Laboratório da UFSC realiza recuperação de acervos históricos atingidos por enchente no RS

Equipe do Labcon recebe, na UFSC, acervos vindos do Rio Grande do Sul. Foto: Maria Isabel Miranda/Agecom/UFSC
Entre abril e maio deste ano, o Rio Grande do Sul sofreu uma das maiores enchentes de sua história, que afetou 473 dos 497 municípios gaúchos e atingiu mais de 2,3 milhões de pessoas, de acordo com a Defesa Civil do estado. Desde o início da catástrofe climática, o Laboratório de Conservação e Restauração (Labcon), do Centro de Ciências da Educação (CED) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), auxilia e contribui com iniciativas de apoio às comunidades, visando amenizar a perda de patrimônio documental dos municípios.
Neste mês de outubro, o Labcon inicia um projeto para a recuperação e tratamento de mais de 200 volumes e documentos dos acervos históricos do Museu de Igrejinha (RS) e da Biblioteca Pública de Camaquã (RS), municípios afetados pelas enchentes. O transporte dos materiais foi realizado por uma van frigorífica, que viajou cerca de 440 km desde Igrejinha, e que chegou à Florianópolis na última segunda-feira, 30 de setembro. O congelamento evitou que os papéis encharcados fossem alvo de proliferação de fungos, mantendo seu estado nos meses subsequentes.
Do Museu de Igrejinha, serão recuperadas aproximadamente 150 encadernações, que contém partituras do século XIX, trazidas da Alemanha. Da Biblioteca de Camaquã, o acervo recebido é composto por 50 livros do século XX, que atendem aos critérios de raridade da instituição por retratar a história do município.
Todo o processo de restauração dos acervos será realizado no Labcon que, com recursos institucionais da UFSC e do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), além de doações da comunidade, tem se preparado para receber e tratar toda a documentação de forma gratuita. As tratativas com o laboratório foram articuladas pelo Sistema Estadual de Museus do Rio Grande do Sul (SEM/RS), que trabalhou junto às instituições, instruindo no resgate dos acervos e orientando na continuidade dos projetos para a recuperação.
Segundo a coordenadora do SEM/RS, Doris Couto, os documentos resgatados são singulares e raros para a história dos municípios, o que torna alto o impacto do restauro em relação à identidade das populações. “Qualquer documento que faça uma narrativa acerca de momentos históricos de cada local é extremamente relevante e se deve fazer de tudo para que sejam mantidos na melhor condição possível”, argumenta.
O coordenador do Labcon e professor do Departamento de Ciência da Informação da UFSC, Cezar Karpinski, explica que a vinda dos acervos do Rio Grande do Sul para Florianópolis se deu após diálogos com o SEM/RS e as instituições dos municípios, como forma de apoio à reconstituição patrimonial no interior do estado.
“Quando entrei em contato com o Sistema de Museus e começamos a articular as ações, eu falei: ‘Considere o Labcon como uma instituição para ajudar as instituições e os museus do interior, aqueles que não contam com o mesmo apoio da capital’”, conta. Segundo o professor, o valor patrimonial dos acervos dos municípios do interior é, no geral, restrito às localidades, e, hoje, as universidades do Rio Grande do Sul já atuam na linha de frente da recuperação de seus acervos principais.
Desde o primeiro momento das enchentes no estado, o Labcon promoveu ações educativas no âmbito do resgate de acervos, foco da Rede de Apoio para Recuperação de Acervos do RS. Iniciada pelo professor Cezar, a rede voluntária reuniu os principais especialistas em restauração de papel do Brasil, com objetivo de direcionar e auxiliar as instituições gaúchas na preservação rápida dos materiais.
“A parceria do Labcon com o Sistema se deu nos primeiros dias após a enchente e a inundação que acontecerem em Porto Alegre e também através do Conselho Regional de Museologia”, explica Doris. A coordenadora afirma que o aporte dos profissionais, bem como do laboratório, foi fundamental para o processo de resgate dos materiais. Naquele momento, a rede realizou três lives educativas para as instituições afetadas pelas enchentes. A primeira tratou de orientações de segurança das equipes que realizariam o salvamento dos acervos, e as outras duas sobre como preservar materiais específicos encontrados na lama.
Do acervo do Museu de Igrejinha e da Biblioteca Pública de Camaquã, foram resgatadas obras históricas, que, após o retrocesso das enchentes e com orientação dos especialistas, foram congeladas para preservação. “Muitos dos documentos ficaram dez, 20 dias abaixo da água. Eles entendiam que iam perder tudo. Com essa rede, reunimos uma série de especialistas do Brasil todo, e a primeira coisa que foi indicado foi o congelamento”, relata o professor.
Após o resgate primário dos documentos e com a rede de contato entre o Rio Grande do Sul e o Labcon estabelecida, ambas instituições solicitaram apoio no processo de restauro dos acervos atingidos. Com isso, agora o Labcon desenvolve um projeto de extensão para o tratamento e a recuperação de acervo histórico em suporte de papel dos municípios.
“O processo de recuperação vai contribuir muito para nós, para a memória da cidade, a identidade cultural de Camaquã e para o núcleo de pesquisa histórica”, diz o bibliotecário Jean dos Santos, da Biblioteca Pública de Camaquã.
Na UFSC, os documentos passarão pelo devido tratamento técnico para descongelamento, secagem, higienização, restauração e acondicionamento. De acordo com o professor Cezar, a estimativa é que o processo de recuperação tenha duração de dois anos, uma vez que ainda não se sabe ao certo o estado dos documentos.
Todo o processo de restauração dos acervos será divulgado pelo @labcon_ufsc, no Instagram. Se deseja contribuir com o projeto, auxiliando como voluntário ou por meio de doações, contate labconufsc@gmail.com ou mande uma mensagem pelo Instagram.
O processo de restauração
O Labcon iniciou, no último sábado, 5 de outubro, a etapa de análise e avaliação dos materiais recebidos de Igrejinha e Camaquã. Após o processo de descongelamento, serão verificados a estrutura, o estado e o tipo do papel de dois volumes dos acervos. Essa etapa irá compor a construção do protocolo de recuperação.
Após a elaboração do protocolo, começará o processo de descongelamento de outros volumes, que leva em média 24 horas para cada documento. Em seguida, será realizada a retirada das embalagens. De acordo com o professor Cezar, a etapa de descongelamento dos acervos deve ser concluída até meados de 2025.
O professor explica que o descongelamento deve ser finalizado nesse período para que a secagem, próxima etapa da recuperação, seja feita antes da chegada do inverno. A secagem utiliza técnicas de desumidificação do ar e de entrefolhamento, que consiste na adição de folhas com PH neutro para tentar minimizar o processo de aceleração da acidez do documento.
Posterior à secagem, é iniciado o tratamento do papel. Primeiro, pela higienização mecânica, que retira a sujeira superficial e, posteriormente, se necessário, pela higienização química, que banha o papel para a retirada de sujeira aderida.
Caso seja feito o banho químico, é realizada uma nova secagem, seguida da restauração. Utilizando técnicas de remenda, excerto e carcela – que preenchem cortes, rasgos e furos nos documentos – , assim como materiais neutros e reversíveis, reconstrói-se a integridade física do papel.
Por fim, a etapa de acondicionamento primário refaz a encadernação dos volumes, que, no acondicionamento secundário, são embalados com um filme plástico, composto por poliéster.
Segundo o professor Cezar, a equipe responsável pela recuperação e tratamento dos acervos ainda será definida, mas contará com cerca de dez bolsistas, estagiários e voluntários do Labcon orientados por ele, além de pesquisadores e especialistas nas áreas de química, biologia e restauração.
Prevenção e proteção do patrimônio material do Rio Grande do Sul
Em julho deste ano, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) realizou a Missão de Emergência da Unesco ao Rio Grande do Sul, com recursos do Fundo de Emergência ao Patrimônio e em parceria com o Ministério da Cultura (Minc) e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul.
Ao todo, cerca de 50 museus foram atingidos pelas enchentes no estado. Desses, a missão realizou atividades em instituições de Porto Alegre, Muçum, São Leopoldo e Igrejinha. A iniciativa teve como objetivo coletar dados e informações que embasaram um diagnóstico das necessidades pós-enchente e recomendações técnicas no estado.
De acordo com a coordenadora do SEM/RS, Doris Couto, o relatório final da missão será apresentado neste mês de outubro. “A partir das recomendações, o estado, no que tange às suas instituições, adotará as medidas necessárias com relação à prevenção. Já estamos tratando do plano de gestão de risco, um plano muito mais amplo do que aquele que normalmente se prevê no planejamento estratégico dos museus, porque ele precisa envolver, por exemplo, catástrofes de maior porte que estamos sujeitos a partir de agora, como ventos de muita intensidade que possam trazer destelhamentos, novas enchentes.”
Ainda conforme a coordenadora, o Rio Grande do Sul realizará junto à Unesco um ciclo de capacitações aberto a todas instituições históricas e culturais do estado a fim de melhor prepará-las para o enfrentamento de emergências climáticas com impacto ao patrimônio cultural. “Ainda estamos, enquanto sistema, orientando os municípios em projetos de restauro de acervos e de reorganização dos seus espaços físicos, bem como alteração de local da instalação dos museus, como o Museu de Igrejinha”, ressalta.
Vinícius Graton
Estagiário de Jornalismo | Agência de Comunicação | UFSC
agecom@contato.ufsc.br