Aula magna de Licenciatura Indígena põe em pauta a diversidade
As calças jeans e as camisetas convivem bem com a tinta preta no rosto. Os flashes insistentes incomodam alguns, e os sorrisos não saem tão fácil dos adultos, mas há crianças que se postam em frente às câmeras, e jovens de penteado moicano com máquinas e filmadoras nas mãos, como que a revidar fazendo suas próprias imagens. A segunda aula magna do curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica da UFSC, que aconteceu na quarta, 11/05, reuniu reitor, pró-reitores, professores, estudantes, autoridades e os alunos de tribos Kaigáng, Xokleng e Guarani, que retornam agora à Universidade após dois meses nas comunidades colocando em prática o que aprenderam no curso em seus primeiros trinta dias.
A data teve programação durante toda a quarta: de manhã, os alunos se reuniram com o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Augusto Freitas Meira, quando reivindicaram bolsas de estudos para que possam permanecer na Universidade e concluir o curso, e, às 18h, no hall da Reitoria, foi aberta a exposição “Guarani, Kaigáng e Xokleng – Atualidades e Memórias do Sul da Mata Atlântica”.
A mesa de abertura contou com a presença do reitor Alvaro Prata; do presidente da Funai; da diretora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) Roselane Neckel e da coordenadora do curso Ana Lúcia Vulfe Nötzold. A mesa de debates foi composta pela pesquisadora do Laboratório de Etnologia Indígena Maria Dorothea Darella; o coordenador-geral da Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do MEC, Gersem José dos Santos Luciano (Baniwa), e a procuradora da República em Santa Catarina Analúcia de Andrade Hartmann.
Multiplicando as transformações
A solenidade foi ao encontro do que Gersem defende: que o curso transforma seus alunos, mas também a sociedade e a Universidade. O hino nacional foi cantado por alunos Kaigáng – metade entoado em sua língua nativa e a outra metade em português; houve espaço à homenagem a Natalino Crespo – feita de acordo com as tradições de sua tribo – companheiro que os incentivou a ingressar no curso e que faleceu no dia 02/03, e o mestre de cerimônias não deixou de lado os caciques, quando registrou a presença das autoridades. Os detalhes demonstram as modificações sutis que a Universidade começa a ensaiar.
“A UFSC não estava e nem está preparada para recebê-los. Mas a forma de nos adequar é vivenciar e aprender, aperfeiçoar a cada dia”, atesta o reitor. “Faço dois pedidos: que tenham compaixão com a nossa instituição, perdoando nossas falhas, apesar de nossa boa vontade, e que exultem-se a si próprios, sendo bons alunos”.
O curso, que vinha sendo gerado desde 2007 pela Comissão Interinstitucional para Educação Superior Indígena (Ciesi, formada por integrantes da UFSC, organizações representantes dos povos indígenas e entidades parceiras), é um dos 26 do Brasil oferecido exclusivamente aos povos indígenas, e ajuda a somar cerca de oito mil índios no ensino superior. O presidente da Funai explica que esse número só tende a crescer. “De acordo com o IBGE, temos hoje no país cerca de 817 mil índios”. Isso significa que nos últimos dez anos a população indígena cresceu mais de 10%, número superior aos das pessoas que se declaram brancas, negras ou pardas. “Já escutei muito, também em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, a frase ‘aqui não tem índio’. Por isso o curso vai além da educação: é também político. E essas novas gerações que fizerem o ensino superior poderão contribuir de forma mais efetiva com a construção do país”, defende.
Igualdade nas diferenças
A professora Roselane ratifica a fala de Márcio: “este momento significa a inclusão desses cidadãos na sociedade, a partir de seu ingresso na Universidade”. A diretora do CFH vai além. “Em um país de diferenças tão profundas, não podemos tratar da mesma forma a todos, como se todos tivessem condições iguais”, afirmou, mencionando em seguida as políticas públicas de permanência que a Universidade destina a alunos oriundos de escolas públicas, negros e indígenas, e reafirmando a disposição da UFSC em buscar meios de viabilizar, junto com a Funai, bolsas de estudos a esses alunos.
A equidade também foi mencionada por Analúcia, que ainda relembrou o saudoso professor Sílvio Coelho dos Santos como orientador nos estudos das questões indígenas – homenageado anteriormente pela professora Dorothéa, que o apontou como baluarte da antropologia em questões da área. “Quando trabalhei junto a tribos, contava-se nos dedos quantos falavam fluentemente o Kaigáng. ‘Só se pegarmos à força esses indiozinhos’, me diziam os mais velhos. Não existia a valorização dos índios e de sua cultura”. Hoje, de acordo com a procuradora, a Secretaria de Educação de SC já reconhece as diferenças e as estimula, orientando escolas e professores. “Agora os alunos são liberados para os cultos junto com seus pajés, e há horários e merendas diferenciados”, relata.
Dos índios para os índios
Doutor em Antropologia Social, Gersem Baniwa faz parte da primeira leva de professores de dedicação exclusiva da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) que leciona nos cursos de Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Comunitário e Formação de Professores Indígenas. O docente analisa a valorização de sua cultura. “Sempre me perguntei quantos eram os portugueses que desembarcaram no Brasil, e qual o número de indígenas que havia aqui para recebê-los, e a resposta me parece óbvia. Em nenhum momento os índios foram capazes de se articular para enfrentar o inimigo comum. E nisso se passaram cinco séculos. Apenas na década de 1970 se iniciaram as primeiras reações mais conscientes dentro dessa relação histórica de dominação”. “Nenhuma política”, continua, “tem sido implantada porque o Brasil mudou sua percepção de mundo, e sim porque os povos indígenas tomaram outra atitude, e o ensino superior faz parte dessa reação”.
Gersem confessa que o magistério voltado ao índio está em processo de construção. “Ainda não tenho clareza do que fazer em sala de aula. A escola foi inventada pelo mundo branco para atender às necessidades de industrialização e mercantilização, e talvez seja um erro adaptá-la às demandas indígenas”.
Há menos de uma década atuando como categoria, os professores indígenas talvez busquem o meio termo. “A responsabilidade é grande. Como se define uma escola intercultural? Tem povos que nos cobram o ensino da língua nativa, mas não conheço índio que não queira aprender sobre as novas tecnologias. E será que ensinar português vai ser bom para esses povos? Tem quem ache que o índio que fala bem o português já não é mais índio”, problematiza.
O duelo entre o novo e o antigo, no entanto, parece se desfazer a partir da visão do professor. “Há pessoas acreditando que a tradição e a modernidade são incompatíveis. Isso é um problema para os pensadores, porque os índios já resolveram a questão. Para eles, o caminho é a complementaridade: não conheço povo indígena que, já tendo contato com a cultura do homem branco, abdique do direito de frequentar uma escola”.
Gersem ainda enfatizou o caráter social que a educação tem para sua gente. “Os índios são pragmáticos: quem vai à escola deve voltar sabendo fazer sabão, anzol, construir roupas, senão significa que não aprendeu direito. O estudo tem como objetivo melhorar a comunidade”.
Pinturas, danças e direitos
Van (que em Xokleng significa taquara), tem sete anos e foi a atração da cerimônia para os fotógrafos. Com adereço de cisal no cabelo, pintura preta no rosto e usando saia de palha, balançava de tempos em tempos um chocalho de cabaça e passava com a mãe Walderes a música que cantaria junto ao grupo logo depois do evento.
Aos 26 anos, Walderes cria a sobrinha Van como filha, e a deixa com a mãe em José Boiteux, onde se localiza a tribo Laklãno, quando fica em Florianópolis para assistir às aulas. “Agora estou mais tranquila porque ela veio comigo para a apresentação, mas no primeiro mês foi mais difícil”, relata.
Formada em Letras Português/Espanhol em uma universidade de Indaial, a Xokleng afirma que estudar, agora, está bem mais fácil. “Quando fiz a primeira faculdade, com minha mãe, havia vezes em que dormíamos no ponto de ônibus, e no outro dia tomávamos banho na própria universidade, porque não havia dinheiro para voltar para casa. Aqui tem sido bem diferente”, comemora.
Questionada sobre a diferença entre os Xokleng, Kaigáng e Guarani, ela se vira e aponta: “Olha só a pintura. Cada um faz desenhos diferentes, e cada etnia possui suas próprias músicas e danças”, explica, contando que sua tribo, que habita um terreno de cerca de 14 mil hectares, abriga as três etnias. “Conheci professores de geografia e história que se referiam ‘aos índios’ apenas. Mas há grandes diferenças em relação aos costumes e tradições”. Walderes pretende seguir Licenciatura em Humanidades, com ênfase em Direitos Indígenas. “Hoje estamos reivindicando a redemarcação de nossas terras. Quero lutar pelas causas indígenas”.
Por Cláudia Schaun Reis/ Jornalista na Agecom
Fotos: Pâmela Carbonari / Bolsista de Jornalismo na Agecom
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