Inclusão, diversidade e inovação: conheça o Física Preta e sua idealizadora, pesquisadora da UFSC

16/04/2021 15:54

O projeto Física Preta, criado no início de 2020, trouxe um formato inovador e um novo elemento à história de Carleane Patrícia da Silva Reis, doutoranda em Física na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Natural de Imperatriz (MA), mas moradora de Florianópolis desde o mestrado, ela é a criadora do projeto, que conta com mais de 12.800 seguidores e vídeos com 1.900 visualizações. Com as redes, Carleane tem demonstrado a realidade de pertencimento de homens e mulheres negros nas ciências. A emoção em poder incluir quem antes se sentia à margem da produção científica e, por muitas vezes, nem mesmo sabia que poderia pertencer a esse local, é o que lhe motiva a continuar produzindo conteúdo. A partir da iniciativa, Carleane deseja construir parcerias com cursinhos pré-vestibulares gratuitos para abrir turmas de tutoria. 

“Geralmente as páginas de cientistas pretas e mulheres pretas na ciência trazem fotos de mulheres que já estão lá no topo, que descobriram alguma coisa, ou que já são professoras. Não tem muitas fotos de estudantes no dia a dia, das dificuldades que a gente passa, das dúvidas que a gente tem. Então eu pensei em aproximar mais as pessoas, mostrar mais a minha cara, mostrar como é o dia a dia, mostrar que eu também fico preocupada com as minhas notas, que eu não sou um prodígio que nasceu com a mente brilhante”. Essa diferença garantiu o sucesso tanto do perfil no Instagram como do canal no YouTube.

Carleane também está reativando um antigo grupo de estudos no WhatsApp. Quando foi criado, a ideia era que alunos negros da UFSC trocassem dicas de estudo e estudassem juntos para as matérias de seus cursos. Agora, além de Física e Matemática, será estudada a história de cientistas negros que contribuíram para a evolução da ciência. 

A inspiração em ver grandes potências femininas trabalhando nas áreas das exatas começou com outro projeto, em 2018: o Pretos nas Exatas. A iniciativa era demonstrar como mulheres negras faziam parte desse universo a partir de postagens que mostrassem essas figuras ao longo da história. Mas episódios de racismo fizeram com que a cientista suspendesse a conta. “Eu sofri uma enxurrada de ataques, ataques de ódio, pessoas mandando mensagens extremamente racistas, me ameaçando de alguma forma. E ali naquela época, eu não tava preparada para responder e ficar bem nessas situações. Eu preferi deixar de lado o Instagram e cuidar de mim, cuidar da minha saúde, cuidar do meu psicológico, e quando eu estivesse preparada eu voltaria de novo”

Nesse mesmo ano em que Carlene suspendeu o projeto, outros fatores contribuíram para o adoecimento psicológico da estudante. No ano eleitoral, foi vítima de racismo, nas ruas, por usar uma camiseta vermelha.  Para reverter esse problema, terapia e exercícios físicos foram essenciais. Após sentir que estava de volta nos eixos, o novo projeto começou a nascer. Com a publicação de um vídeo de divulgação científica do programa de pós-graduação, um comentário de uma menina chamou a atenção. “Ela falou assim ‘caramba, é a primeira vez que eu vejo uma cientista parecida comigo’. E aí eu pensei ‘talvez eu precise botar a minha cara nesse negócio’”. 

O começo de tudo

A jovem pesquisadora descobriu seu interesse pela Física antes mesmo de conhecer a matéria em si. A curiosidade para saber como as coisas funcionam já a acompanhava desde os 12 anos, e a presença de seu tio eletricista durante a infância, na casa da família, despertou o fascínio em consertar coisas quebradas e entender seus componentes.

Hoje, ela pesquisa supercapacitores e baterias, já com o objetivo de iniciar um pós-doutorado, mas foi no ensino médio, com a divisão da matéria de ciência em diferentes áreas, que Carleane aprendeu que seu desejo por entender o mundo tinha o nome de Física. A curiosidade da infância foi aprimorada e incentivada por seu professor, que mais tarde teve papel fundamental na escolha do curso superior.

A entrada na universidade não ocorreu com o término do ensino médio. “Como a minha família era basicamente eu, minha mãe, meu irmão e minha vó, eu acabei tendo que trabalhar para ajudar em casa. Eu deixei o sonho da Universidade um pouco de lado” relata Carleane. Foi em um desses empregos que a presença de um amigo mudou o rumo da sua trajetória. O colega de trabalho cursava Farmácia na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), e Carleane conversava sobre a universidade com muito interesse pelos cursos. 

Vendo a vontade da amiga de entrar para a graduação em Física, o colega pediu a senha e o acesso ao SISU e a inscreveu para o curso na UFMA e no Instituto Federal do Maranhão (IFMA). No dia seguinte, Carleane recebeu a notícia de que havia passado no vestibular. “Depois eu reencontrei esse amigo, assim que me formei, eu falei ‘cara, obrigada, se não fosse você talvez eu não estivesse aqui, eu poderia ter demorado mais”.

Questões de gênero

Foi no ambiente universitário que Carleane se deparou pela primeira vez com questões de gênero, já que dentro de sua turma apenas cinco colegas eram mulheres. Por conta disso, conversas e debates viraram parte da vida da estudante. “As meninas estão desistindo por falta de incentivo, por várias outras questões, mas eu percebi que com os debates, com as conversas, eu fui aprendendo, entendendo o que acontecia. Eu não percebia um incentivo vindo do curso porque a gente tinha pouca diversidade. Se você tem pouca diversidade essas questões acabam não surgindo, infelizmente.”

Mensagens como  “eu nunca tinha visto um cientista parecido comigo” e “por causa de você eu voltei a estudar para fazer o que eu quero” são recebidas em seu perfil com frequência.“Se sentir excluída é muito ruim, eu já passei por isso e ainda passo, então de alguma forma eu consegui mostrar pra essas pessoas que elas também pertencem e elas também podem fazer parte disso”. 

Carleane vê a participação de mais mulheres nas ciências como um símbolo de justiça social para essas pessoas, que foram historicamente excluídas. Além disso, a diversidade dentro de um laboratório contribui para a criação de resultados de maior impacto e qualidade, já que várias questões que antes eram negligenciadas ficam em evidência.

A percepção da diversidade se dá pela presença da diferença, e foi com o ingresso no mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina que Carleane se percebeu não apenas mulher, mas também negra. “Na UFMA a questão pra mim era que eu era uma mulher, porque a maioria dos meus colegas eram homens. Só que quando eu cheguei aqui e me deparei com a sala de aula que eu vi ‘cara, eu sou a única pessoa negra dessa turma’”. 

As diferenças culturais também foram marcantes, mas os quase 3.000 km de distância de sua terra natal foram compensados pelo encanto do curso e pelos professores. A escolha de vir até a UFSC não foi por acaso. Depois de ter trancado o mestrado na UFMA, em 2016, encontrou em Florianópolis a junção de fatores ideais para realizar a mudança. “Eu descobri que aqui tinha uma professora, que é a Françoise (Toledo Reis), que trabalhava com supercapacitores e baterias, aí eu falei ‘cara, vai ser com ela’”.

Com a chegada ao novo campus, Carleane não conteve seu entusiasmo e bateu à porta da professora Françoise. A relação de orientadora no mestrado se estendeu para co-orientadora no doutorado, com início em 2017 e ainda em andamento, além de amiga e conselheira na vida. Outra figura que também foi símbolo de inspiração e apoio é sua orientadora de doutorado, Maria Luísa Sartorelli, por quem a estudante nutre grande admiração pelo trabalho científico produzido.

Luana Consoli/Estagiária de Jornalismo da Agecom/UFSC

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