Luis Felipe Miguel na UFSC: ‘Os rituais da democracia estão completamente desprovidos de efetividade’

30/03/2018 17:29

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

“O que esse momento político nos diz de maneira muito clara? A vontade popular não importa. Os rituais da democracia estão completamente desprovidos de efetividade.” Esse foi o tom da palestra do professor Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB), convidado para a aula magna do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) da Universidade Federal de Santa Catarina. O evento integra o Ciclo de Debates “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, e foi também a aula inaugural do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH). Com o tema “A democracia em retração”, a atividade ocorreu na quarta-feira, 28 de março.

Ainda antes de começar, o auditório do CFH já estava lotado, com muitos, inclusive, sentados no chão. Todos queriam ouvir o professor que, em fevereiro, foi alvo de ataques do ministro da Educação Mendonça Filho, que tentou censurar a disciplina que Luis Felipe ofertava para este semestre. Como resposta, e em defesa da autonomia universitária, diversas outras universidades do país organizaram atividades com o mesmo título da matéria oferecida pelo pesquisador. Foi nesse contexto que o CFH promoveu o Ciclo de debates e o convidou a palestrar.

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Luis Felipe iniciou a aula fazendo referência ao episódio que o trazia ali: “Minha presença aqui é também um gesto de solidariedade diante dos ataques do Ministério da Educação. Ataques que, em um primeiro momento, foram dirigidos a mim. Mas que, na verdade, como sabemos, são dirigidos à universidade, ao pensamento crítico, à possibilidade de construirmos caminhos para fazer um país melhor.” O professor afirmou que considera a UFSC um emblema do cerco que as universidade brasileiras sofrem hoje: “A morte do reitor Luis Carlos Cancellier é o símbolo mais trágico do ódio que, aqueles que subiram ao poder com o golpe em 2016, dirigem à universidade, à ciência, ao pensamento. O Cau sempre foi moderado, sempre foi um conciliador. Ele nem sequer se alinhava entre os críticos do golpe. Ainda assim, foi preso e humilhado, em uma operação absolutamente arbitrária, que não disfarçava seu objetivo real, que era a criminalização da universidade, como aconteceu e vem acontecendo em várias outras universidades do país.”

Para o professor, Cancellier foi “vítima da truculência cada vez maior do aparelho repressivo no Brasil”. Seu último gesto teria sido “uma denúncia extrema da violência que ele sofreu e uma tentativa desesperada de romper a cortina de silêncio sobre esses arbítrios”. Segundo Luis Felipe, a radicalidade do gesto de Cancellier não conseguiu abalar as autoridades do judiciário ou da polícia, “mas sacudiu a comunidade universitária, quebrou uma parte do nosso marasmo, fomentou nossa mobilização. E eu tenho certeza de que a história da resistência ao desmonte dos direitos no Brasil de hoje há de guardar seu nome com destaque. É triste pensar que estamos voltando a uma situação em que gestos extremos como o do Cau se tornam providos de sentido.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Dois momentos políticos

“Eu não posso ignorar o contraste entre o momento atual, o momento que estamos vivendo hoje, e aquele momento em que eu entrei aqui na UFSC como estudante do curso de graduação”, afirmou Luis Felipe, referindo-se a 1985, quando o Brasil tinha novamente um governo civil, após o período da ditadura militar. Naquele ano, havia ainda muito a ser conquistado. A primeira eleição direta, por exemplo, só ocorreria em 1989. “De qualquer maneira, com todas as dificuldades, o clima que se vivia naquele momento era de que tínhamos pela frente um país a ser feito, um país com futuro em aberto e que nós poderíamos, pelo menos, ter as condições de lutar por um país melhor.”

O professor destacou que a Constituição de 1988 também teve suas fragilidades: “Perdemos batalhas importantes na Constituição, muitas vezes vimos vitórias aparentes se transformando em um texto constitucional vago, ambíguo, pouco efetivo. Mas a Constituição também não foi a que os grupos dominantes gostariam. A Assembleia Nacional Constituinte estabeleceu um espaço de debate em que o campo popular teve que ser levado em conta. A classe trabalhadora, as mulheres, a população negra, os povos indígenas, o movimento LGBT e tantos outros grupos foram capazes de colocar suas agendas e não puderam ser ignorados.” Dessa forma, a Constituição teria proporcionado um espaço para as lutas populares: “Foi possível abrigar um conjunto de direitos que nunca foram plenamente outorgados a todos, mas que estabeleciam um horizonte normativo, legitimavam as reivindicações por mais justiça, mais autonomia e mais igualdade.”

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

Comparando aquele período com a experiência democrática anterior – de 1945 a 1964 –, Luis Felipe afirmou que em ambos os momentos históricos foi possível aos grupos populares serem interlocutores do jogo político: “É isso o que estamos perdendo hoje. Estamos perdendo, com o golpe de 2016, tal como perdemos com o golpe de 1964. E creio que eu posso usar essa palavra proibida, golpe, porque ela expressa o processo em curso hoje. É golpe não apenas porque uma presidente eleita pelo povo foi retirada do seu cargo sem que houvesse motivos previstos na Constituição para isso. É golpe porque a partir daí nós estamos vivendo um processo de retirada de direitos, um processo em que os consensos, mesmo que contraditórios, mesmo que parciais, mas os consensos que foram obtidos na redemocratização, na Constituição de 1988, estão sendo destruídos de forma unilateral e por atos de força. O consenso de uma sociedade democrática está sendo jogado fora sem nenhum tipo de diálogo, por atos de força daqueles que tomaram o poder. Essa é a natureza do golpe. É o rompimento do jogo democrático que havia conseguido estabelecer um terreno em que a luta política podia se dar de maneira um pouco menos violenta.”

Para o professor, estamos vivendo um período de transição à ditadura. “Nós não estamos ainda em uma ditadura, alguns direitos e garantias operam. Mas operam de forma cada vez mais incerta, cada vez mais parcial, cada vez mais condicional.” O esvaziamento da democracia se revela, segundo ele, em três frentes principais: “A primeira e mais óbvia dessas frentes é o rompimento com a ideia de que o poder deve ser autorizado pelo povo. Não só porque a cadeira da presidente está sendo ocupada por alguém que a usurpou, que não foi escolhido para ocupá-la. Mas porque o programa que esse governo impõe nunca foi capaz de obter aprovação popular em todas as vezes em que foi submetido ao veredicto da população. É um programa de fim do combate às desigualdades, de desnacionalização da economia, de desmonte do Estado. Esse programa está sendo implantado sem a autorização do povo. Essa imposição unilateral de retrocessos, sem que haja qualquer esforço sério de convencimento da sociedade, revela que estamos voltando a uma situação em que o caráter de violência do exercício do poder não se preocupa em se disfarçar.

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC.

O segundo aspecto que ele aponta é a destruição do estado de direito:  “A ideia de que há uma normatividade jurídica relativamente fixa e com validade universal é cada vez mais desafiada. Há interpretações arbitrárias e cambiantes da lei, violações abertas da Constituição, e a personalização crescente dos alvos do aparelho repressivo do Estado. Estamos em um país em que o princípio de presunção de inocência, estabelecido com clareza cristalina no artigo 5º da Constituição Federal, é abandonado pelo Supremo [Tribunal Federal], que é a corte que deveria proteger a Constituição. Estamos em um país em que um ex-presidente da República é alvo da maior guerra jurídica de nossa história, com polícia, Ministério Público e poder judiciário buscando desesperadamente encontrar qualquer coisa que permita condená-lo.”

A terceira frente da retração do regime democrático é, segundo Luis Felipe, a destruição das liberdades liberais: “Existe um movimento crescente de ampliação da censura, de intimidação a educadores, de vigilância a movimentos sociais, de interdição a determinados debates na sociedade. Nós temos hoje palavras proibidas no debate público. Não podemos falar em gênero, em golpe, em agrotóxico. Vemos o recrudescimento da repressão contra movimentos sociais, ativistas, manifestações. Existe uma cooperação entre polícias, poder judiciário, setores do Ministério Público e milícias de extrema direita, que cria um ambiente social que evoca o período Macartista dos Estados Unidos. E temos, como culminância desse processo, o aumento da violência política aberta contra a esquerda, da qual a consequência mais trágica foi o assassinato da vereadora Marielle Franco.”

Luis Felipe também mencionou o atentado à caravana do ex-presidente Lula que, no dia anterior à palestra, foi alvo de tiros no Paraná: “O fato de que vastos setores da nossa elite política foram incapazes de condenar de maneira decidida esses atentados, tanto no caso da execução da Marielle, quanto nos atentados à caravana de Lula, mostra como descemos no grau de civilidade da disputa política no país.” Apesar de também ressaltar todas as deficiências da democracia vigente no Brasil, o pesquisador considera o momento político extremamente preocupante: “Nossa democracia sempre foi viciada pelo poder econômico e pela manipulação da informação. Nossa lei nunca foi igual para todos. Ativistas do movimento camponês nunca deixaram de ser mortos por latifundiários e jagunços. Para a população preta, pobre, periférica, as garantias do Estado sempre falharam e a repressão estatal contra elas nunca esteve ausente. Mas é necessário entendermos que o golpe que ocorre no Brasil hoje não é a substituição de uma institucionalidade por outra. Algumas lógicas que sempre estiveram presentes no nosso sistema político estão sendo reforçadas, enquanto as lógicas que se contrapunham a essas são silenciadas. A lógica da exclusão e do arbítrio, que nunca esteve ausente, se estende agora por todos os espaços sociais, é praticamente onipresente na relação do Estado com diferentes grupos sociais.”

Desdemocratização

Esse processo de retração da democracia, conforme descreve Luis Felipe, não ocorre apenas no Brasil: “Vivemos de maneira muito aguda algo que parece estar acontecendo pelo mundo afora. É o que muitos autores têm chamado de processo de desdemocratização. Ele ocorre na forma de golpes brancos, por meio do desrespeito ostensivo à vontade popular expressa. Existe um movimento pelo qual a capacidade do povo influenciar as decisões públicas é cada vez mais reduzida. O Estado capitalista assume hoje um caráter de classe cada vez menos disfarçado, basicamente retirando dos pobres e dando aos ricos. Esse Estado assume também, de maneira cada vez mais clara, um caráter racista, patriarcal, homofóbico. O avanço dos setores mais duros da direita, numa chave muito próxima dos fascismos da primeira metade do século passado, aposta no reforço de todas as hierarquias, de todos os padrões de dominação presentes na sociedade. O Brasil de Michel Temer é um país em que o monopólio dos homens brancos nas posições de poder voltou a ser naturalizado. É um país em que as políticas públicas de combate às desigualdades são revertidas e até os debates sobre esses temas são interditados.”

Os rituais democráticos, observa o professor, são importantes por gerarem a possibilidade de um mundo social menos injusto. “Essa democracia não é o que promete, mas nem por isso ela é vazia de sentido. O caso do Brasil é emblemático porque o que chegou ao poder não foi de forma nenhuma um projeto anticapitalista. Era um projeto muito moderado e muito pragmático, que buscava um caminho para enfrentar os padrões aberrantes de desigualdade social existente no país. E fazia isso atingindo da menor forma possível os privilégios daqueles que estavam nas posições dominantes. Mas mesmo isso foi demais. O fato é que as nossas elites têm alergia à igualdade. Qualquer forma de diminuição da desigualdade enfrenta uma oposição muito forte. O programa das elites é a manutenção não apenas de suas vantagens, mas de toda a distância que as separam do restante da população.”

Sobre o palestrante

Filho do conhecido escritor catarinense Salim Miguel, Luis Felipe Miguel morou em Florianópolis dos 12 aos 25 anos, quando graduou-se em Comunicação Social pela UFSC. Fez mestrado em Ciência Política, pela UnB, e doutorado em Ciências Sociais, pela Unicamp. Desde 1996 é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB), onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). Publicou, entre outros, os livros “Mito e discurso político” (2000), “Democracia e representação: territórios em disputa” (2014), “Feminismo e política: uma introdução” (2014) e “Consenso e conflito na democracia contemporânea” (2017). Em seu currículo lattes, o pesquisador se define como um defensor da “universidade pública, laica, gratuita e de qualidade e do retorno do Brasil à normalidade democrática”.

Mais informações sobre o ciclo de debates na página do CFH e no Facebook.

Confira a nota do Ipol sobre a disciplina oferecida por Luis Felipe Miguel.

Daniela Caniçali/Jornalista da Agecom/UFSC

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