Chumbo no chá? Pesquisa da UFSC identifica impacto da mineração em alimentos

01/09/2023 10:32

Áreas de mineração estão cobertas de produtos utilizados na alimentação (Foto: Graziela Blanco)

Plantas usadas como alimentos e chás podem estar contaminadas pelos chamados “elementos traço” em áreas da região carbonífera, no sul de Santa Catarina. A constatação foi divulgada em uma série de artigos e na tese da cientista Graziela Dias Blanco, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina. O impacto das atividades de mineração, além dos prejuízos ao meio ambiente, também pode chegar à saúde. O estudo Soberania, segurança alimentar e ecotoxicidade de alimentos e plantas medicinais consumidos por comunidades locais em áreas de mineração foi orientado pela professora Natalia Hanazaki, com co-orientação da professora Mari Lucia Campos.

Pelo menos 65% dos habitantes da região mapeada pela pesquisa relataram coletar plantas para uso medicinal e alimentar diretamente de áreas contaminadas pela atividade mineradora. “As pessoas que vivem nas proximidades de áreas contaminadas pela mineração usam e consomem plantas destes ambientes e as pessoas sabem pouco sobre o potencial perigo dessa contaminação em seus alimentos e o risco desses contaminantes para sua saúde”, assinala, no estudo.

Graziela se interessou pelo assunto quando foi visitar a região de Criciúma, Lauro Muller e Siderópolis em busca de dados para uma pesquisa sobre plantas medicinais. No entanto, ao chegar ao local, percebeu um mosaico de áreas impactadas pela atividade mineradora e mudou o objeto de investigação. “A gente vê, por exemplo, moradias na cidade de Criciúma muito próximas à área de mineração abandonada, sem avisos ou preocupação. É uma situação extremamente grave”, analisa.

Ela fez 195 entrevistas com moradores de 14 áreas próximas a minas abandonadas nos principais municípios da região carbonífera catarinense. “Perguntamos a cada entrevistado sobre o tempo que morava na região, sua percepção da qualidade do ambiente, quais espécies de plantas eram utilizadas e com que finalidade”, conta. Carqueja, goiabeira e erva-doce foram algumas das espécies citadas.

Nas entrevistas, ela também identificou que todos os homens e nenhuma das mulheres trabalhavam ou já haviam trabalhado em mineradoras. Em Santa Catarina, existe um plano de recuperação para essas áreas em razão de uma ação do Ministério Público Federal, que exigiu que as empresas e a União recuperassem as áreas degradadas pela mineração, áreas com depósitos de rejeitos e minas abandonadas. Os recursos hídricos das bacias dos rios Araranguá, Urussanga e Tubarão também foram indicados como foco da ação.

No estudo, a pesquisadora lembra que as atividades de mineração geram conflitos socioambientais no mundo todo. Em SC, há casos recentes de comunidades exigindo providências para recuperação de danos ambientais decorrentes da atividade. Entre os impactos mais evidentes, estão a remoção da vegetação local, intensificação na emissão de CO2 e contaminação do solo e recursos hídricos por elementos-traço.

Graziela combinou informações de entrevistas e da coleta de plantas e do solo na região carbonífera e analisou se o consumo de uma espécie de carqueja (B. sagittales) representava um risco para a saúde humana. Entre os elementos analisados, o Cádmio (Cd) e o Chumbo (Pb) apresentaram níveis superiores aos recomendados por três agências globais de saúde. O cádmio, em exposições elevadas, pode ser prejudicial ao rim e ossos. Já o chumbo pode prejudicar uma série de funções, atingindo cérebro, sangue e sistemas digestivo e reprodutor.

Consumo

Na investigação, a pesquisadora também demonstra que Cd e Pb apresentaram níveis elevados nas projeções de ingestão diária do chá de carqueja, recomendadas por agências internacionais de saúde, sendo citada por 53,8% dos entrevistados que consomem esta plantas.

A carqueja é amplamente consumida na região, sendo utilizada no preparo de chás e no consumo do chimarrão. “Nosso estudo demonstra que o consumo de B. sagittalis contaminado com elementos-traço pode são um alerta para a saúde, pois esses elementos se acumulam no organismo humano”.

A pesquisadora observou a ocorrência espontânea de plantas que são usadas para chás e o cultivo de algumas espécies alimentícias muito próximo a essas áreas que foram mineradas “Na pesquisa observei que mais de 80% das pessoas utilizam os recursos, seja para alimentação, seja para medicina. Às vezes até utilizam aquele espaço para plantar porque no seu terreno não tem como e cultivam ali algum tipo de hortaliça ou algum tipo de planta medicinal”. Isso, claro, desconhecendo os riscos à saúde e o fato de estarem ocupando uma área que foi minerada.

A: Área de extração mineral de carvão abandonada na localidade de Rio Carvão/Urussanga; B: Área abandonada após de extração mineral de carvão e presença de Baccharis sagittalis na localidade de Rio Fiorita/Criciúma.

Graziela explica que há espécies que, apesar da toxicidade dos metais pesados identificados no solo, conseguem se desenvolver com uma aparência robusta e saudável. No caso da carqueja investigada no estudo, há um agravante: o fato de ela ser extremamente bioacumuladora. “Os resultados também revelam a falta de informações sobre a contaminação para a população periférica às áreas, bem como a falta de ações que incluam as comunidades locais nas estratégias de restauração de áreas contaminadas”, pondera, na pesquisa.

Segundo a pesquisadora, grande parte das áreas estão sob responsabilidade da União, mas não há cercas nem sinalização dos riscos que podem gerar. Para ela, esse é um dos principais problemas: a ausência de informações. “Nas entrevistas, eu perguntava se as pessoas sabiam que poderiam existir riscos, se alguém já tinha ido conversar sobre a presença de metais na área. 100% das respostas foi não”.

Segurança alimentar de Povos Indígenas e Comunidades Locais (PICLs)

 

Sobreposição da região carbonífera e de comunidades tradicionais no sul do Brasil. Em amarelo está indicada a região com maior atividade de extração mineral de carvão (Reprodução do estudo)

 

O estudo de Graziela indica que a combinação de mineração, desigualdade social e políticas ambientais insuficientes causam um impacto negativo significativo na segurança alimentar da comunidade. “Buscamos entender quais fatores poderiam estar influenciando no uso desses recursos, mesmo em áreas visivelmente impactadas”, indica.

Para isso, descreveu características ecológicas e o potencial bioacumulador das espécies que ocorrem ao longo do tempo em áreas que foram mineradas para extração de carvão. Em revisão realizada em estudos do mundo todo, percebeu que, ao longo do tempo, ambientes com impactos da mineração perdem essa riqueza. “A presença de espécies com potencial bioacumulador aumenta ao longo do tempo de abandono”.

A pesquisadora lembra que praticamente todo o carvão produzido no Brasil é extraído na região sul – região que, antes da chegada de imigrantes europeus, era habitada por Povos Originários Guarani e Xokleng. Esse cordão carbonífero formou um mosaico de áreas mineradas e abandonadas onde vivem comunidades rurais e urbanas.

“Estima-se que somente no estado de Santa Catarina existam mais de 6.500 ha de áreas que foram mineradas a céu aberto”, pontua. “O trabalho mostrou também que a ausência de políticas públicas bem estruturadas e em alinhamento com as diretrizes ambientais fragilizam a soberania alimentar das pessoas”.

A partir do estudo de 106 artigos que continham uma análise detalhada dos recursos alimentares utilizados pelos PICL em áreas de mineração, a pesquisa descobriu efeitos dessa atividade desde em recursos pesqueiros até frutas, verduras, carne e plantas medicinais utilizadas tradicionalmente por povos no mundo todo. “Estes povos ainda enfrentam muitas barreiras para uma participação efetiva na política e no planejamento da terra e da água”, ressalta Graziela.

Além da carqueja, as áreas estudadas pela pesquisadora também tinham plantio de hortaliças e frutas como a goiaba , que tem potencial biocomulador. “Fizemos o levantamento em campo do que, dentro daquela área, era consumido pelas comunidades”, comenta. Limão e laranja também estavam na lista de alimentos, assim como a popular “Marcela”, que também é base para chás.

A pesquisa revela ainda mais um ponto de interesse: é possível que os elementos decorrentes das atividades de mineração estejam se dispersando e atingindo outras áreas, que não deveriam estar comprometidas. “Os dados sobre o potencial de dispersão dos elementos-traço no ambiente e sua contaminação em áreas que não foram mineradas são preocupantes. Estes dados indicam que a contaminação dos solos e recursos hídricos de ambientes próximos a áreas mineradas pode estar ocorrendo e necessita acompanhamento e monitoramento”, finaliza.

Amanda Miranda/Jornalista da Agecom/UFSC

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