Pesquisa identifica como as questões de gênero se relacionam ao conhecimento tradicional em comunidades quilombolas

03/08/2021 10:00

Com uma abordagem etnobotânica, incluindo aspectos históricos e culturais, pensando também nas relações de gênero, a pesquisadora Daniele Cantelli, mestra pelo programa de pós graduação em Biologia de Fungos, Algas e Plantas, da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFAP/UFSC), produziu a dissertação Influências do gênero nos conhecimentos tradicionais vinculados à biodiversidade: estudo de caso em comunidades quilombolas de Santa Catarina. Os resultados identificam os conhecimentos ancestrais sobre plantas nativas em quatro comunidades quilombolas de Santa Catarina: Aldeia, Morro do Fortunato, Santa Cruz e São Roque, com destaque para a última. A pesquisa está vinculada ao projeto O conhecimento e o uso das plantas por comunidades Quilombolas de Santa Catarina, do Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica, coordenado por sua orientadora, a professora Natália Hanazaki.

“Já existia o projeto que estudava territórios quilombolas em Santa Catarina, precisávamos de mais informações sobre a comunidade São Roque e, como a UFSC já tinha um acordo de cooperação em andamento com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), que, por sua vez, estava avançando no termo de compromisso com a comunidade, isso facilitou o processo de aproximação e parceria com a comunidade”, relata Daniele, sobre o processo de escolha do local do estudo de campo. As outras comunidades já tinham sido parceiras em projetos anteriores no laboratório, e Daniele utilizou dados que já haviam sido coletados.

Vista da comunidade de São Roque. Imagem: Danilo Barreto

Com a inserção na comunidade São Roque, era o momento de conhecer a memória biocultural do local, isto é, as práticas e crenças que dão vida aos conhecimentos tradicionais daquela comunidade. As pesquisadoras são enfáticas quando se referem a esses conhecimentos como algo que se deve valorizar e reconhecer, visto que a relação dos povos originários e tradicionais com a natureza carrega uma história de proximidade, afeto e proteção.

As coletas de dados e saídas a campo mensais ocorreram entre 2018 e 2019, com o apoio, acompanhamento e alojamento do ICMBio. “As saídas a campo eram a melhor parte do trabalho, pois fez com que estabelecêssemos uma forte relação com a comunidade”, conta. O resultado das pesquisas reforçaram parte da hipótese inicial, que associava os conhecimentos das mulheres sobre plantas de jardins e outras áreas próximas às residências ao seu uso alimentar e medicamentoso. Já os saberes masculinos eram mais relacionados ao uso das espécies encontradas nas matas e na roça. 

Para chegar aos resultados, 19 mulheres e 25 homens da comunidade São Roque foram entrevistados. Considerando apenas as plantas nativas da Mata Atlântica, os homens citaram 71 espécies diferentes, já as mulheres, 27. Elas falaram mais sobre herbáceas, que crescem mais na beira de estradas, terrenos e quintais. Já os homens citaram mais arbóreas encontradas nas matas. Essa amostragem, segundo o estudo, reforça os papéis e dinâmicas ligadas ao acesso a ambientes e responsabilidades atribuídas socialmente a cada gênero. Dessa forma, é possível compreender como as questões de gênero se associam aos conhecimentos tradicionais e à organização social e familiar das comunidades. 

As plantas mais citadas pelos entrevistados foram da família Myrtaceae, para fins medicinais, alimentícios, lenha e madeira. Os frutos das Pitangueiras, Guabirovas, Araçás, e Jabuticabas foram mencionados para alimentação in natura ou em geléias. Algumas dessas espécies são usadas também para chás que tratam dores. Para construções e lenha, o uso da Batinga e do Cambuim são predominantes. Ainda foram amplamente citadas tanto por homens quanto mulheres, o Cipó Pata-de-Vaca, Pata-de-Boi, Açoita-Cavalo, Cipó Milome, Canjerana, Guavirova, Pau-pra-tudo, Quina, entre outras.

Um outro aspecto relevante da pesquisa foi que, na comunidade de São Roque, as plantas medicinais são conhecidas e utilizadas de forma equânime tanto por homens quanto por mulheres. Além disso, dois irmãos são referência entre o povo no que diz respeito ao conhecimento sobre plantas medicinais. Dirceu Nunes da Silva e Vilson Omar da Silva ministraram uma oficina sobre plantas medicinais em uma etapa do estudo e relataram para as pesquisadoras que muitos dos conhecimentos aprendidos tiveram origem em figuras maternas, por meio da linguagem oral. 

Para a pesquisadora, isso demonstra a força da oralidade no que diz respeito ao repasse do conhecimento ancestral. É por meio do saber oral que as questões bioculturais e suas riquezas não morrem com o passar dos séculos.

São Roque

São Roque é uma das três mil comunidades quilombolas do país e atualmente abriga em torno de 25 famílias. Localiza-se na divisa dos municípios de Praia Grande, em Santa Catarina, e Mampituba, no Rio Grande do Sul. Seu território tem histórico de ocupação pela comunidade desde 1824 e está associado ao trânsito de escravos que cultivavam na planície costeira. O local abriga a população remanescente de quilombo que  luta pelo reconhecimento de sua identidade étnica cultural específica e que  reivindica a manutenção e posse, por pertencimento, da sua territorialidade.

A comunidade possui sete mil hectares -mais de um terço dela é considerada unidade de conservação e abriga os Parques Nacionais Aparados da Serra e Serra Geral, criados nos anos 1960 e 1990. Mas apenas em 2013 a comunidade, ICMBio e Ministério Público Federal regulamentaram por meio de Termo de Compromisso o uso e o manejo nas áreas de sobreposição entre o território e as áreas de preservação.

Devolutivas e os caminhos da ciência e pesquisa

Moradora da Comunidade São Roque Imagem: Danilo Barreto

A expectativa de Daniele e Natália é que o fim da pandemia traga a possibilidade de levar à comunidade de São Roque parte do que foi desenvolvido nas pesquisas. “Estamos em busca de editais de financiamento para produzir uma mostra e livro fotográfico com as imagens e registros que fizemos de lá em parceria com o fotógrafo Danilo Barreto. Acreditamos que essa é uma forma de devolutiva que expõe nosso agradecimento e reconhecimento pelas pessoas e a comunidade”, pontuam as pesquisadoras. 

Elas acreditam que a pesquisa e a ciência são elementos essenciais para o desenvolvimento do país e recordam as dificuldades enfrentadas no decorrer do projeto, como a falta de financiamento próprio, que complementaria as estratégias de apoio recebidas do programa de pós-graduação e da equipe do ICMBio. As pesquisadoras ainda refletem sobre a forma com a qual se produz ciência e que ciência o futuro nos reserva. “Nosso trabalho reforçou a necessidade de respeito aos povos originários e comunidades tradicionais, e a pandemia nos mostra que os povos tradicionais são ainda mais vulneráveis. O desafio daqui pra frente é produzir conhecimento com ainda mais respeito e responsabilidade pela natureza pois nada mais será como antes”, finaliza Daniele.

Klay Silva/Estagiária de Jornalismo da Agecom/UFSC

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Inscrições abertas para simpósio de Etnobiologia e Etnoecologia

13/03/2012 17:09

Estão abertas as inscrições para o IX Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia: avanços para identidade cultural, conservação e uso da biodiversidade. O evento acontece entre os dias 26 a 29 de novembro de 2012 na UFSC.

O evento prevê uma promoção especial para os alunos de graduação da UFSC: até o dia 30 de abril, grupos de 10 pessoas podem se inscrever por meio de um pacote promocional com valor total de R$ 600.

O simpósio é uma promoção da Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE – www.etnobiologia.org.br), com o apoio da Universidade Federal de Santa Catarina, por meio do Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica.

Para saber mais sobre o evento acesse o site: http://www.ixsbee.com.br/

 

 

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