Projeto da UFSC, iniciado em Harvard, utiliza quadrinhos para regulação emocional de crianças

23/08/2024 18:30

Ilustração: Laura Araujo/NADC/UFSC

Cumprir prazos, estabelecer metas, estudar, trabalhar, manter relações saudáveis com colegas, familiares, amigos… São inúmeras as atividades da vida cotidiana que necessitam de raciocínio lógico e inteligência emocional. E se pudéssemos contar com a ajuda de heróis de histórias em quadrinhos para lidar com essas questões e desenvolver nossas habilidades desde a infância?

Pensando nisso, a professora Chrissie Ferreira de Carvalho, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), desenvolveu o projeto de extensão Heróis da Mente, que utiliza histórias em quadrinhos e atividades lúdicas com personagens heroicos no enfrentamento a desafios e aprimoramento de  habilidades para ajudar o próximo. A ferramenta permite abordar temas complexos de maneira mais acessível; assim, as crianças aprendem a estabelecer metas para o futuro e a desenvolver autocontrole a partir de situações cotidianas.

Para a professora Chrissie, material permite abordar temas mais complexos. Foto: Letícia Bueno/NADC/UFSC

“Com o Heróis da Mente é possível promover diálogos com pais, professores e colegas sobre emoções, tomada de decisões e resolução de conflitos; aprender como lidar com frustrações; esperar a vez e compreender os sentimentos dos outros”, afirma a psicóloga.

O projeto estimula atividades entre pais e filhos para desenvolver habilidades para a vida – as chamadas soft skills – em crianças de 7 a 12 anos. Todos os materiais utilizados no projeto foram desenvolvidos por Chrissie durante o seu doutorado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e aprimorados no período de doutorado sanduíche e pós-doutoral nos Estados Unidos, na Universidade de Harvard.

Soft skills são habilidades relacionadas ao manejo de relacionamentos interpessoais e à capacidade de tomar decisões acertadas na vida. “Quando falamos de funções executivas e regulação emocional, estamos nos referindo às habilidades que permitem estabelecer metas, manter o foco nelas, concluir tarefas e avaliar os resultados de forma eficaz”, explica a professora. “São competências que não são ensinadas no currículo escolar tradicional, como Matemática, História ou Ciências”.

Os personagens heroicos das histórias em quadrinhos e atividades educativas são exemplos positivos de relacionamento e regulação emocional, especialmente para crianças com neurodivergências, como Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Opositor Desafiador (TOD), pois elas enfrentam desafios de impulsividade e regulação emocional.

Dessa maneira, o Heróis da Mente fornece recursos precoces e preventivos para ajudar no desenvolvimento das habilidades essenciais o quanto antes for possível. “Dentro do nosso programa, estamos estimulando essas capacidades, que envolvem pensar de forma estratégica, gerenciar o tempo e as metas pessoais, desenvolver empatia e outras habilidades essenciais para interagir efetivamente com os outros e com o mundo ao nosso redor”, destaca Chrissie.

Rotina para pais e filhos

O projeto teve início durante a Pandemia da Covid-19, com foco nas necessidades das crianças que estavam em casa, em distanciamento social. Naquele momento, os pais tiveram que assumir o papel de educadores em tempo integral. Levando isso em consideração, Chrissie incluiu os pais nas atividades do projeto de extensão já durante a Pandemia, criando momentos específicos em que os adultos se reuniam para alinhar informações relevantes, como a importância da rotina, práticas parentais positivas e estratégias de regulação emocional.

Após o retorno das atividades presenciais na UFSC, em março de 2022, o projeto se tornou híbrido. As reuniões com os pais são on-line e os encontros semanais com as crianças são presenciais e ocorrem no Serviço de Atenção Psicológica (Sapsi/UFSC) – com exceção das famílias que não têm disponibilidade para os encontros presenciais e, por isso, permanecem em formato totalmente remoto.

Foto: Letícia Bueno/NADC/UFSC.

Ao longo do semestre, são realizados cinco encontros conjuntos, das crianças com os pais e monitores, e encontros semanais individuais, onde cada criança tem seu próprio horário com os monitores. A presença dos pais nos encontros é importante, afirma Chrissie, para que atuem junto aos monitores nas atividades de estimulação – assim, conseguem perceber quais habilidades são mais desafiadoras aos filhos e necessitam de mais atenção em casa. 

Durante as sessões semanais, a família tem uma hora dedicada para discutir o que precisa ser reforçado para melhor atender às necessidades individuais de cada criança, seja atenção, regulação emocional ou outro aspecto identificado ao longo da participação do projeto. Ao final de cada módulo, a família recebe um relatório abrangente que destaca quais áreas tiveram progresso e quais ainda precisam de mais trabalho. Esse relatório pode ser compartilhado com as escolas e também pode ser útil em processos de psicoterapia, proporcionando um acompanhamento integrado às crianças.

Os encontros também estabelecem uma rotina compartilhada por pais e filhos. A organização permite que a criança tenha mais condições para cumprir atividades obrigatórias, bem como desfrutar momentos de lazer. Para os adultos, as atividades servem de conscientização sobre a importância da rotina no raciocínio e no desenvolvimento dos filhos. “É um processo duplo, onde os pais também estão aprendendo junto com as estratégias que estão sendo ensinadas às crianças. Eles reconhecem em vários momentos os pontos que são desafiadores para eles, como a organização e o planejamento”, conta Chrissie.

Logo, nesse processo duplo, alguns pais compartilham que suas próprias rotinas são desorganizadas e questionam como podem melhorar nesse aspecto. “Muitos pais relatam que estão aprendendo a olhar para suas próprias vidas para poderem oferecer um aprendizado coletivo dentro da família. Isso é positivo também para os irmãos das crianças que fazem acompanhamento pelo projeto, pois muitas vezes eles participam das atividades, como os jogos que podem ser feitos em colaboração. Dessa forma, conseguimos envolver toda a família e todos aprendem juntos”, conta a professora.

Ensino, pesquisa e extensão

Ainda que o projeto Heróis da Mente tenha começado durante a Pandemia, ele continuou após a retomada das atividades presenciais, graças ao retorno positivo das famílias que participaram dos encontros. Segundo Chrissie, os pais relataram benefícios significativos na dinâmica familiar.

Por atender a sociedade, o Heróis da Mente se configura como uma ação de extensão, e os estudantes do curso de Psicologia ganham experiência prática, muitas vezes trabalhando pela primeira vez diretamente com crianças e famílias, ao estagiar – sob supervisão – como monitores das atividades. Após a Pandemia, o projeto ganhou ainda mais complexidade. Além da formação estudantil (ensino) e do atendimento à sociedade (extensão), o Heróis da Mente foi sistematizado como pesquisa para promover intervenções baseadas em evidências, possibilitando que outras pessoas repliquem essa abordagem com dados robustos.

“No ano passado, recebemos uma estudante de mestrado, Raissa Lara, interessada em trabalhar com um programa de intervenção. Juntas, desenvolvemos um sistema para realizar avaliações antes e depois da participação no projeto, a fim de medir os progressos obtidos pelas crianças e as percepções das famílias. Implementamos essa pesquisa no primeiro semestre de 2023 e agora estamos concluindo nosso terceiro grupo, onde coletamos esses dados”, informa a professora.

Professora Chrissie Ferreira durante seu estágio de pós-doutorado na Universidade de Harvard. Fotos: arquivo pessoal

O desenvolvimento da criança é avaliado por meio de questionários respondidos pelos pais. As perguntas são voltadas para o comportamento da criança. Dessa forma, os pesquisadores podem avaliar se houve melhorias em áreas como atenção e sociabilidade. Além disso, é possível constatar se a criança está mais organizada e tem melhor autocontrole depois da participação no projeto. Também são realizados testes de desempenho cognitivo, focados tanto nas funções executivas quanto na memória, para obter uma medida objetiva do progresso das crianças, independente da percepção dos pais.

“Analisamos esses dados para verificar se há de fato evolução após a participação no programa e em que aspectos específicos. Além das avaliações quantitativas, planejamos realizar grupos focais [entrevistas em grupo para coletar informações] com os pais, para compreender melhor suas experiências e percepções sobre o programa. O grupo focal será uma oportunidade interessante para ampliar a percepção dos pais sobre o programa”, diz Chrissie. “Além disso, outro aspecto que incluímos neste projeto é o conceito psicológico de senso de competência parental. Esse conceito avalia o quanto os pais se sentem competentes para educar seus filhos, usando uma escala que os pais respondem antes e depois de participar do programa”, afirma.

Ao avaliar o senso de competência parental, o projeto visa entender se participar de grupos psicoeducativos e receber orientações de profissionais pode alterar a confiança que os pais têm em sua capacidade de educar e orientar seus filhos.

Educação e políticas públicas

Foto: Letícia Bueno/NADC/UFSC

De acordo com Chrissie, o próximo objetivo é expandir o alcance dos Heróis da Mente através das escolas, para impactar diretamente o ensino e o aprendizado. Além dos jogos lúdicos e educativos, o material do projeto é composto também por um Manual do Professor, especialmente desenvolvido para orientar as atividades dentro da sala de aula. Cada criança participante receberia seu próprio livro ilustrado, projetado não apenas como um recurso educacional, mas também como uma ferramenta de aprendizado interativo. Este livro permitiria que as crianças acompanhassem as histórias em quadrinhos e fizessem anotações, integrando-se diretamente às atividades propostas, enquanto os professores as acompanhariam e as orientariam, desenvolvendo estratégias em colaboração com as famílias à medida em que o programa avançasse.

O financiamento, porém, é um desafio significativo para o Heróis da Mente. A equipe busca recursos por meio de editais e parcerias, incluindo colaborações com instituições acadêmicas renomadas, como a Universidade de Harvard, onde Chrissie fez seu pós-doutorado. Apesar das limitações, o grupo está comprometido em garantir que cada criança tenha acesso às ferramentas e aos suportes necessários para seu desenvolvimento integral, especialmente aquelas cujas famílias enfrentam dificuldades financeiras para acessar serviços psicológicos especializados.

“O Heróis da Mente é um projeto completo e por isso é meu xodó. Não abro mão dele, porque sei da importância que ele tem para os estudantes e para as famílias que participam. Muitas vezes, uma família que necessita desse tipo de acompanhamento teria dificuldades financeiras para custear um psicólogo particular, porque é bastante caro. Mesmo através de planos de saúde, pode ser difícil encontrar profissionais com o preparo adequado para esse tipo de intervenção, há diversos desafios envolvidos nesse sentido. Por isso, é importante destacar a qualidade do nosso trabalho, que não é facilmente encontrada em qualquer lugar”, ressalta Chrissie.

Para enfrentar o desafio de financiamento e ampliar o alcance do projeto, a equipe apresentou o projeto para alguns gestores das secretarias municipais de Saúde e de Educação de Florianópolis, na esperança de viabilizar a implementação gratuita do programa nas escolas públicas de Florianópolis. Porém, ainda não há acordos de cooperação fechados. “Transformar o programa em política pública permitirá que ele seja acessível a um número ainda maior de crianças em diversas escolas. Esse passo é crucial e estamos totalmente comprometidos em torná-lo uma realidade palpável no campo da educação”, reforça.

Professores e psicólogos interessados também podem adquirir os materiais do programa individualmente na editora Ampla ou em editoras e lojas parceiras, para aplicá-los em sala de aula ou em consultas. Os profissionais interessados receberão uma capacitação para aprender como os materiais didáticos funcionam e, dessa forma, poderem desenvolver as atividades com seus alunos e pacientes.

As famílias e os profissionais interessados podem acompanhar atualizações sobre inscrições e capacitações no site do Serviço de Atenção Psicológica (Sapsi) e nas redes sociais. O público-alvo do grupo psicoeducativo são famílias que enfrentam desafios de aprendizagem e de manejo do comportamento das crianças, independente de um diagnóstico formal de transtorno neuropsicológico. Crianças que já são atendidas em outros projetos do Sapsi também podem ser indicadas a seguirem seu acompanhamento pelo grupo de pais e filhos.

Sobre a pesquisadora

Foto: Letícia Bueno/NADC/UFSC

Chrissie Ferreira de Carvalho é professora do Departamento de Psicologia da UFSC. É graduada em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestra e doutora pelo Programa de Pós-graduação de Psicologia (POSPSI-UFBA) na linha de Psicologia do Desenvolvimento e pós-doutora pelo Laboratório de Estudos do Desenvolvimento da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Contato: chrissieca@gmail.com

Reportagem: Leticia Bueno | Jornalista / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica
Edição: Denise Becker | Jornalista / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica
Ilustração: Laura Araujo | Estagiária de Design / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica

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