Brasil subutiliza capacidade de realização de aborto legal e seguro em casos de estupro, aponta estudo
A estrutura de saúde instalada no Brasil e a capilaridade da atenção primária são uma oportunidade para a ampliação do acesso ao aborto previsto em lei. Essa é uma das conclusões centrais de um estudo realizado por pesquisadoras da UFSC e publicado na A Revista Ciência & Saúde Coletiva. O artigo é fruto da tese de doutorado de Marina Gasino Jacobs, orientada pela professora Alexandra Crispim Boing, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFSC.
Na tese, Marina investiga a oferta e realização de interrupção legal de gravidez no Brasil examinando dados do Sistema de Informações Ambulatoriais e Hospitalares e do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. No estudo recém publicado, as autoras trabalham com três diferentes cenários de oferta, calculando também o percentual da população do sexo feminino em idade fértil (entre 10 e 49 anos) residente nos municípios, por região, para estimar o potencial de oferta de serviço de aborto em gravidez decorrente de estupro.
O primeiro cenário utiliza os dados reais, das cidades e unidades que oferecem o serviço. Já os segundo e terceiro cenários são projeções: no segundo, Marina faz o levantamento dos municípios com ao menos um estabelecimento que atenderia às exigências de estrutura física e de pessoal das normativas vigentes; no terceiro trabalha com as recomendações técnicas e de políticas de saúde da Organização Mundial da Saúde e de acordo com o Código Penal.
No Brasil, o aborto é permitido em mulheres com risco de vida, na gravidez por estupro e em casos de anencefalia fetal. “Seguindo as atuais normativas, um a cada 12 municípios com capacidade de realizar aborto em gravidezes decorrentes de estupro tem a oferta desse cuidado em saúde – a oferta está em 55 dos 662 municípios com capacidade instalada”, explica Marina sobre o levantamento.
O contexto que cobre a temática também é delimitado na pesquisa. Ela aponta, por exemplo, que em 2020 as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e a Defesa Social registraram 60.460 estupros – 86,9% em pessoas do sexo feminino e 66,1% pessoas em idade fértil. Além disso, também detalha o histórico da oferta da interrupção legal, destacando que mesmo constando no Código Penal desde 1940, só foi normatizada em 1999, com a primeira norma técnica do Ministério da Saúde.
A pesquisa levantou as normativas que apontam os métodos de abortamento a cada idade gestacional, a equipe mínima recomendada para a sua realização e o tipo de estrutura necessária. O estudo indica que, como métodos, ao longo do tempo, é mais comum o uso de aspiração manual intrauterina e do misoprostol. Já os recursos humanos e materiais necessários também variam: na primeira norma técnica a única categoria profissional essencial era a médica, mas depois outras especialidades e profissionais de saúde foram incluídos.
“Nossas normas referentes ao aborto em gestações decorrentes de estupro muitas vezes apresentam exigência de profissionais e estrutura que são dispensáveis para a realização de um aborto seguro. Essas exigências restringem os estabelecimentos em que o aborto previsto em lei pode ser realizado, o que tende a tornar a oferta mais escassa e gerar barreiras de acesso a esse cuidado em saúde”, pontua Marina.
Traçando cenários
A pesquisa trabalhou com os diferentes potenciais de oferta para projetar a capacidade do sistema: um deles considerando todas as normativas vigentes no país e outro considerando apenas as orientações da Organização Mundial de Saúde e o Código Penal.
Marina explica que, no primeiro cenário, incluiu os municípios com oferta já instalada. No segundo, trabalhou com aqueles com potencial de oferta considerando as normativas vigentes, e no terceiro com aqueles com potencial de oferta considerando apenas as recomendações da Organização Mundial de Saúde e o Código Penal brasileiro. Os dados levantados indicaram 55 municípios para o primeiro cenário, 662 para o segundo e 3741 para o terceiro. Essas cidades cobririam, respectivamente, 26,6%, 62,1% e 94,3% da população do país.
Com relação ao segundo cenário, a estimativa teve como base todos os municípios com ao menos um estabelecimento de saúde com registro de capacidade instalada que contemplasse as exigências de todas as normativas vigentes. Já no terceiro, foram incluídos todos os municípios com ao menos um estabelecimentos de atenção primária à saúde com médico vinculado e com serviço de urgência SUS 24 horas.
Para a pesquisadora, as normativas brasileiras restringem o potencial de oferta de forma injustificada à luz do que já se conhece sobre a segurança do procedimento. “A oferta de aborto previsto em lei poderia se dar de forma segura na maioria dos municípios brasileiros (3.741), onde vivem quase 95% das mulheres em idade fértil do país”, pondera. “As normativas infralegais restringem o potencial de oferta de forma injustificada”.
A partir dos dados, Marina também assegura que o Brasil teria capacidade muito maior de oferta segura de aborto previsto em lei do que a que está assegurada hoje. Essa expansão de oferta não dependeria de mudança legislativa, apenas de atos administrativos. “A normativa que implica em maior entrave é a restrição do uso do misoprostol ao ambiente hospitalar. O misoprostol é o medicamento utilizado para a realização do aborto seguro. Ao menos até a nona semana de gestação, seu uso é seguro em estabelecimento de atenção primária e mesmo fora de serviços de saúde, com acompanhamento à distância. Contudo, no Brasil, desde 1998, o misoprostol está restrito ao ambiente hospitalar”, afirma.
Segundo a pesquisadora, um dado surpreendente foi que, mesmo sob normativas mais restritivas, 1.184 estabelecimentos teriam capacidade de realizar aborto em gestações decorrentes de estupro, dos quais apenas 88 o fazem. “Ou seja, as dificuldades de implantação desse cuidado em saúde extrapolam as barreiras normativas. A estigmatização do aborto afeta a oferta e o acesso ao procedimento seguro mesmo nas situações em que ele é legal”, alerta.
Amanda Miranda, jornalista da Agecom/UFSC