Pesquisa da UFSC analisa consequências sociais e políticas de ações das Forças Armadas voltadas a civis

02/12/2024 13:30

Ilustração: Laura Araujo/NADC/UFSC

Qual deveria ser a relação das Forças Armadas (FA) com a sociedade civil em uma democracia? Essa é uma das questões que o trabalho da professora Anaís Medeiros Passos, do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tenta responder. A pesquisadora produziu um mapeamento das ações cívico-sociais (Acisos) realizadas pelo Exército Brasileiro, que revela consequências do histórico das relações entre as instituições civis e militares no Brasil. Entre elas, a percepção de que há uma conexão entre a atuação do Exército na segurança e o desenvolvimento do país.

Direcionadas à sociedade civil em áreas como saúde, assistência social, educação e infraestrutura, as Acisos têm como objetivo obter apoio de parte da população e reforçar uma imagem positiva sobre as Forças Armadas. São destinadas a diferentes públicos: grupos sociais vulneráveis (de acordo com a perspectiva militar), famílias de militares e pessoas que vivem próximas aos quartéis. Também acontecem em situações nas quais o Exército opera por meio da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o que lhes concede permissão para ocupar funções de polícia. A pesquisa da professora buscou identificar quais são os tipos dessas ações, a fim de produzir conhecimento para os tomadores de decisão.

De um lado, há a assistência social prestada pelo Exército nesses lugares e, de outro, sua ação repressiva. De acordo com Anaís, as Acisos são uma forma de contato direto dos militares com a população, sem nenhuma forma de monitoramento. Elas ganham ainda mais força em regiões como a fronteira norte da Amazônia, na qual a presença do Estado é reduzida. “Delegamos muito poder para os militares lá”, explica a professora. “Não apenas porque eles estão ocupando aquele espaço, mas também porque ninguém, nenhum outro órgão, entra nessa disputa”. 

A lacuna acaba elevando o protagonismo das ações e reforça certo teor de propaganda em algumas medidas. Para Anaís, elas buscam construir uma imagem confiável sobre a instituição militar que está a serviço da população.

Por que colocar em debate a realização das Acisos?

Apesar de parecerem inócuas, as Acisos fazem parte da construção histórica do papel dos militares na democracia brasileira e da relação das Forças Armadas com a sociedade civil no país. “O Exército é a primeira instituição verdadeiramente nacional a se formar, com funções de desenvolvimento nacional, de construção da infraestrutura, um pouco da expansão da colonização interna do país”, explica Anaís. Esse é um dos motivos pelo qual militares continuam realizando operações internas no Brasil, uma característica comum em países da América Latina, ao invés de ter sua atuação focada principalmente na defesa externa.

A docente relata que os militares desempenham papel de polícia desde a Independência, em 1822, e há certo desinteresse por parte da esfera pública em destituí-los dessas funções. Isso se dá, em parte, à transição entre a ditadura militar e a democracia. “Os militares mantiveram muita influência no aparelho político”, reflete a pesquisadora. “Como sociedade a gente não escrutina o que os militares fazem. Por isso, eles têm muita autonomia”.

Por meio de levantamento e interpretação dos dados, a pesquisa contribui para qualificar o debate sobre o papel que as Forças Armadas desempenham nacionalmente, uma discussão que, segundo Anaís, ainda dá pouco espaço às perspectivas da sociedade civil e de quem estuda o assunto. “É importante olhar para o que os militares fazem dentro do país e entender que tipo de Forças Armadas nós temos. É eficiente direcioná-los para o papel de assistência social? Ou podemos direcionar esses esforços para uma política de defesa eficiente, alinhada com a política externa?”. 

A expectativa é que os dados possam servir ao Congresso Nacional e às demais entidades implicadas para a tomada de decisões capazes de consolidar o controle civil sobre os militares e reorientar as suas funções.

Como foi feita a pesquisa?

Os dados sobre as Acisos — que tipos de ações estão sendo realizadas, com quais públicos e em quais lugares — foram coletados a partir de fontes do próprio Exército. Como ações de propaganda, são noticiadas frequentemente nos canais de comunicação da instituição. Esse levantamento totalizou mais de 300 notícias sobre diferentes ações cívico-sociais, sistematizadas em uma tabela descritiva e classificadas de acordo com o tipo e o conteúdo de cada ação.

Atividades implementadas (2017-2022)
1. Relações Públicas Palestras, apresentações de bandas militares, exposições de equipamentos, hasteamento de bandeiras 196
2. Saúde Assistência médica e odontológica, ações de prevenção em saúde 173
3. Assistência social Distribuição de alimentos, medicamentos e roupas; cortes de cabelo; emissão de documentos; assistência a refugiados 172
4. Educação Atividades recreativas e oferta de cursos para crianças; doação de presentes 121
5. Interinstitucionais Acisos em cooperação com outros órgãos do Estado ou empresas privadas 66
6. Infraestrutura Serviços de manutenção, pintura e reparos para escolas e outros edifícios públicos 34

 

Públicos-alvo das Acisos (2017-2022)
1. Público geral 172
2. Juventude Jovens de baixo nível socioeconômico, escolas públicas, orfanatos 149
3. População vulnerável Hospitais e abrigos 120
4. Indígenas População indígena e ribeirinha 47
5. Militares Famílias de militares, instituições militares e seu entorno 43
6. População afligida Afetados por desastres naturais, refugiados 33
7. Trabalhadores Moradores de bairros de trabalhadores 22

Por meio do mapeamento, descobriu-se que as ações estão distribuídas entre as áreas de relações públicas, saúde, assistência social, infraestrutura, educação e segurança pública, geralmente em cooperação com outras agências estaduais. A maioria das ações é direcionada ao público geral, seguido dos jovens (crianças de orfanato, com baixo nível socioeconômico ou de escolas públicas). Outros grupos incluem pessoas em hospitais e abrigos, comunidades indígenas, população ribeirinha, pessoas afetadas por desastres naturais e imigrantes. Também estão incluídas as famílias de militares, as próprias instituições e o entorno de instalações do Exército.

Os dados revelam consequências do desenvolvimento histórico das relações entre as instituições civis e militares no Brasil. Segundo Anaís, as Acisos passaram a ter um objetivo distinto daquele ao início de sua implementação, em 1966. “O Exército Brasileiro mudou de combater insurgências para garantir a ordem social dentro das fronteiras nacionais”, concluiu a pesquisadora no artigo Da contrainsurgência às Operações de Garantia da Lei e da Ordem: uma análise das ações cívico-sociais implementadas pelo Exército Brasileiro (publicado em inglês). Apesar da troca de propósitos, a relação de causa que justifica até hoje as Acisos permanece inalterada: a ideia de que a atuação do Exército na segurança está diretamente ligada ao desenvolvimento do país.

Ilustração: Laura Araujo/NADC/UFSC

O mapeamento de dados contou com o auxílio dos estudantes Larissa Miranda Domingos, Fabiano Carlos Fuchs e Yara Firmino Camargo, do curso de graduação em Ciências Sociais da UFSC. Todos colaboraram como bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), que busca incentivar o interesse e o contato de alunos de universidades com a pesquisa acadêmica. Durante o processo, aprofundaram as discussões teóricas sobre o tema geral do estudo e aprenderam sobre metodologias de pesquisa, sistematização e interpretação de dados qualitativos. 

As fases seguintes resultaram do período de Anaís como professora visitante do King’s College London, no Reino Unido, entre junho e agosto deste ano. Lá, ela participou da construção do relatório Capacidades Parlamentares em Defesa e Segurança no Brasil, em parceria com pesquisadores brasileiros e britânicos. O documento apresenta dados e recomendações para o Congresso Nacional do Brasil em questões relacionadas à defesa e à segurança. O objetivo da obra é contribuir para a promoção das relações civis-militares no país envolvendo a participação ativa da sociedade civil.

Por fim, a última etapa da pesquisa abrangeu visitas à Câmara de Deputados e ao Senado, bem como a instituições militares para a realização de entrevistas. Os dados estão em processo de análise e devem ser publicados em breve na forma de artigo.

Com essa pesquisa já em fase de encerramento, Anaís se volta agora para um projeto do CNPq que investiga políticas de repressão ao tráfico de drogas no Brasil, México, Caribe e América Central, uma colaboração entre as instituições: Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal do Amapá (Unifap), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), University of West Indies (UWI), Instituto Tecnologico Y de Estudios Superiores de Monterrey (ITESM), University for Peace (Upeace) e Universidad Autónoma de Baja California (UABC).

Foto: Gabriela Grillo/NADC/UFSC

Sobre a pesquisadora

Anaís Medeiros Passos é professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Ciência Política (PPGSP). É integrante do Instituto de Memória e Direitos Humanos (IMDH) da UFSC. Participa da gestão da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, e coordena o grupo de pesquisa Políticas de Segurança, Militares e Democracia na América Latina.

Contato: anais.passos@ufsc.br

Reportagem: Gabriela Bregolin Grillo | Jornalista / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica
Edição: Dairan Paul | Jornalista / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica
Ilustrações: Laura Araujo | Estudante de Design / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica

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