perseguidos pela ditadura, como o professor José do Patrocínio Galote, que ficou três anos sem poder exercer sua profissão.
O relator apresentou uma versão revisada de seu parecer, incorporando sugestões como a inclusão de critérios de simetria e a previsão de consultas públicas para a concessão ou revogação de homenagens. Apesar do avanço do debate, a votação foi adiada após pedidos de vistas ao processo por parte de dois conselheiros.
Nesta sexta-feira, 6 de junho, a sessão que deliberou sobre o pedido de impugnação do relatório final da CMV-UFSC foi marcada por intensos debates. O parecer do relator Ubirajara Franco Moreno foi contrário ao acolhimento da petição, argumentando que não havia elementos suficientes para justificar a revisão, correção ou anulação do relatório.
A advogada Heloísa Blasi Rodrigues, representante da parte que solicitou a impugnação, protestou contra a decisão de limitar seu tempo de fala, classificando a medida como “cerceamento de defesa”. Em sua intervenção, ela questionou a solidez das provas apresentadas no relatório e defendeu que as investigações realizadas em 1964, a pedido do Ministério da Educação, não resultaram em demissões ou expulsões. Blasi destacou que o processo teria sido extraviado e nunca chegou ao Ministério.
Os argumentos da advogada foram rebatidos pelos conselheiros, que defenderam a autonomia da universidade e a importância de enfrentar a história institucional. O conselheiro Alex Degan destacou que o Conselho Universitário estava avaliando “um parecer”, e não condenando indivíduos. Ele reforçou que a decisão de alterar homenagens é de direito da universidade, lamentando que “as famílias que sobreviveram nunca foram ouvidas nesse processo”.
O conselheiro Jorge Balster contextualizou o debate dentro de um cenário político que, segundo ele, flerta com o autoritarismo. Ele criticou a pressão externa exercida por políticos, setores da mídia e empresários, reafirmando que a autonomia universitária é essencial para o cumprimento do dever da instituição. “É uma condição para que possamos cumprir com a nossa missão”, declarou.
Já o conselheiro Daniel Castelan celebrou a transparência do processo e afirmou que o relatório da CMV trouxe à tona documentos que comprovam que o ex-reitor Ferreira Lima colaborou com a repressão militar, entregando estudantes e professores aos órgãos de controle da ditadura. Ele classificou o pedido de impugnação como uma tentativa de censura de informações.
O conselheiro Luiz Felipe Barros de Paiva reforçou a legitimidade do relatório aprovado em 2018, destacando que ele contém “farta documentação comprovatória das sepulturas transparentes de direitos humanos”. Ele também refutou as alegações da advogada sobre o desaparecimento de documentos, afirmando que os 11 processos analisados pela comissão estão devidamente registrados e que as informações contestadas eram “inverdades”.
A perspectiva estudantil foi trazida pela conselheira Sofia Garcia, que defendeu o relatório como um instrumento essencial para enfrentar os fatos históricos. Ela destacou a importância de “abrir as portas dos porões da ditadura” e relacionou o debate a questões contemporâneas, ressaltando que o ato é uma luta por “memória, verdade e justiça”. Para Sofia, a retirada da homenagem ao ex-reitor Ferreira Lima é uma resposta necessária às pressões externas que tentam “apagar” a história.
O conselheiro Renato Milis questionou o momento do pedido de impugnação, levantando a suspeita de que a iniciativa só surgiu após a possibilidade de retirada do nome de Ferreira Lima do campus ter sido cogitada. Ele destacou o apoio recebido pela defesa dos setores como a OAB, a imprensa e os empresários, ressaltando que o objetivo real seria a preservação de interesses ligados ao poder. “A ditadura não é uma questão de interpretação”, afirmou.
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