UFSC na mídia: reportagem especial sobre aborto legal em Santa Catarina

12/07/2016 11:30

Laudelina não quis parir um filho com quem iria compartilhar o próprio pai. Rejeitou uma gravidez resultante de uma série de estupros cometidos dentro de casa que colocaria no colo dela um filho-irmão. A jovem de 24 anos natural do Maranhão reagiu a uma realidade que, infelizmente, é comum no país: ser violentada sexualmente por pessoas próximas. Conforme dados de 2014 do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea), 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos da vítima.

– Por ser interior, é costume lá. Eu tenho uma prima que engravidou do pai. Todo mundo olha para a criança e diz: “Ah, é a tua cara!”. Todo mundo se parece lá. [Denunciar] não dá em nada. Teve uma mãe que denunciou, e a família expulsou de casa.

Cansada de ser abusada, fugiu para Santa Catarina na companhia de uma prima. Depois de um ano estudando segurança do trabalho, trabalhando em um restaurante e construindo nova vida em Florianópolis, voltou à cidade natal no Nordeste para visitar a mãe acamada. Foi, então, novamente estuprada pelo pai. Preferiu, mais uma vez, esquecer o sofrimento longe dali e não procurou a ajuda que poderia livrá-la de doenças sexualmente transmissíveis e da gestação. Paralisou de medo e vergonha.

Para desespero de Laudelina*, em novembro do ano passado a menstruação atrasou. Testes de farmácia e sanguíneo comprovaram a gravidez, fruto da relação incestuosa. A mesma certeza tinha em relação à gestação: nenhuma outra opção além de não ter a criança a tranquilizava. Lembrar a concepção daquele ser que crescia em seu ventre era como se fosse violentada mais uma vez.

– Quando a gente toma essa decisão, a gente tem medo de ser criticada pelos outros. Porque eu sou de família católica. É uma coisa que eles não aceitam. Você pode ser mãe solteira, mas abortar, nunca. Preferem te humilhar a vida toda do que te apoiar em uma decisão que vai te fazer feliz.

Até a 18ª semana, já com uma barriga saliente de quase cinco meses, pensou em procurar clínicas clandestinas de aborto. Mas, mesmo sem conhecer amplamente seus direitos, instintivamente mudou de ideia. Não queria correr o risco de morrer por algo que não teve culpa e encorpar a estatística que coloca o aborto como a quinta causa de mortalidade materna no Brasil, conforme o Conselho Federal de Medicina. O Sistema Único de Saúde (SUS) carrega o peso desse número ao realizar cem vezes mais procedimentos pós-aborto do que abortos legalizados há três anos.

– Fui no postinho e me encaminharam para cá [Hospital Regional de São José], direto na maternidade. Pelo apoio que não tive com a minha família e tive com eles, decidi que era a coisa certa a fazer. Claro que lembro que era uma criança, que não tinha culpa de nada. Mas eu não ia conseguir olhar para essa criança e saber que é meu irmão-filho, não ia conseguir amar uma criança que eu não quis  – diz a moça.

Laudelina* é uma das cinco mulheres que abortaram de maneira legal uma gestação forçada no Hospital Regional de São José, na Grande Florianópolis, desde que a unidade de saúde aderiu ao programa de interrupção de gravidez dentro da lei, em 2012. Duas filhas que eram mantidas em cárcere privado pelo próprio pai, em Rio Negrinho, também puseram fim à gestação violenta no mesmo local. No caso mais recente, em junho deste ano, outra moça violentada pelo padrasto evitou um filho não desejado.

Desde 1940, o artigo 128 do Código Penal Brasileiro isenta de punição o médico que realizar aborto para salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultar de estupro. Mais recentemente, em 2012, casos de anencefalia fetal também foram incluídos nesse rol em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Mas é a lei 12.845, de agosto de 2013, que orienta o atendimento dos profissionais de saúde no serviço público focado na interrupção da gestação dentro dos meios legais. A padronização da assistência e dos procedimentos adotados nesses casos é definida em duas normas técnicas do Ministério da Saúde: Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes e Atenção Humanizada ao Abortamento.

A reportagem do Diário Catarinense esteve nas quatro instituições referenciadas para realizar o aborto previsto em lei no Estado: Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis; Hospital Regional de São José Dr. Homero Miranda de Gomes; Maternidade Darcy Vargas, em Joinville; e Hospital Santo Antônio, em Blumenau. Em todos eles, a maior parte dos poucos casos de aborto já realizados tem origem no estupro, conforme dados dos próprios hospitais. Os órgãos de saúde catarinenses não têm um banco de dados que centralize as estatísticas de aborto. A transparência não é o forte em relação aos dados públicos sobre o aborto, que acabam restritos a algumas entidades em nível nacional.

Pouquíssimos médicos alocados nas unidades referenciadas em Santa Catarina iniciam o atendimento das vítimas de violência sexual que não querem levar a gestação adiante em razão do trauma sofrido – no Regional de São José, por exemplo, só dois fazem frente a uma equipe composta por 40 médicos. Os que se recusam se apoiam na chamada objeção de consciência, garantida pela legislação médica, em que podem alegar questões religiosas, morais e éticas – argumentos que dificultam a efetivação de um direito das mulheres. O cenário, que se repete no país, é agravado pela falta de divulgação do aborto legal, que tira o aspecto público e social de uma política que não chega a quem precisa.

Ultrapassado o muro do silêncio em relação à denúncia, as vítimas têm de encontrar amparo praticamente sozinhas, porque não há sequer uma cartilha que mencione a interrupção de gestação como uma possibilidade legalizada.

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Fonte: Diário Catarinense, 9 e 10 de julho

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