Sônia Guajajara na UFSC: ‘Precisamos disputar e ocupar os espaços de poder’
Coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara é uma das principais lideranças indígenas e ambiental do Brasil. Também é pré-candidata a vice-presidente pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na chapa com Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Na quinta-feira, 10 de maio, Sônia esteve na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para ministrar uma aula magna organizada pelos estudantes indígenas, no auditório da Reitoria. Os 203 assentos disponíveis não foram suficientes para os muitos interessados em ouvi-la. Parte do público presente assistiu à palestra sentado, no chão à frente do palco e nos corredores, ou em pé, ao fundo do auditório.
Durante a aula, Sônia defendeu a disputa pelos espaços institucionais como único meio de evitar retrocessos nos direitos alcançados pelos indígenas e pelos brasileiros de forma geral — e também para continuar na busca por novas conquistas —, ressaltando os “tempos duros” pelos quais passam o país: “As pessoas estão totalmente desencantadas com a política, com a vida, com a mudança. As pessoas perderam a vontade de se encontrar e conversar. Ver este auditório cheio é uma conquista. Estamos vivendo um momento muito difícil, de duros ataques aos nossos direitos, aos nossos povos, aos trabalhadores e trabalhadoras, à população brasileira como um todo. Todo mundo está sendo duramente afetado por um golpe de estado. “No momento em que dizia isso, um arco e flecha que enfeitava a mesa à sua frente tombou, provocando risos na plateia. “Falar de golpe é sério, gente. Até os espíritos se movem aqui. Exige de nós uma reação imediata. Neste momento mais uma etapa do golpe está em curso. Nossos direitos estão sendo negociados para pagar a conta do golpe. O golpe não está acontecendo só em Brasília, está nas nossas terras, nas nossas aldeias, impactando diretamente nas nossas vidas. Não tem como aceitar tantos ataques.”
Para a indígena, os retrocessos consequentes das ações do governo atual estão provocando um crescimento visível do fascismo, do racismo e de outras formas de preconceito em todos os estados brasileiros. “As pessoas hoje se sentem muito à vontade, respaldadas em figuras públicas, para expressarem seu ódio, seu racismo. A população brasileira está sentindo na pele o que é viver sendo atacada o tempo todo. Temos histórias de massacres, de violência, de extermínio de nossos povos. Há 518 anos nossos direitos são negados. Mas o aumento destes ataques, o aumento dos assassinatos, nos enche de coragem para dar mais um passo à frente. Sempre estivemos na luta, sempre estivemos na resistência.”
As fases recentes de luta
Sobre as lutas mais recentes dos povos indígenas, Sônia apresentou três fases, referentes aos últimos 35 anos, que ajudam a entender como o movimento indígena tem se organizado: “Na pré-constituinte, as lideranças indígenas se reuniram, se organizaram, se juntaram com outros movimentos e foram a Brasília para lutar e fazer com que a Constituição Federal incluísse nossos direitos. E com muita luta conseguimos escrever os artigos 231 e 232, que garantem os direitos territoriais dos povos indígenas, reconhecendo as formas de organização social própria de cada povo, uma educação e uma saúde diferenciada. Lutamos para garantir nossos direitos na constituição, que em 1988 foi promulgada. A constituição brasileira é um dos textos mais bem escritos do mundo. Tem uma redação linda, um conteúdo muito completo. Mas infelizmente o fato de estar escrito lá não garante que os direitos sejam efetivados.”
O segundo momento da luta, ela explica, foi para exigir o cumprimento desses direitos. Sônia citou uma série de organizações indígenas que surgiram nesse período em todo o Brasil, até ser constituída uma organização nacional, que é a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da qual Sônia é a coordenadora executiva: “Fizemos muitas mobilizações, eventos, manifestos, protestos, em nível estadual, regional e nacional. Lutamos para pressionar e exigir nossos direitos. Sabemos que o direito aos territórios antecede a Constituição Federal, é um direito originário dos povos indígenas. A Constituição apenas reconheceu, respaldou.”
A terceira fase de luta se refere aos últimos três anos e ao momento atual: “Estamos fortalecendo a luta pra não permitir retrocessos. Não apenas exigimos novos direitos, como também estamos tentando evitar que se percam direitos duramente construídos. Pensando em nossos ancestrais e em todas as lideranças que fizeram essa luta, nós nos juntamos para dar continuidade a partir de outros espaços”, afirmou, referindo-se aos espaços políticos e institucionais. “Estar aqui já não é suficiente. Enquanto estamos aqui fazendo a resistência, outros estão se organizando, formando as maiores bancadas no Congresso, a exemplo do que é a bancada ruralista. Eles estão ditando as regras do país, desrespeitando os povos originários e tradicionais, desrespeitando os direitos ambientais. Não há outra forma de combater isso sem ocupar os espaços de poder. É por isso que este é o momento de dar um passo à frente, fortalecer nossas bases, nosso movimento, nossas alianças para estar aqui, na linha de resistência. Mas também precisamos tirar nossos guerreiros e guerreiras para ocupar a política institucional.”
Sônia acredita que a política institucional é o caminho possível para defender o indígena no momento atual: “A gente não aguenta mais ver nossas lideranças sendo mortas nas ruas, nas nossas próprias casas, na nossa terra que é negada pelo próprio Estado brasileiro. Terras essas que foram entregues aos donos do agronegócio, aos fazendeiros, durante a ditadura militar. O Estado deu título de posse a fazendeiros, a empresários, como vemos o que aconteceu no nordeste brasileiro e também aqui no sul. Muitas terras foram entregues à especulação imobiliária. Hoje, para ter esta terra de volta, estamos pagando muito caro. Os indígenas estão por aí em constantes retomadas, em constantes ocupações de terras que são tradicionalmente indígenas, mas que estão nas mãos de poderosos, de fazendeiros. E vemos a cada dia nossas lideranças sendo mortas, simplesmente por estarem fazendo este enfrentamento para ter de volta seu território tradicional e reconhecido. No Mato Grosso do Sul, além de não terem sua terra, os indígenas enfrentam todos os dias os fazendeiros e os pistoleiros na base da bala. E todo dia tem uma liderança indígena morta ou uma ordem de despejo pelas próprias instituições que deveriam reconhecer e devolver seus direitos. Não aguentamos mais ficar do lado de cá assistindo à violência, ao aumento da impunidade, esperando que outros Vitor Kaingang sejam degolados nos seios de sua mãe. Não aguentamos mais que outros professores Marcondes Xokleng sejam assassinados porque estava andando nas ruas de Santa Catarina. Não aguentamos mais nossos povos serem levados pela polícia simplesmente por estarem vendendo seus artesanatos na rua como uma alternativa de sustento para sua família. Os Estados do Sul estão praticando um racismo brutal, violento com nossos povos, todos os dias.”
Pré-candidatura
A violência e a intolerância contra os povos indígenas, segundo Sônia, vêm aumentando. E esse foi um dos fatores que a motivou a aceitar compor uma chapa presidencial com Guilherme Boulos. “Queremos ser protagonistas da nossa história. Pela primeira vez, em 518 anos, teremos não só uma representação indígena em uma chapa presidencial, como uma representação indígena mulher”, afirmou, sendo em seguida muito aplaudida e ovacionada. “Isso para nós não é pequeno. Agradecemos ao PSOL por propor uma chapa com duas lideranças de movimentos sociais. Guilherme Boulos vem da luta do Movimento dos Trabalhadores sem Teto, que reivindica moradias dignas na cidade. E não estou compondo como vice na chapa, estamos defendendo uma chapa de co-candidatos. Todos na aliança têm aceitado minha participação como co-presidenta com Guilherme Boulos. Queremos romper essa forma do sistema político onde o vice não representa ou não vale nada. Queremos construir um programa de governo compartilhado com as lideranças dos povos indígenas; com as lideranças dos movimentos dos trabalhadores e trabalhadoras sem teto; com as redes alternativas de comunicação, a exemplo da Mídia Ninja; com os movimentos de artistas, como o #342 Artes, da Amazônia. Estamos juntando os movimentos feminista, os movimentos de negros e negras, de quilombolas, da comunidade LGBT, da juventude. Todos esses segmentos estão construindo juntos o nosso programa. Estamos discutindo todos esses temas em 17 grupos de trabalho. Vamos fazer um programa revolucionário, para romper principalmente com esse modelo de desenvolvimento econômico. Esse é um modelo que não se sustenta mais por muito tempo. Nós, indígenas, queremos trazer para dentro do debate a questão indígena, a questão ambiental, a questão da desigualdade e o aprimoramento da democracia.”
Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC