Pesquisador francês aborda o neoliberalismo na perspectiva de Foucault e Bourdieu

04/10/2018 16:39

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

O pesquisador francês Christian Laval, professor e doutor em Sociologia pela Université Paris Nanterre, esteve na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no último dia 27 de setembro para ministrar a palestra “Foucault, Bourdieu e a questão do neoliberalismo”. Grande especialista nos estudos sobre o liberalismo, Laval já publicou muitos livros sobre o tema, incluindo dois escritos em coautoria com o filósofo francês Pierre Dardot que foram recentemente publicados no Brasil pela Editora Boitempo:  “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal” ( 2016), e “Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI” (2017). O evento, que ocorreu no auditório do Bloco E do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH), contou com um público amplo e diversificado.

O tema da palestra faz referência ao último livro que Laval lançou – com o mesmo título –, por enquanto disponível apenas em francês: “Foucault, Bourdieu et la question néolibérale. “[Michel] Foucault e [Pierre] Bourdieu estão entre as duas grandes referências em Filosofia e Ciências Sociais, amplamente conhecidos tanto na França, como em outros países. O objetivo principal desse livro é mostrar esses grandes mestres que eles são, sem subordinar um ao outro. O livro tem também uma proposta pedagógica, pois é fruto de aulas que dei na Universidade de Nanterre. Percebi que os estudantes tinham uma visão muito anestesiada ou acadêmica desses autores. Eles tinham se esquecido que tanto para um, como para o outro, o importante é se engajar: fornecer à sociedade instrumentos, ferramentas para entender o presente.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Laval ressaltou que uma característica em comum entre Bourdieu e Foucault é o fato de ambos terem feito o mesmo diagnóstico sobre o presente: “Isso é curioso, pois ocorreu a partir de obras muito diferentes e também de uma diferença de época. Foucault se interessou bem cedo pela questão neoliberal, pelo objeto liberal, no fim dos anos 1970. Já Bourdieu vai se interessar pela questão neoliberal mais tarde, no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990.”

Para o pesquisador, que afirma ter se formado intelectualmente pelas leitura de Bourdieu e de Foucault – quando jovem foi auxiliado tanto por um, como por outro –, havia ainda uma outra razão para escrever publicar um livro sobre o pensamento desses dois autores no que se ao neoliberalismo: era preciso “fazer justiça”. “Por muito tempo, mais frequentemente nos Estados Unidos, mas também na França, acusaram Foucault de ser um simpatizante do neoliberalismo. Talvez o que desencadeou esse livro foi uma conferência que assisti na Sourbonne, prestigiosa universidade parisiense. O tema era ‘Marx no século XXI’. Na ocasião foi desenvolvida a ideia de que Foucault tinha não somente um ódio enorme contra o comunismo, como também que ele, de certa maneira, tinha inaugurado o neoliberalismo na França. Eu percebi então que deveria intervir no cenário intelectual para corrigir esse tipo de ideia equivocada.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Bourdieu foi igualmente alvo de acusações inverídicas: “No caso de Bourdieu, é bem diferente. Ele foi cobrado, dentro do próprio campo da Sociologia, de ter traído e abandonado a Sociologia. E ele teria feito isso ao se tornar o personagem mais espetacular na luta contra o neoliberalismo. Bourdieu foi acusado de ter se tornado um militante, de ter deixado de ser o cientista que ele era. O sentido do meu livro, portanto, é mostrar, por um lado, que Foucault não tem nenhuma simpatia particular ou especial pelo neoliberalismo. Não é porque ele se interessou pelo neoliberalismo enquanto objeto de estudo que ele teria se tornado seu simpatizante. Esse tipo de cobrança foi feita a Foucault também em outros casos. Quando ele se interessou pela Revolução Iraniana, por exemplo, foi acusado de ter se simpatizado pela religião xiita. Quanto a Bourdieu, o que eu quis mostrar no livro foi que, quando ele levou a questão neoliberal a sério, ele apenas mobilizou o conjunto do que eu chamaria de seu capital científico para tratar o assunto. Um e outro, em duas épocas diferentes e de modos diferentes, são intelectuais engajados contra formas de poder como o neoliberalismo – mesmo que esse neoliberalismo seja difícil analisar como modo de poder ou estrutura de dominação.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Sem confundir ou opor as duas análises, Laval procurou mostrar como os dois autores, seguindo trajetórias teóricas bem diferentes, chegaram, por fim, a caracterizar o presente como um “presente neoliberal”. “Eles são um pouco excepcionais, porque outros pesquisadores franceses levaram muito tempo para chegar a esse ponto, para entender o neoliberalismo. Os intelectuais franceses ainda não tinham entendido que estávamos na era do neoliberalismo. Teria sido bonito demais se assim fosse. Foucault e Bourdieu, portanto, são exceções.”

Para Laval, o que é notável em Foucault é sua precocidade: “Em meados dos anos 1970 ele disse que estava em marcha na França uma virada no modo de governo. E o que caracterizou essa virada foi a importação do liberalismo alemão para a política francesa. Ninguém ainda sabia o que era e nem tinha ouvido falar do ‘ordoliberalismo’ alemão. O que é interessante em sua aula do Collège de France, que se chamou “O Nascimento da Biopolítica”, é que o desenvolvimento que ele faz não corresponde bem a esse título. Ele faz uma exploração bastante singular de diferentes formas de neoliberalismo, com análises bem afiadas do liberalismo clássico, e um esforço singular de diferenciação do liberalismo clássico do neoliberalismo. Foucault tenta dizer em que sentido esse ‘neoliberalismo’ é ‘neo’, é ‘novo’, em que aspecto seria uma tentativa de renovação do liberalismo.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Naquele momento, Foucault se interessou por duas grandes formas de neoliberalismoL: o ‘ordoliberalismo’ alemão e o neoliberalismo estadunidense. “Sua aula de 1979 não teve muita sequência – nenhuma sequência teórica imediata e nenhum efeito político. Essa aula acaba por ser um pouco abandonada até sua republicação em 2004. Aí nós temos algo interessante no meio intelectual. As análises de Foucault de 1979 vão começar a funcionar na França a partir de 2004 e 2005. Um quarto de século mais tarde, Foucault tem então um efeito bastante considerável. O livro é republicado em um momento crucial da situação política na França, quando ocorria um referendo sobre o tratado constitucional europeu. Estávamos lidando, na França e na Europa, com um conjunto de teses bem particulares, que são aquelas do ‘ordoliberalismo’ alemão. Ou seja: a tentativa de constitucionalizar a ordem da concorrência em um tratado que terá um valor supremo na hierarquia das normas. Os franceses votaram contra esse referendo, houve uma revolta eleitoral contra esse tratado. Mas mesmo contra a vontade da maioria dos eleitores, ele foi implementado dois anos mais tarde. Os efeitos, então, do que Foucault produziu, são tardios.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Bourdieu, por sua vez, começa a se interessar realmente pelo neoliberalismo em um momento em que fazia grandes pesquisas empíricas sobre “o mercado da casa individual”, na segunda metade dos anos 1980. “Ele percebe que a política que é exercida pelo pessoal da direita, primeiro nos anos 1970 e depois nos anos 1980, consiste em construir mercados. Ou seja, a política de auxílio à habitação não visa mais a habitação social, a habitação coletiva e locativa, mas dá acesso à propriedade às classes médias e populares. Isso tem efeitos sobre a sociedade, como o enfraquecimento do estado social. Seu famoso livro de 1993, ‘A miséria do mundo’, marca realmente a entrada de Bourdieu na oposição aberta às políticas neoliberais. A partir desse momento, o sociólogo se torna a figura mais importante entre os intelectuais que aderem aos movimentos sociais contra o neoliberalismo.”

Laval destacou como “um grande momento” a tomada de posição de Bourdieu durante as greves de 1995 contra políticas neoliberais que atacavam os sistemas de segurança de saúde, aposentadorias, entre outros direitos dos trabalhadores franceses. “Nesse momento, Bourdieu age politicamente, acreditando que poderia reinaugurar a luta social com uma aliança entre os pesquisadores em Ciências Sociais e os movimentos sociais. Ele desenvolve uma estratégia na qual a Sociologia alimentaria os movimento sociais com análises críticas, esclarecendo, por exemplo, sobre o que é o neoliberalismo. Bourdieu pensava ainda que a Sociologia poderia ajudar os movimentos sociais a fazer atos simbólicos e eficientes contra todas as políticas antipopulares que estavam sendo implementadas. Naquele momento, então, é certo que Bourdieu tem uma atividade política muito poderosa. É daí que são oriundas as acusações das quais falei.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

O envolvimento de Bourdieu com os movimentos sociais, entretanto, é muito mais antigo e não data dessas lutas anti-neoliberais dos anos 1980. “Bourdieu também se envolveu contra o colonialismo. Quando atuava na Universidade de Argel, na Argélia, ele viu como o exército francês agia contra as populações argelinas. E não somente denunciou essas ações, como, de certa maneira, desenvolveu, naquele momento, uma análise bem afinada da forma como a sociedade poderia ser transformada não somente pela ação militar, mas também com meios econômicos, como, por exemplo, o desenvolvimento do assalariado na Argélia. Houve ainda muitos outros engajamentos de Bourdieu no sistema cultural e no sistema educativo. Mas o que é novo nos anos 1990, é que Bourdieu compreende que o que estamos lidando, o neoliberalismo, é de fato uma ameaça. Uma ameaça direta sobre o que ele não hesita em chamar de nossa civilização. O que Bourdieu quer dizer é que há elementos de regressão, de barbárie, que ameaçam as sociedades e que ameaçam também o conhecimento. O engajamento antineoliberal de Bourdieu é também uma maneira de defender a liberdade da produção do conhecimento.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Em que o conhecimento é ameaçado? “É preciso remeter a uma teoria específica de Bourdieu, a teoria dos campos, que se inscreve em uma tradição sociológica muito antiga, já fortemente presente em Augusto Comte, passando por Émile Durkheim, sendo hoje um lugar comum da Sociologia. É a ideia de que nossa sociedade conhece formas de diferenciações e de criações de mundos sociais relativamente autônomos, com suas próprias referências e seus modos de funcionamento. Frente à emergência do campo econômico, campos opostos foram construídos. Essa diferenciação dos campos era a condição de possibilidade do conhecimento, da ciência, de formas culturais, de formas estéticas relativamente independentes do mercado. Com o neoliberalismo, nós assistimos de certa maneira uma regressão, uma involução, uma reversão. A lei econômica se impõe agora em todos os campos, com forte apoio do Estado e das altas funções pública, e também de todos aqueles que, dentro dos diferentes campos, encontram vantagens e interesses em importar, para esses campos, a lógica do campo econômico.”

Nesse sentido, Bourdieu faz críticas aos “intelectuais midiáticos” que, em seus discursos na televisão, no rádio, nos periódicos, introduzem lógicas de mercado no campo intelectual. “A intenção do seu envolvimento é mobilizar os intelectuais, artistas, cientistas etc, para que compreendam que a autonomia relativa que possuem, que é a condição mesma da sua atividade, está diretamente ameaçada. Então há um paradoxo em acusar Bourdieu de trair a Sociologia, quando o que ele estava tentando fazer é que os intelectuais, universitários, pesquisadores se conscientizem do que está em jogo.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Bourdieu teve um imenso sucesso, pelos artigos que escreveu e livros que publicou. Mas ele também foi confrontado com uma série de dificuldades teóricas e políticas. “Bourdieu, que era filósofo de formação, teve quase os mesmos mestres que Foucault na École Normale Supérieure (ENS), uma das mais prestigiosas  instituições francesas. Mas quando se tornou sociólogo, travou uma batalha contra o que chamou de imperialismo filosófico sobre as Ciências Sociais. O que ele queria era libertar as Sociologia do ‘ponto de vista escolástico’, sustentado pela maioria dos filósofos que não compreendiam nada do que ele chamava de ‘sentido prático’. Ele denunciava a primazia do ponto de vista escolástico, argumentando que os teóricos colocavam na cabeça dos agentes sociais suas próprias teorias.”

Nesse sentido, Bourdieu modificou o eixo da sua crítica, atacando então o ponto de vista escolástico e o filosofismo dominante. Ele recorreu a conceitos de origem econômica: interesse, mercado, capital, investimentos, proveitos etc, utilizando-os como críticas ao idealismo em geral e ao idealismo filosófico em particular. “O golpe de mestre de Bourdieu foi continuar a usar esses conceitos, esse sistema conceitual, para dirigi-los contra a economia, contra a dominação da Ciência Econômica sobre as Ciências Sociais e sobre o campo político. Então o que é o neoliberalismo para Bourdieu? É primeiro e antes de tudo a implementação de uma utopia, a do Homo Economicus; é a implementação de políticas de estado, conduzida pela alta função pública – que ele chama de nobreza de estado –, visando transformar e enfraquecer o estado social e modificar a sociedade. A mola do neoliberalismo é a legitimação da Ciência Econômica.”

A pergunta que se coloca a Bourdieu era a de saber se estávamos lidando com um neoliberalismo que representava uma “destruição do Estado”, uma “demissão do Estado”: “Em muitos textos Bourdieu explica que o neoliberalismo não é o fim do Estado, mas sim um novo Estado. Em outros textos, entretanto, mais dirigidos a movimentos sociais, ele parece defender o Estado contra o mercado. Isso se inscreve em como os militantes dos movimentos sociais entendiam o neoliberalismo: como uma agressão do mercado contra o Estado.”

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC

Tags: BourdieuCentro de Filosofia e Ciências HumanasCFHChristian LavalFoucaultFrançaneoliberalismopalestraUFSC